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1 Características gerais dos traficantes dos países da Europa de Leste

6.3 As redes de parentesco e de amizade

No estudo do fenómeno migratório, há que ter em conta a existência das redes de parentesco e de amizade que, para além de serem um paradigma teórico, se apresentam como uma estratégia migratória quer na formação, quer no apoio ao processo migratório internacional, estabelecendo laços entre as comunidades emissora e receptora e entre os próprios migrantes.

Este tipo de redes são constituídas por conjuntos de parentes e, por vezes, de amigos, através dos quais se presta uma ajuda a curto prazo aos migrantes recém-chegados no sentido de facilitar a sua adaptação ao local de chegada, quer em termos materiais (estratégias de procura de emprego, dinheiro, alojamento), quer em termos emocionais.

Douglas Gurak e Fe Caces acentuam a importância do estudo destas redes, o qual ainda tem sido pouco implementado, sob pena de se conhecer mal a forma como elas operam, ou de não se compreender a sua variação de acordo com os contextos étnicos e políticos, bem como os impactos que elas têm sobre os imigrantes e os sistemas migratórios: "As redes vinculam de maneira dinâmica as populações da sociedade emissora e da receptora. Servem como mecanismo para interpretar dados, receber informações e outros itens, em ambas as direcções. São estruturas simples que possuem o potencial suficiente para converter-se em mecanismos mais complexos à medida que os sistemas de evolução se desenvolvem!...) Para que a investigação da migração consiga maiores resultados mediante o potencial da análise das redes, haverá que investigar sistematicamente as variações na forma e na função das redes

migratórias nos distintos tipos de migrações, culturas, contextos políticos, fases de migração e subpopulações" (GURAK; CACES, 1998: 76, 77).

Os mesmos autores apresentam no seu artigo uma síntese do conjunto das funções que a literatura actual identifica sobre as redes migratórias, de acordo com vários enfoques, quer para as abordagens das migrações internas, quer para as das migrações externas (GURAK; CACES, 1998: 99, 100). Assim, se se salientar unicamente o destino do processo migratório, as redes podem ser concebidas como estratégia de sobrevivência (sendo encaradas como recursos essenciais para a adaptação dos imigrantes ao destino, sobretudo na procura de emprego e de habitação e na satisfação de outras necessidades no momento da chegada), meio de adaptação (reduzindo, a curto prazo, os custos económicos e psíquicos da adaptação, graças à ajuda de parentes e amigos), de integração (estabelecendo, a longo prazo, um contexto mais amplo de adaptação, mediante redes comunitárias de base étnica cujos resultados dependerão da posição estrutural desse grupo) ou de isolamento (forçando o imigrante a praticar acções que beneficiem a sociedade de origem).

Quando a atenção do estudo sobre as redes se centra exclusivamente na origem do processo migratório, a sua função pode ser de isolamento (produzindo o aumento de recursos no lugar de origem sob a forma de remessas de dinheiro e de outras contribuições e como meio de mobilidade social) ou de suporte (fornecendo meios para enfrentar a ausência de indivíduos que migram).

Se o estudo das redes colocar o enfoque simultaneamente sobre a origem e o destino do processo migratório, desta feita, as redes podem ter as seguintes funções: migração em cadeia (funcionando como instrumentos de captação de migrantes através do fluxo de informações que influenciam novos candidatos à migração e através dos vínculos com agências formais), assistência de migração (constituindo-se como factores

facilitadores ao processo de migração, precedendo ou acompanhando os migrantes, e ao mesmo tempo assistindo-os nos custos de transporte da instalação inicial), sistema de migração (funcionando como vias de contacto entre os indivíduos em dois ou mais locais por meio de frequente intercâmbio de informação e de recursos, bem como através de visitas, circulação ou migração de regresso), acessibilidade (ao influenciar a selecção dos locais de origem e de destino dos migrantes), compromisso (ao se transformarem, acompanhando as mudanças do ciclo vital) e multiplicidade de níveis (avaliam-se as redes segundo a consistência dos micro e macro níveis de análises).

