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1.3 O PROJETO DAS REFORMAS IDEALIZADO NO REINO

1.3.2 Reorientação do projeto para abreviar a execução das reformas

As fontes permitem deduzir que a intenção dos secretários era implantar as reformas em um curto prazo, mas a completa efetivação implicava em enfrentar desafios tais como: a distância e o tempo da viagem da comissão e a circulação das notícias e ordens entre Portugal e a Bahia. O fator tempo deve ser observado para o entendimento do processo, uma vez que no mês de maio de 1758 foram escritos os decretos no reino, mas tornados públicos no Brasil cerca de três meses depois. Considerando que o percurso da viagem marítima entre os portos de Lisboa e de Salvador durava em média dois meses e as adversidades por conta da natureza ou outra ordem ocorriam com frequência a exemplo da viagem da comissão nomeada para executar as reformas no ultramar.

A circulação dos documentos acontecia da seguinte forma: existiam as frotas do próprio Estado português ou de particulares, autorizados, que faziam o comércio do Império, saindo de Lisboa e a ela retornando. Essas naus também exerciam as funções de correios levando e trazendo as correspondências oficiais e particulares de Portugal e seus domínios. No que tange às correspondências oficiais, apenas o governador ou o vice-rei tinham autorização para resgatá-las do cofre onde eram guardadas. As suas respostas, para serem enviadas, era preciso esperar o retorno de alguma frota, geralmente, se tinha alguma, esperava-se cerca de 30 dias até que fossem conferidas a carga e os passageiros, realizadas as

82 AHU_CU_CONSULTAS DA BAHIA, cod. 603. Rolo 39, filme 296-302. CARTA RÉGIA para Mascarenhas

inspeções, descarga das mercadorias e os consertos das avarias das naus. Nesse meio tempo, todas as correspondências para Portugal eram organizadas e, às vezes, reescritas com a data próxima a do dia do embarque83.

O tempo administrativo84 foi determinante para o desenho da nova logística, prevendo- se o surgimento de conflitos, dificuldades e dúvidas entre os envolvidos e as questões de interpretação das leis que pudessem ser interpostas pelos desembargadores da Relação da Bahia e do Rio de Janeiro. Caso eles ocorressem, isso implicaria na necessidade de fazer consultas ao rei e deliberando-se após a análise e o parecer do Conselho Ultramarino ou da Mesa de Consciência e Ordens, o que prolongava o tempo das reformas. Visando abreviar o tempo, os secretários decidiram pela instalação de dois Tribunais Especiais desses órgãos na Bahia, com autoridade para deliberar sobre todas as matérias alusivas ao Alvará de 8 de maio de 1758. Nesse novo formato, as reformas referentes à aplicação do Alvará e a reforma geral da Companhia foram separadas para serem efetivadas em etapas definidas85.

O novo formato da estrutura logística requeria magistrados escolhidos entre os graduados nas instituições lusas e agraciados com a Ordem do Hábito de Cristo, premissa indispensável para serem conselheiros. Os papéis e funções dos desembargadores Mascarenhas e Barberino foram redefinidos e ambos foram nomeados conselheiros encarregados de instalar na Bahia os tribunais especiais em conjunto com Antônio de Azevedo Coutinho, membro ordinário do Conselho Ultramarino86. Convém destacar que na

mesma oportunidade, Coutinho havia sido encarregado para a missão especial de fazer vistoria geral nas contas da Real Fazenda da Bahia.

Na Bahia, o Tribunal do Conselho de Ultramar seria presidido pelo vice-rei do Estado do Brasil e capitão-general da Capitania da Bahia, dom Marcos de Noronha, conde dos Arcos,

83 TORRES, Mário. Os correios. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Salvador, n. 35, 1939.

______. Os correios. Annaes do Arquivo Público e do Museu do Estado da Bahia [AAPEB], v. 3, p. 76-77, 1918. Ver referência sobre esse correio e essa fonte em: KANTOR, Esquecidos e renascidos ..., 2004. p. 123.

84 Por tempo administrativo compreende-se o intervalo decorrente das viagens das frotas que saiam e

retornavam anualmente a Portugal, conforme a análise sobre a importância da correspondência para a administração do império em SANTOS, M. N. A escrita do império..., In: SOUZA, L. M. e, FURTADO, BICALHO, (orgs.). O governo dos povos. 2009. p. 171-192.

85 Frente a essa nova logística discordamos da afirmação de Kantor que vincula a instalação dos tribunais à

realização da reforma geral da Companhia, com o confisco de seus bens e sua expulsão do reino e seus Domínios. Ver: KANTOR, 2004, p. 117-119.

