• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DA SEQUÊNCIA DE ABERTURA DE TRUE BLOOD

4.1 AS SÉRIES CONTEMPORÂNEAS E SUAS ABERTURAS

As primeiras obras de ficção serializada a surgirem na televisão foram as telenovelas, na década de 40. Porém, foi somente a partir dos anos 50 – A Primeira Era de Ouro da Televisão – que os seriados, no formato em que são conhecidos atualmente, apareceram na TV. I Love Lucy, produzido em 1951 pela CBS, marcou não só a estreia dos seriados na televisão, mas também do futuramente aclamado subgênero da sitcom, a comédia de situação.

A partir de 1980, período que ficou conhecido como Segunda Era de Ouro da Televisão, algumas mudanças ocorridas no mercado televisivo impactaram significativamente a produção da ficção serializada. Uma delas foi a expansão dos canais pagos da TV por assinatura, que provocou a segmentação da audiência e permitiu que esses canais passassem a produzir conteúdos específicos para determinados nichos, possibilitando que os realizadores experimentassem e ousassem mais livremente em suas obras. Outras mudanças de impacto na área foram ainda o desenvolvimento de tecnologias de gravação e reprodução de vídeos e a popularização do VHS28, que permitiram que os conteúdos transmitidos pudessem ser reassistidos a qualquer momento, conferindo-os um pouco mais de independência da grade de programação. Com isso, a possibilidade de reassistir as obras, pausá-las ou assisti-las a qualquer momento contribuiu para a formação de uma audiência mais engajada.

Inicia-se assim o período das séries complexas, de narrativas compostas por uma lista extensa de personagens, inseridos em múltiplas tramas que se entrelaçam e que podem permanecer abertas ao longo de vários episódios ou até mesmo temporadas. Uma outra característica dessas obras é a busca pelo realismo, tanto nas escolhas técnicas e estéticas quanto na composição das personagens. Os protagonistas agora são os heróis problemáticos, ou anti-heróis, que possuem falhas, atitudes questionáveis e que permitem a exploração temática de ansiedades contemporâneas e questões político-sociais.

28 Video Home System. Formato de mídia referente à gravação analógica em fitas de vídeo, também conhecidas como videotape ou videoteipe.

A Segunda Era de Ouro não só inaugurou o conceito de “série de qualidade”, mas foi também ela que lançou a discussão sobre qualidade na TV29, que seria reavivada e enfatizada anos depois pela HBO, com a adoção do slogan “It’s not TV. It’s HBO.”30 Dessa forma, o período compreendido entre os anos 80 e 90 teve importância crucial para a história das séries, uma vez que foi nele em que se criaram as bases para o que viria a ser as bem-sucedidas e populares séries contemporâneas, conhecidas pela complexidade de suas tramas e pela profundidade de seus personagens.

É durante a Terceira Era de Ouro da Televisão, entre o final de 1990 e início dos anos 2000, que essas séries se desenvolvem e se popularizam, e que a HBO lança seu famoso slogan.

Além das características já adquiridas no período anterior, como complexidade narrativa, realismo e profundidade de temas e personagens, as séries da Terceira Era destacaram-se por seu caráter cinematográfico. Isso foi possibilitado graças à chegada de alguns recursos tecnológicos ao contexto televisivo e à migração de profissionais do cinema para as séries de televisão.

As novas tecnologias televisivas, como: “telas de cristal líquido, de plasma 3-D, Bluray” (MARTIN, 2014, p.33) permitiram a exploração de novas possibilidades. Os profissionais de televisão, Agora, poderiam trabalhar com sombras e com o escuro, com a hipnótica profundidade de campo, com tomadas amplas, lindas e intermináveis, com a pirotecnia manual, e toda a gama de recursos que antes só existiam nos filmes para cinema”. (MARTIN, 2014, p. 34 apud UCHÔA, 2017, p. 22).

Uma outra característica que favoreceu o avanço e a manutenção de qualidade das séries foi o surgimento do profissional denominado showrunner, “que possui os papeis de autor e produtor atrelados a mesma pessoa, garantindo unidade de sentido à série” (SILVA, 2014 apud UCHÔA, 2017, p. 23).

