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3.4 DELIBERAÇÕES DO TRIBUNAL DO CONSELHO

3.4.1 As rendas das câmaras e as questões relativas aos arrendatários e admissão de

A discussão sobre as rendas das câmaras suscitou novo impasse no Tribunal. Os conselheiros tomaram como base a contabilidade dos pagamentos dos foreiros aos missionários apresentada pelo juiz Bittencourt e Sá e a sua sugestão de que os valores pagos pelos arrendatários fossem repassados à câmara271. O conselheiro Mascarenhas interpôs ao

debate a situação contraditória resultante da deliberação de manutenção das terras em comum pelos índios. Propôs que se discutisse e deliberasse primeiro sobre a permissão ou não de admitir arrendatários nos termos das vilas,

O debate sobre o tratamento a ser dado aos rendeiros existentes nas terras inclusas no termo da vila e destinadas aos índios como patrimônio foi polêmico. No seu parecer, o juiz Bittencourt e Sá expressou que apesar de considerar útil manter os rendimentos pagos pelos mais de noventa rendeiros. Embora, eles representassem uma renda de quase cento e trinta mil réis, no caso de Abrantes, a melhor decisão seria manter apenas os que estivessem nos

268 AHU, doc. 10701. CONSULTA, fl. 32. (CD 17, 142, 2, p. 0265). 269 AHU, doc. 10701. CONSULTA, fl. 34. (CD 17, 142, 2, p. 0266). 270 AHU, doc. 10701. CONSULTA, fl. 54 a 55. (CD 17, 142, 2, p. 0276). 271 AHU, doc. 10701. CONSULTA, fl. 37. (CD 17, 142, 2, p. 0267).

“extremos dos confins da Vila e fazerem desalojar os mais para fora do termo”272. Portanto, o

arrendamento das terras dos índios deveria ser restrito a certos locais ou não ser permitido, na opinião desse juiz.

Antes de discutir e votar a proposta, o conselheiro Mascarenhas alertou que deveria ser analisada e decidida uma questão anterior e considerada fundamental: Se os índios podiam admitir ou não outros portugueses no termo das suas vilas? Após debaterem o assunto, os conselheiros votaram pela proibição de arrendatários ou quaisquer outros portugueses no “distrito do termo das vilas”273 exceto os negociantes. A fundamentação dessa deliberação,

válida para todas as novas vilas, foram:

1. Proibição expressa no Regimento das Missões e outras leis, tendo em vista que não foram revogadas pelas novas leis decretadas pelo rei.

2. Consideração sobre o fato da infertilidade das terras na América, sendo necessário, depois de algum tempo de cultivo, deixar outro tempo em descanso.

3. Garantir proteção às índias consideradas ingênuas e expostas aos abusos por parte dos colonos.

Dessa forma, o Tribunal deliberou proibir os rendeiros no termo da vila e estabeleceu um prazo de dois anos para que os arrendatários existentes colhessem suas lavouras. Recomendaram ainda que os oficiais das câmaras marcassem as roças com balizas para que não tornassem a plantar e esgotassem as terras274.

Novamente, Antônio Coutinho e Mascarenhas se manifestaram contrários ao parecer de Bittencourt e Sá e aos argumentos levantados no Tribunal. Expressaram severa crítica ao que consideraram contradições na exposição dos argumentos. Alegaram que nenhum povo, mencionando os gregos, os romanos e até os portugueses antigos, alcançaram a civilização longe do convívio com outros povos mais avançados. Sendo assim, não se poderia negar aos índios, nem mesmo aos mais bárbaros, essa convivência. Além do mais, Vossa Majestade havia concedido a “liberdade os seus habitantes, igualando com os outros vassalos, e até prometendo prêmios aos que pela aliança do matrimônio se misturassem com os Índios pela lei de quatro de abril [1755]”275. Enfim, defendiam a admissão de todo tipo de pessoa, menos

272 AHU, doc. 10701. CONSULTA, fl. 37. (CD 17, 142, 2, p. 0267). 273 AHU, doc. 10701. CONSULTA, fl. 38. (CD 17, 142, 2, p. 0268). 274 Ibidem.

os vagabundos e perturbadores que deviam ser expulsos, conforme a lei praticada em todos os lugares, naquele tempo.

Sobre o argumento baseado no Regimento das Missões, reafirmaram que tal lei foi estabelecida para proteger os índios cativos, regulamentando os repartimentos que eram expressamente proibidos pela nova lei. A realidade do contexto das reformas era outra, pois, as novas vilas teriam seus “magistrados a quem se entrega todo o governo econômico, político e militar das suas respectivas vilas”276. Alertaram que a prática comercial se tornaria impraticável nas vilas se fosse proibido à admissão de negociantes. Que interesse eles teriam em se deslocarem léguas e mais léguas nos sertões aos locais que somente podiam permanecer apenas durante um dia? Seria preciso admiti-los, provisoriamente, nessas localidades.

A negação do argumento de que a extensão dos termos das vilas representava um fator limitante ao povoamento, seja pelo pouco número de índios, seja pelo tamanho, não era procedente, segundo Mascarenhas, uma vez que os territórios das aldeias não eram pequenos como julgava o Conselho. Mencionou o caso da vila de Abrantes onde um grupo de quarenta índios detinha a posse de seis léguas quadradas de terra, e as outras vilas sobre as quais tinham conhecimento – de Nova Almada, Trancoso, Vila Verde e Nova Benavete – (capitanias de Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo),

tem tão largas terras, que só esta [Nova Benavete] possui doze léguas de terras pela costa do mar com um fundo indefinido, pois se estende pelos Sertões, até onde não podem penetrar ficando o termo desta vila mais extenso que os das maiores Cortes de toda a Europa277.