86 Nomeado para conselheiro do Conselho Ultramarino em 16 de outubro de 1755. CAETANO, M. O Conselho

Ultramarino..., 1969. p. 79/83. Apêndices n.º 5: Presidentes e conselheiros do Conselho Ultramarino apud BARBOSA, M. S. F.; ACIOLI, V. L. C. ; ASSIS, V. M. A. Fontes repatriadas..., 2006. p. 113-117.

e o da Mesa de Consciência e Ordens, presidido pelo arcebispo dom Botelho. Essa estratégia envolveu as autoridades e as instituições locais na execução das reformas sem o enraizamento pessoal dos conselheiros, que ficariam limitados a obedecer, estritamente, as medidas formuladas no reino. Essas se constituíam, na essência do projeto, sua parte inflexível, isso é, sem possibilidades de interpretações. A ação local permitia certa flexibilidade, porém, ficou definido que ninguém, nenhum argumento ou instituição impediria ou atrasaria a realização das reformas.

FIGURA 3 - QUADRO DA RELAÇÃO DOS DOCUMENTOS EXPEDIDOS EM 19 DE MAIO DE 1758 REFERENTES AO CUMPRIMENTO DO ALVARÁ DE 8 DE MAIO DE 1758

Vice-rei Arcebispo

Carta Instrutiva recomendando guardar inviolável segredo as Carta Régias que lhes remetem, até a hora em que as for dando á sua devida execução. Belém, 19 de maio de 1758. Essa carta é assinada por Francisco Xavier de Mendonça Furtado.

Carta Régia participando as nomeações de três desembargadores para conselheiros do Conselho Ultramarino com jurisdição se constituir Tribunal. (doc. 3634)

Carta Régia participando que os desembargadores nomeados para o Conselho Ultramarino estavam incumbidos de constituírem um Tribunal da Mesa de Consciência e Ordens para tratarem dos negócios relativos ao provimento das novas paróquias. (Transcrita) (Doc. 3645)

Carta Régia participando as nomeações de três desembargadores para atuarem como membros do Tribunal da Mesa de Consciência e recomendado a prestação de toda assistência solicitada ao arcebispo.

Carta Régia […] em que se lhe remete a carta para o Provedor da fazenda pagar as côngruas aos párocos das vigararias de cada uma das paróquias que até agora administravam os Religiosos da Companhia.

Carta Régia [...] caso de haver substituição de um dos ministros enviado do Reino, por falecimento, legítimo impedimento, que se continue a execução das suas Reais Ordens pelos que sobreviverem, e estiverem desimpedidos.

Fonte: Elaboração da autora com base em: AHU_CU, cx. 20, doc. 3629-3650 (doc. 3634, 3645). [Castro e Almeida, doc. 0011-0036]. AHU_CU_Códices, cod. 306, MF. Rolo 39, docs. N[º]. XI; XIII - f. 269, 313-317; XIV.

A Carta Régia ao arcebispo expõe algumas concepções ilustradas características dos escritos do ministério josefino evidenciadas na postura racional, demonstrando a origem das ideias propostas e a convicção de se estar implantando uma nova ordem, ainda, que, orientada por valores antigos87. Os escritos também expressavam o discernimento entre as atribuições e as jurisdições das diversas autoridades e organismos sobre a separação dos poderes seculares e eclesiásticos, bem como a articulação e complementaridade das mesmas na esfera política e na realização da vontade suprema do rei88.

FIGURA 4 - QUADRO EXPLICATIVO DA CARTA RÉGIA EXPEDIDA AO ARCEBISPO D. BOTELHO, COMUNICANDO A NOMEAÇÃO DOS CONSELHEIROS, DEFININDO AS INSTRUÇÕES GERAIS E O PAPEL DO ARCEBISPO - 1758

Saudação e intitulação Reverendo em Christo Padre, Arcebispo da Bahia, Amigo. Eu Elrei vos envio muito saudar, como aquele, de cujo acrescentamento muito me prazeria.

Narrativa ou exposição Fui servido mandar passar a essa cidade os Doutores Antônio de Azevedo Coutinho, José Mascarenhas Pacheco Coelho de Mello e Manoel Estevão de Almeida de Vasconcelos Barberino, conselheiros do Conselho do Ultramar encarregados de algumas diligências do Serviço de Deus e meu com a jurisdição de erigirem Tribunal nessa Cidade e nas Casas da Relação dela de tarde para não embaraçarem o despacho Ordinário;

Exposição dos motivos E porque entre todos os negócios que presentemente ocorrem nesse Estado é o mais importante o de dar Pároco próprio do Hábito de São Pedro aos Índios na forma que vos encarreguei como Governador e Perpétuo administrador das ordens militares, e podem ocorrer alguns incidentes que necessitem ser consultados pela Mesa de Consciência e Ordens.