6.4 Análise e comentários às entrevistas

Valentina, quando veio para Portugal, começou por trabalhar numa empresa ligada a trabalhos gráficos. Não referiu as tarefas que desempenhou durante os seis meses que aí permaneceu, sendo o seu segundo emprego este onde actualmente se encontra e que muito preza:

Eu, eu. Gráfica, gráfica! Seis meses. Adepois, D. Adriana chamou e, muito obrigada a D. Adriana, e gosta, muito gosta e não quero vai embora. (Valentina, 11 de Julho de 2003)

O seu marido continuou a mesma profissão que sempre tivera ao longo dos quarenta anos de trabalho na Ucrânia: motorista. Inicialmente, trabalhou em Portugal por conta de outrem, fazendo longos percursos na Península Ibérica, deixando a sua mulher sozinha durante muito tempo:

I Valentina: - Meu marido comigo aqui. É camionista, é camionista e sempre viaja na Espanha, I Portugal... Não vejo, não vejo nada; às vezes, uma por mês.

Entrevistadora: - Lá o que fazia?

I Valentina: - Ele, motorista. Muitos anos, muitos anos... quarenta anos trabalha motorista, sempre. (Valentina, 11 de Julho de 2003)

Devido ao excesso de trabalho que a entidade patronal exigia ao marido de Valentina e que não se compatibilizava nem com o salário recebido nem com a idade já avançada (78 anos), o marido e o filho da Valentina, juntamente com outro conterrâneo, resolveram abrir uma firma de camionagem que, na altura da entrevista, já só necessitava do respectivo alvará para poder entrar em funcionamento:

Entrevistadora: - E o marido trabalha? Valentina: - História! História!

Entrevistadora: - É uma história?

Valentina: - Marido trabalhador camionista Depois camionista deixava dineiro, precisa de muito, muito trabalhar na patroa, na patroa e depois, há já pouco, pouco tempo, muito anos, idade grande e que fazer? E nós arranjar uma firma.

Entrevistadora: - Uma firma? Só de ucranianos? Valentina: - Marido, filho e outra pessoa camionista Entrevistadora: - E é ucraniana a pessoa?

Valentina: - É ucraniana, é.

Entrevistadora: - E dá dinheiro? A firma é boa?

Valentina: - A firma agora esperamos, agora esperamos alvará. E já esta a última coisa. (Valentina, 11 de Abril de 2004)

Este passo representa um marco importante a nível da migração laboral: a passagem de uma situação de trabalhador submetido à entidade patronal à do migrante que tenta estabelecer-se por conta própria no país receptor, juntamente com um outros ucranianos, neste caso concreto, num projecto semi-familiar muito restrito.

No que toca a Nadia, esta dividiu a sua permanência em Portugal entre Fátima, uma região do Alentejo que não especificou e, finalmente, Santarém.

Recordemos que esta mulher chegou a Portugal em condições extremamente dramáticas, exausta da viagem, desconhecedora da língua e vítima de um assalto em Madrid:

Bandido todos dineiro. Três dias não há dineiro, não há pão, não há água (Nadia, 11 de Julho de 2003)

Em Fátima, um grupo de recrutadores de mão-de-obra arranjou-lhe um emprego com a remuneração de 300 euros mensais mas este contacto custar-lhe-ia a módica quantia de mil euros. No entanto, na sua situação - separada do marido que fora trabalhar para a construção civil em Santarém e sem quaisquer conhecimentos neste país tão

estranho a tantos níveis - esta proposta, por mais cruel que fosse à partida, era irrecusável:

E depois, para Fátima Outra máfia. Três meses. Mil euvros! (Irina: Porque não falar.)

Entrevistadora: - Não conhecia ninguém? Nadia: - Não.

(Irina: E tira dineiro. "Trabalhas aqui. Tem dineiro. Amanhã trabalhas!") Entrevistadora: - Porque a patroa dava-lhe o dinheiro e o homem da máfia tirava-lho? Nadia: - É! Muito complicado. (Nadia, 11 de Julho de 2003)

Nadia referiu, para além deste pagamento obrigatório, outro tipo de coerções a que

esteve sujeita, enquanto trabalhadora na mesma fábrica3, sempre no sentido de a

forçarem a dar o seu ordenado, neste caso, a uma pessoa, seguramente ligada a um grupo criminoso de exploração de trabalhadores migrantes.