Mas sem dúvida, as maiores transformações sofridas pelo formato durante esse período ocorreram em função do crescimento das plataformas de streaming. Dentre elas, a Netflix, que foi fundada em 1997; transformou-se em um serviço de streaming 10 anos depois; e iniciou sua produção de conteúdos originais em 2012, estreando em 2013 seu primeiro original a se tornar um grande sucesso de crítica e público, House of Cards.

29 Em A televisão levada a sério (2000), Arlindo Machado possui uma seção dedicada à discussão sobre qualidade em televisão. Nela, ele atribui o surgimento da expressão “quality television” à publicação de um livro que discorria sobre a contribuição da M. T. M. Enterprises – responsável pela produção do seriado Hill Street Blues (1981-1987) – à televisão. Além disso, tal discussão é trazida à tona diversas vezes pelo autor, que possui vasto estudo relacionado ao tema.

30 Tradução livre: Não é TV. É HBO.

Algumas das mais importantes modificações proporcionadas às séries pelo desenvolvimento dos serviços de streaming relacionam-se à questão da não exibição de suas obras dentro de uma grade de programação e consequente não dependência dessa mesma grade por parte dos espectadores, que adquiriram mais flexibilidade em seu modo de consumo. A partir de então, os produtores não precisavam mais garantir que a quantidade de episódios por temporada e a duração destes fossem padronizadas – pois não era necessário encaixá-los em uma programação fixa. Um outro fator que beneficiou essas produções foi a possibilidade de diluir elementos da narrativa ao longo dos episódios, visto que eles poderiam ser consumidos a qualquer momento – inclusive seguidos um ao outro – e não estavam presos, como na televisão, a um esquema de exibição semanal, em que um único episódio era transmitido a cada semana, e a exibição de uma temporada completa poderia levar meses. Com isso, “todas as demandas a serem cumpridas em um único episódio de uma série televisiva, podem ser diluídas em três ou quatro episódios” (UCHÔA, 2017, p. 34). Portanto, com todas essas transformações trazidas pelo sistema das plataformas de streaming, as séries originais desses serviços passaram a disponibilizar de maior liberdade criativa em suas produções.

De modo a sintetizar o que vimos aqui, podemos dizer que as séries contemporâneas se caracterizam por suas narrativas multicamadas e entrelaçadas, compostas por uma grande quantidade de personagens, de personalidade complexa, controversa, falha e humana e que, por isso mesmo, são mais relacionáveis e possibilitam a fácil identificação por parte do público. As temáticas, por sua vez, costumam explorar questões políticas, sociais, ansiedades contemporâneas, entre outros assuntos potencialmente capazes de gerar reflexões. Soma-se a isso: um visual de aspecto cinematográfico, expressivo e marcado pela monumentalização típica da técnica cinematográfica; um enredo repleto de reviravoltas e que Mittell (2006) chama de “narrative special effect”31, cuja intenção é “impressionar através de uma narrativa que quebre as convenções de narração de uma forma espetacular” (MITTELL, 2006, p. 36 apud UCHÔA, 2017, p. 31); quebra de paradigmas; e quebra da linearidade e da lógica espacial e temporal, com flashbacks e flashforwards, sonhos, fantasias, delírios, alucinações etc., sem preocupação com a desorientação do espectador.

Dito isso, é possível perceber vários pontos em comum entre as séries contemporâneas e a identidade adotada pela Music Television – o que não é uma surpresa, uma vez que ambas estão sujeitas a influências semelhantes, como a pós-modernidade, os avanços tecnológicos no contexto das mídias digitais e as transformações ocorridas na televisão e nos demais meios

31 Tradução livre: efeito especial narrativo.

audiovisuais. Dentre as características compartilhadas, podemos citar: a expressividade do visual cinematográfico, a espetacularização, o interesse pela quebra de paradigmas e o rompimento com as convenções espaciais e temporais.

Portanto, ao idealizar as sequências responsáveis por introduzir essas obras, prenunciando suas complexas tramas e personagens e estabelecendo adequadamente seu tom e sua atmosfera, nada mais natural do que construir sua abertura com uma linguagem visual tão contemporânea, múltipla, arrojada, expressiva, monumental e intensa quanto a linguagem da própria série. Um interessante adendo a ser feito é também o fato de que, constantemente, para dar conta da multiplicidade e do entrelaçamento dos temas e narrativas dentro da obra, é necessário que a abertura comporte uma série de imagens distintas, desconexas e descontínuas em sua sequência, tal como ocorre com a abertura de True Blood, que analisaremos a seguir.