A promoção da miscigenação, através de casamentos entre as índias e portugueses, foi o argumento utilizado pelos conselheiros para justificar a posição contrária a proibição dos moradores portugueses nas vilas dos índios. Questionaram como as índias encontrariam noivos, se os portugueses não fossem admitidos nas vilas. Na opinião desses conselheiros, outros moradores não deveriam sequer ser preteridos para os cargos de oficiais das câmaras, inclusive, porque, ao contrário do que pensava o juiz, as ordens reais apenas recomendavam e não tornavam obrigatório dar preferência aos índios278.

276 AHU, doc. 10701. CONSULTA, fl. 42. (CD 17, 142, 2, p. 0272). 277 Ibidem.

A miscigenação ainda foi tema de longas exposições de Antônio Coutinho e Mascarenhas279. Apontaram contradições na deliberação que proibia os arrendatários e os portugueses nas vilas e terras dos índios. Os fundamentos utilizados por eles foram: a Lei de 4 de abril de 1755, que incentiva os casamentos interétnicos, e a decretada liberdade dos índios, que os equiparava aos demais súditos. Segundo o entendimento deles, foram derrogadas todas as legislações anteriores e todas as formas de limitação da liberdade indígena em decidir sobre todas as matérias, tais como arrendamentos, a posse e uso das terras, a formação do governo local e os casamentos.

No decorrer dos debates, esses conselheiros explicitaram os motivos de suas avaliações contrárias às proibições dos índios de arrendarem terras, mesmo as que fossem em comum, e de definirem as atribuições e a composição da câmara. Os conselheiros retomaram velhos argumentos da promoção da civilização e do aprendizado das técnicas agrícolas, alegando que os índios poderiam aprender muito com a agricultura praticada pelos brancos, cujos resultados, no aproveitamento das terras, eram maiores. Nesse sentido refutaram a alegação relativa à baixa fertilidade das terras, contrapondo que “depois que também a agricultura se fez arte, não há terrenos incultos, pois o cultivar com mais trabalho as terras, é um modo de se não esterilizarem, como até nesta América se comprova experimentando- se”280. Essa opinião evidenciou a mentalidade dos conselheiros, baseada nos princípios

“racionais” e na paisagem europeia dos vinhedos, das manufaturas, do comércio de variados produtos281.

A partir dessa visão projetaram uma nova imagem, moderna e “científica”, para as vilas indígenas, que, mesmo sendo povoadas por arrendatários portugueses, não se aproximavam do ideal projetado nas considerações manifestadas. Os argumentos levantados pelos dois conselheiros estavam pautados na concepção ilustrada, revelada historicamente pela supremacia das civilizações mais avançadas na economia, política e ciências que subjugaram, inclusive com guerras sangrentas, aquelas mais atrasadas, brutas e ignorantes. Reafirmavam a concepção de que a barbárie foi o processo inicial de grandes civilizações,

279 AHU, doc. 10701. CONSULTA, fl. 44-49. (CD 17, 142, 2, p. 0271-0273). 280 AHU, doc. 10701. CONSULTA, fl. 52. (CD 17, 142, 2, p. 0275). 281 Ibidem.

inclusive de Portugal, que, apenas, através do contato com outras civilizações mais avançadas puderam saíram da brutalidade e selvageria282.

Os conselheiros tinham noção que os portugueses representavam um risco, especialmente para a “honra e decoro das índias”. Tal preocupação era amenizada através da alegação que era insignificante o risco, considerando-se o próprio comportamento dos índios, que “por brutalidade de gênio vivem neste ponto com tão pouco escrúpulo e tão admirável indecência que se diferenciam pouco dos irracionais”283. Entrementes, eles acreditavam que todos eram seres humanos, por mais depravados que fossem, eram capazes de assimilar a modéstia, a obediência e os preceitos divinos.

Concluíram a exposição dos motivos de seus votos contrários à proibição dos portugueses nas vilas, alegando ser “utilíssimo promover que para todas as aldeias fossem habitar alguns portugueses pobres, que se misturassem com os antigos moradores índios”284.

Defenderam que seria mais útil incentivar essa mistura em todas as aldeias “visto que esses de Abrantes sem embargo de terem atualmente nas suas terras mais de 90 portugueses, não puderam cultivar em duzentos anos, quanto mais destruí-las em tão poucos anos, como se considera”285. Na demonstração deles a presença dos brancos não interferiu ou impediu os

índios de cultivarem ou não as terras que detinham a posse e os portugueses não destruíram as terras com seu cultivo, portanto, proibir a presença deles nas vilas foi considerado um retrocesso maior e um descumprimento das ordens decretadas.

As longas exposições de motivos dos conselheiros Coutinho e Mascarenhas foram registradas na consulta enviada ao rei, conforme o regulamento do Tribunal. Todavia, foram mantidas as deliberações assentadas de não se admitir arrendatários ou quaisquer outros portugueses nos distritos do termo das novas vilas, o estabelecimento dos termos das vilas pela mesma extensão dos aldeamentos e a conservação das terras destinadas ao uso pelos índios como patrimônio comum dos mesmos. Essas deliberações foram adotadas nas instruções e provisões elaboradas pelo Tribunal para a criação das vilas e foram debatidas novamente na análise sobre o Diretório dos Índios em maio de 1759.

282 AHU, doc. 10701. CONSULTA, fl. 48. (CD 17, 142, 2, p. 0270). 283 AHU, doc. 10701. CONSULTA, fl. 54. (CD 17, 142, 2, p. 0276). 284 AHU, doc. 10701. CONSULTA, fl. 53. (CD 17, 142, 2, p. 0275). 285 AHU, doc. 10701. CONSULTA, fl. 50. (CD 17, 142, 2, p. 0274).

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