A coragem de Nadia ao enfrentar a prepotência do seu conterrâneo, recusando-se a dar-lhe todo o dinheiro que este lhe exigia custou-lhe a violação da sua casa e ficar sem os bens que tinha lá dentro:

1 (Irina: (...) E homem perguntar a patroa: "Tem ucraniano? Na fábrica trabalha ucranianos ou não? ". Epatroa diz que tem. E homem vai na casa dela e vai pedir dineiro.)

Nadia: - Dineiro e depois trabalha. (Irina: E tu tem de dar dineiro.) Entrevistadora: - A si e ao marido?

(Irina: Ao marido, não. Marido trabalha na obra.)

Nadia: - E depois falares ordenado para bom, estás boa e... (Irina: e tem de pagar!)

Entrevistadora: - E pagou?

Nadia: - E pagar mal e homem dineiro tirou .

(Irina: Ele ralha, ele diz: "Dá dineiro!". Nadia depois responde: "Não, eu não dá porque não

tem ". Homem vai a casa dela e tirou tudo.)

3 Provavelmente a fábrica Casal Vieira, a única fábrica de confecções referida por Nadia ao longo dos seus depoimentos.

Entrevistadora: - O que estava dentro da casa? (Irina: Sim!)

Entrevistadora: - O homem era o quê? Português? (Irina: Ucraniano! (Nadia, 11 de Julho de 2003)

Três meses depois de estar a trabalhar como costureira na fábrica (Fevereiro a Abril), Nadia conseguiu mudar de local de trabalho, uma vez que o salário auferido era insuficiente para as suas necessidades básicas e para todas as obrigações económicas que tinha para com a família na Ucrânia:

Trabalha pró fábrica três mês, três mês, depois , pouco dineiro, pouco dineiro e... trezentos euros e dineiro pra casa, pra gás, pra luz, pra tudos e quero mandar pra Ucrânia e esto é pouco. (Nadia,

14 de Abril de 2004)

Nadia obteve, assim, um emprego no Hotel Virgem Maria, também em Fátima, onde desempenhava durante o período da manhã, tarde e noite as mais variadas tarefas: arrumadora de quartos, serviço de cozinha, limpezas, etc., uma situação laboral cuja descrição faz lembrar tempos de escravidão:

E depois trabalha pra Fátima hotel. Virgem Maria Hotel: muito grande hotel, da manhã trabalha na cama, lençóis, fazer tudo, tudo, tudo. Ao almoço trabalha pra cozinha, porque turista comer e trabalha pra cozinha, ajuda pra cozineira, trabalha na cozinha, tudo lavar a loiça Depois vai embora ,(tarefa incompreensível), aspirador e trabalha uma hora à noite. (Nadia, 14 de Abril de 2004)

Com o final do Verão e a diminuição do turismo, Nadia foi trabalhar, no mês de Outubro, para o Restaurante Panorama, ainda na mesma localidade, conseguindo finalmente obter um contrato de trabalho :

E depois, depois, Outubro mês vem e não há muito turista e não há muito trabalho. E depois trabalha pró restaurante Panorama, non? Panorama! Sim, Trabalha três, quatro mês, sim! E pra

4 Documento que permite ao estrangeiro que vem trabalhar para Portugal obter um autorização de

permanência, concedida por um ano e prorrogável até cinco anos, ao fim dos quais o estrangeiro deve requerer uma autorização de residência.

mim esto patroa mim contrato, tudo. E pagamento de ordenado mínimo. (Nadia, 14 de Abril de 2004)

Após aproximadamente três ou quatro meses neste posto de trabalho, Nadia rumou ao Alentejo e foi trabalhar nas limpezas, profissão na qual não conseguiu contrato de trabalho mas onde, segundo ela, havia sempre oferta de emprego e bons ordenados. Foi durante este período que obteve o seu segundo visto de permanência em Portugal: Depois vim pra Santarém limpeza. Limpeza muito boa porque pouco, pouco, pouco mais dineiro e muito trabalha, muito bom limpeza, limpeza muito trabalha. Também porque mais dineiro. Sim, sim. Outro não tem contracto. Primeira visto tem, outro visto não tem contracto. (Nadia, 14 de Abril de 2004)