Dispositivo ou ordem Na mesma qualidade de Governador e Perpétuo administrador das referidas Ordens de que todos os ditos Ministros são cavaleiros: hei por bem conceder-lhes toda a necessária comissão para erigirem tão e bem Tribunal de Ordens ao dito respeito ou todos três juntamente ou dois deles no impedimento ou ausência de qualquer que suceda faltar para os negócios concernentes a remoção dos Párocos atuais da Companhia de Jesus e provimentos dos clérigos seculares, e que devem ser nomeados para as ditas Igrejas:

87 ALMEIDA, R. H., 1997.

88 SILVA, 2006. Em nota de rodapé as observações dessa autora em relação aos ideais ilustrados, como a

centralização e fortalecimento da monarquia em todas as esferas, inclusive no espiritual, apoiado pelo regalismo, definido como “sistema jurídico-religioso, preconizador da intervenção excessiva do rei ou Estado na vida eclesiástica” (2006, p. 43) fundando-se no suposto dever dos monarcas buscarem o bem dos seus súditos, inclusive o espiritual. Padroado segundo definição de Hoornaert: “uma forma típica de compromisso entre a Igreja de Roma e o governo de Portugal. Unindo os direitos políticos da realeza os títulos de grão-mestre de ordens religiosas, os monarcas portugueses passaram a exercer ao mesmo tempo o governo civil e religioso, principalmente nas colônias e Domínios de Portugal”. HOORNAERT, Eduardo. O padroado português. In:______. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, V. 2, 1979. p. 163.

Clausulas finais: obrigação. Presidindo vós com voto de qualidade, quando para isso não tiveres justo impedimento, porque tendo-o, substituirá o vosso lugar entre os Ministros, que se acharem presentes o que for mais antigo.

Instruções Consultando-se imediatamente a minha Real Pessoa o que parecer aos ditos respeitos sem suspensão do que se houver assentado pelo maior número de votos assim pelo que pertencer aos negócios ocorrentes, como pelo que respeita aos provimentos das Vigairarias novamente eretas com a idoneidade dos sujeitos que devem ser nelas nomeados por mim.

Garantia Pondo vos entretanto os Curas interinos que julgares mais capazes, Como vos tenho significado e observado se tudo o referido nesta e conformidade, sem embargo de quaisquer Leis, Regimentos, Disposições Ordens ou Costume contrários.

Data e assinatura Escrita em Belém a 19 de maio de 1758. “Rey” (as cópias são assinadas pelo Escrivão Joaquim José de Andrada).

Fonte: Carta Régia do rei D. José ao arcebispo da Bahia, D. José Botelho de Matos89.

Como se pode confirmar na carta apresentada, após a saudação, o rei participava ao arcebispo a nomeação dos conselheiros encarregados de estabelecer o Tribunal da Mesa de Consciência e Ordens. Ordenava respeitar o regimento dessa instituição que detinha a atribuição, em última instância, de nomear os párocos colados nas freguesias do reino e dos domínios90. De acordo com o regimento, tal função seguia um ritual que foi aplicado na

Bahia com a realização de concursos para escolher e nomear ou colar os clérigos do Hábito de São Pedro nas novas freguesias ou vigararias criadas91. Como membros do Tribunal, os

conselheiros, enquanto cavaleiros da Ordem, assumiram os negócios concernentes à remoção dos jesuítas e provimento dos párocos seculares. A carta ainda instruía sobre o funcionamento do Tribunal e reafirmava a superioridade dos representantes do rei sobre quaisquer outras instituições, leis e costume contrários92.

89AHU_CU, cx. 20, doc. 3645 [Castro e Almeida, doc. 0011-0036]. CARTA RÉGIA (minuta) do Rei [D. José] ao

Arcebispo da Bahia [José Botelho de Matos] e vice-rei e governador geral do Brasil, conde dos Arcos, Marcos de Noronha, comunicando a instituição do Tribunal da Relação na Bahia para averiguar os bens dos religiosos jesuíticos e a criação das vilas nos antigos aldeamentos. O manuscrito original encontra-se no AHU_CU_Códices, cod. 603, Microfilme rolo 39, doc. N. XI, f. 311.

90 NEVES, 1997.

91 Vigararias, também se escreve vigairarias, é o mesmo que prelazia, separada de um bispado, “é uma área de

transição para a categoria de diocese na qual um sacerdote representa o poder com autonomia administrativa”. Ver: FRIDMAN, Freguesias fluminenses ao final do Setecentos. 2009. Após a criação, as vigararias passaram a ser chamadas mais comumente como freguesias. Uma freguesia podia ser criada em povoados com um mínimo de casas ou famílias que se constituíram nos fregueses.