Apesar das vantagens económicas, a não existência de contrato de trabalho fazia com que Nadia estivesse insegura em Portugal. Passara-se um ano e Valentina falou-lhe da possibilidade de trabalhar na fábrica de abat-jours, onde actualmente se encontra. A patroa (D. Adriana) dispôs-se a aceitar a sua entrada na empresa como trabalhadora legalizada, permitindo-lhe, assim, obter o terceiro visto de permanência e o tão desejado contrato:

Nadia: - Obrigada, Valentina! Chama eu para trabalhar. "Trabalha?" "Não, porque não há contrato." E depois foi falar com D. Adriana e trabalha na fábrica abat-jours e contrato e depois outra visa. E agora os três visa.

(Irma: Terceiro visto. Muito bom que nós encontrámos este senhor!) E obrigada Irina! Porque a Irina, primeiro trabalhar e ... ajudar .

(Irina ri-se)

Entrevistadora: - Quando veio trabalhar para a D. Adriana? Nadia: - Já há 1 ano. (Nadia, 11 de Julho de 2003)

Desta forma, Nadia trabalha na empresa de D. Adriana desde 2002, aquela que, para além de uma patroa é também uma confidente de todos os seus problemas e uma amiga que a tem ajudado nos momentos mais difíceis nestes últimos anos, marcados pelas doenças dos familiares, pela carência económica e pela falta de afecto:

E depois... depois trabalha pra Adriana. D. Adriana contrata e trabalha até na fábrica Pra mim muito bom, é muito bom tem trabalho, porque patroa é muito boa pessoa pra mim, muito muito ajuda, muito ajuda. Ui! Não quero outro trabalho, não quero! Quero mais dineiro, pouco dineiro, então, trabalho está aí! Muito boa pessoa. Pra casa problema, problema, fala problema e... irmã muito doente e filha quer roupa bonita e todo o dineiro...mãe sozinha, mãe sozinha, marido muito, muito beber. (Nadia, 14 de Abril de 2004)

De facto, a patroa tem demostrado grande solidariedade em relação à situação de Nadia. Embora ela não o tenha dito, a autora deste trabalho soube de fonte segura que o bilhete da viagem para a Ucrânia para ir assistir ao casamento do filho foi comprado com dinheiro emprestado por D. Adriana. Mas não só: foi graças aos conhecimentos da patroa que ela conseguiu obter a receita para adquirir um medicamento imprescindível aos tratamentos da sua irmã. Esse fármaco não se encontra à venda na Ucrânia por ser muito dispendiosa a sua importação da Hungria, no entanto, mediante receita médica, a sua venda é gratuita é Portugal:

E agora telefonaram pra mim: "Nadia quero estes comprimidos porque na Ucrânia não tem comprimidos, não tem." Estes comprimidos, está a ver: Hungria. Ucrânia não comprar estes comprimidos porque muito, muito dineiro estes comprimidos e precisa estes comprimidos e precisa de D. Adriana. E falar D. Adriana: "Quero estes comprimidos porque é muito difícil comprimidos pra Ucrânia.". E ela tem receito, receita, doctor. E depois D. Adriana ajuda a telefonar pra Lurdes e Lurdes, pra mim e pra Irina: "Vais ao Centro de Saúde da Cruz Vermelha.". E doctor pra mim receita e farmácia e tem comprimidos. Agora tem estes comprimidos.

E é muito caro?

Não. É nada. (Nadia, 14 de Abril de 2004)

Relativamente a Sonya, esta mulher teve um dia para descansar da viagem que fez juntamente com a sua filha e para se adaptar à nova condição de trabalhadora num país estrangeiro. Assim, dois dias depois de ter chegado a Portugal e de se ter juntado ao seu marido de quem estava separada há dois meses, começou a trabalhar num

restaurante, através de um contacto estabelecido pela sua cunhada que já se encontrava a residir no país:

Primeiro trabalhei no restaurante. Um ano. Tem muito problemas.

(Irina esclarece que chegou num sábado à noite e que na segunda feira de manhã foi logo trabalhar.)

E depois trabalha um ano pró restaurante. (Sonya, 13 de Abril de 2004)

L. - 1_