Ao arcebispo foi expedida outra Carta Régia com ordens relativas ao cumprimento do Alvará, naquilo que era sua jurisdição: a nomeação de padres seculares e a transformação das missões em vigararias o que será abordado em um capítulo específico deste trabalho.

Quanto às medidas abarcando a esfera do governo civil, ao vice-rei, conde dos Arcos, foram expedidas outras Cartas Régias relacionadas com as atribuições do arcebispo e do Tribunal da Mesa e Ordens recomendando que prestassem todo o auxílio civil e militar, quando fosse requisitado, a fim de garantir o afastamento dos padres da Companhia e a sua imediata substituição pelos seculares. Tratavam também das questões relativas ao cumprimento do Alvará de 8 de maio, como, por exemplo, a liberdade dos índios e a instalação do governo civil nas vilas a serem criadas. A palavra do rei, como de praxe, não deixava margem para dúvida, “sou servido ordenar-vos, que logo que receberes esta, façais dar as sobreditas Leis a sua devida e plenária execução”93.

O vice-rei também recebeu uma Carta Régia comunicando a nomeação de conselheiros com a autoridade para estabelecerem o Tribunal Especial do Conselho de Ultramar94, assunto tratado no Capítulo 3 desta tese. Essa carta integrava um conjunto de

documentos que os três conselheiros trouxeram do reino e que foi entregue ao vice-rei logo que aportaram em Salvador.

A mesma nau que transportou os emissários reais e o cofre contendo a relação dos documentos, também trouxe a cópia de uma correspondência com instruções secretíssimas95.

Nessas instruções constam as orientações gerais e a ordem ou recomendação de que tudo deveria ser mantido, inclusive as cartas régias, no mais inviolável sigilo, até o momento em que fossem executadas. As instruções revelam um plano de ação cronometrado. Previa que o vice-rei deveria agir juntamente com o arcebispo e os conselheiros, fornecendo toda a assistência ao cardeal Saldanha e seus subdelegados, para fazer as reformas na Companhia de Jesus. Deveria também comunicar a esses religiosos a exigência de que eles reconhecessem a indicação do arcebispo-cardeal como subdelegado reformador e os seus mandamentos. Especificamente ao arcebispo, cabia comunicar os jesuítas que deveriam sair das missões e a

93AHU_ACL_CU_005, Cx. 136, D. 10526. CARTA RÉGIA para o vice-rei...

94Ver anexo 3 desta tese: CARTA RÉGIA dirigida ao vice-rei Conde dos Arcos, em que lhe participa as

nomeações dos Desembargadores com a jurisdição de se constituírem em Tribunal na Cidade da Bahia.

95 AHU_CU_Códices, cod. 306, microfilme Rolo 39, doc. XIII, f. 313-317. Essas instruções secretíssimas

constam como sendo de autoria de Francisco Xavier de Mendonça Furtado. A cópia é datada de Belém, 19 de maio de 1758.

consequente substituição desses pelos padres do Hábito de São Pedro. Advertia sobre a necessidade de cautela com os jesuítas, pois se sentiam poderosos haja vista a supremacia que exerciam sobre os índios.

Nas instruções secretíssimas96, o inventário e o sequestro dos bens de raiz foram alvos de orientações pormenorizadas, ordenando que se devesse manter segredo até que fossem estabelecidas as vilas, os jesuítas substituídos pelos clérigos seculares, os índios livres e exercendo o governo com seus magistrados. Alertava-se também que, depois de cumpridas essas exigências, o conselheiro Barberino deveria aguardar a chegada da Frota do Estado com novas orientações.

Em relação ao sequestro dos bens de raiz dos Jesuítas, o rei mandou prevenir que se referiam apenas àqueles explicitados nas cartas régias. Esclarecendo os bens móveis dos religiosos pertenciam a jurisdições distintas. As alfaias (aparatos utilizados nas celebrações litúrgicas) e, demais ornamentos das igrejas estavam subordinados à jurisdição espiritual do arcebispado e não dos oficiais. Os outros bens semoventes e móveis como as residências, os engenhos, as fazendas, os escravos, tachos e caldeiras eram sujeitos à jurisdição real. Todos esses bens, se instalados nas sesmarias destinadas às missões e aldeias dos índios, foram declarados como frutos do comércio ilícito e deveriam ser confiscados imediatamente em favor dos mesmos índios. Pelos termos das leis, o arcebispo tinha dois títulos legítimos para confiscá-los: um como subdelegado do cardeal reformador e outro como ordinário, a quem as bulas papais permitiam tal execução97. A última instrução era a ordem para que fossem

enviados ao reino os jesuítas estrangeiros (não portugueses) e os revoltosos, a exemplo do que se fez no Maranhão98.

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