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CAPÍTULO 1 – A LINGUAGEM VISUAL DA MTV

1.3 A UNIDADE VISUAL DA MTV

O videoclipe pode até ter sido o principal produto da Music Television ao longo de sua história e pode inclusive ter emprestado seu nome para intitular aquilo que ficou conhecido como sinônimo de “estilo MTV” – a “estética do videoclipe”. No entanto, é preciso lembrar que o sucesso e a expansão da emissora foram construídos a partir de uma inteligente identificação de público-alvo e criação de demanda, que resultou na construção de uma forte identidade para a marca, reforçada a todo tempo pela linguagem visual da emissora. Afirmar isso significa dizer que as características inerentes ao videoclipe e a imagem comercial projetada pela MTV se faziam visíveis por toda parte.

Dos clipes e vinhetas aos programas de entretenimento e matérias jornalísticas, do departamento técnico à atitude dos VJs, para onde quer se voltasse a atenção, era possível identificar a identidade jovem, irreverente e pós-moderna da MTV. Nos programas, os cenários criavam um ambiente descontraído, acompanhando a fala e a postura dos apresentadores, que normalmente conduziam o programa em pé. Estes, os VJs, não costumavam ser atores ou modelos, mas sim jovens comuns – de modo a facilitar a identificação da audiência com a emissora. No jornalismo, a MTV promoveu uma verdadeira revolução em termos de linguagem.

Adotou a narrativa não linear em suas matérias, renunciou à câmera estabilizada pelo tripé e assumiu a tremulação da imagem da câmera na mão; utilizou-se de ângulos inusitados nas filmagens, de ruídos nas imagens e planos de curta duração; e, principalmente, assumiu o corte

na montagem, ao fazer uso do jump cut. Técnica hoje muito comum – e desejável – em entrevistas; na época, constituía-se em um verdadeiro “susto na linguagem”9.

Aliás, com o surgimento da linguagem visual proposta pela MTV, outras emissoras americanas também sofreram uma espécie de “rejuvenescimento” nos projetos gráficos adotados. As vinhetas de abertura dos programas e a própria forma de apresentação dos famosos “âncoras” dos jornais televisivos americanos absorveram muitas características presentes no universo da Music Television Começou a ser priorizada uma maior dinâmica na forma como os jornais eram conduzidos e também na própria linguagem de edição das reportagens. Muitos apresentadores passaram a comandar seus programas “em pé”, seguindo a forma como os VJs anunciavam os clipes da emissora, o que garante maior mobilidade e interação com o público (TEIXEIRA, 2006, p. 24).

Mas a influência da Music Television não foi absorvida apenas pelas demais emissoras de televisão. Com o passar do tempo, os anunciantes que almejavam um espaço para suas propagandas na grade da MTV começaram a produzi-las emulando a “fórmula visual”

empregada pelo canal no restante de sua programação. Para a emissora, também era interessante manter seu bloco comercial inserido de forma sutil na programação, uma vez que assim ela pareceria “mais atraente para seus anunciantes, que geralmente apreciam este tipo de artifício usado pela publicidade.” (ibid., p. 91)

Já em suas vinhetas, a MTV foi na contramão do que havia de mais “sofisticado” no mercado até o início da década de 80, esquivando-se do estilo futurista das animações 3D repletas de prata e dourado feitas por Hans Donner para a Rede Globo. Resgatou imagens bidimensionais; fez uso de recursos visuais como ruídos, sujeiras, colagens, imagens distorcidas, mal reveladas, fragmentadas e sobrepostas umas às outras; e experimentou com a tipografia, com a utilização de palavras apagadas e desconstruídas e textos superpostos que rompiam com as regras de legibilidade. Gerou assim um aspecto grunge em suas vinhetas, despojado, rebelde, desleixado, irônico e anárquico – que predominou, por exemplo, na linguagem visual das vinhetas veiculadas pela MTV Brasil durante a década de 90.

Mas a emissora não possuía um único estilo de vinheta, uma vez que, como mencionamos anteriormente, “são vários os elementos utilizados na sua construção, e talvez o estilo do design pós-moderno seja exatamente não ter estilo algum, ou pelo menos nenhum estilo muito definido” (ibid., p. 114). Aliás, essas peças da MTV sequer possuíam um único formato ou finalidade. Havia as vinhetas IDs, que apresentavam, através de uma animação de curta duração, o logo do canal em diversos contextos e com diferentes designs. O canal também

9 Termo utilizado por Soninha, ex-VJ da MTV, ao falar sobre a linguagem visual da emissora e mencionar o jump cut, em entrevista concedida para o livro Admirável Mundo MTV Brasil, 2006, p.54-55.

possuía vinhetas mais longas, ligadas a campanhas publicitárias de autopromoção, e as vinhetas de Serviço de Utilidade Pública (SUP), que abordavam assuntos de cunho social ou relacionados à saúde de forma descontraída. O formato desse último tipo influenciou o estilo de muitas das campanhas governamentais produzidas posteriormente. E não se pode esquecer, é claro, das vinhetas de abertura e encerramento, que costumavam possuir elementos simbólicos associados a seus programas ou elementos visuais que remetessem ao estilo deles. Geralmente contavam também com “uma trilha sonora compatível com a atração” (PEDROSO in Pedroso

& Martins, 2006, p.114 apud TEIXEIRA, 2006, p. 134).

Dessa forma, dentro de seus variados programas, matérias, comerciais, videoclipes e vinhetas, caracterizados pelos mais diversos formatos e gêneros, a MTV utilizou-se de algumas técnicas, ferramentas e soluções estéticas recorrentes, formando um estilo geral mais amplo que englobava uma série de outros estilos – o estilo MTV. Para elucidar de forma mais clara e sintética tudo que vimos até aqui e incluir algumas informações adicionais, veremos a seguir uma seleção de alguns dos elementos mais relevantes que apareceram ao longo dos trabalhos das autoras consultadas para a escrita desse capítulo, Carla Cristina da Costa Teixeira e Michele Kapp Trevisan, organizados por meio de uma tabela.

Desse modo, podemos entender as vinhetas da MTV – e principalmente as vinhetas ID – como peças que condensam em seus conteúdos a essência da emissora; que realizam uma síntese das características conceituais e estéticas que compõem a identidade da marca MTV.

Por isso, tanto no pacote que expressa a linguagem visual da emissora (programas, cenários, matérias jornalísticas, VJs, videoclipes etc.) quanto nas vinhetas – e principalmente nelas, podemos encontrar a presença dos seguintes elementos:

Tabela 1 – Síntese de elementos que compõem o estilo MTV QUANTO À FORMA E CONTEÚDO

Edição veloz e fragmentada

 Mudança frenética de planos e quadros;

 Cortes rápidos e numerosos;

 Descontinuidade;

 Compressão do tempo-espaço.

Movimento e dinamismo  Movimentos de câmera – Pans, tilts, zoom, travelling, câmera na mão, em steadycam;

 Movimentos dentro de quadro – Personagens e

 Uso de teleobjetiva ou grande angular;

 Ângulos inusitados.

Fragmentação da narrativa

 Quebra ou ausência de narrativa;

 Não-linearidade;

 Descentralização e rompimento com as noções clássicas de personagem;

 Possibilidade de diversos tipos de interpretação;

 Ausência de interesse em produzir sentido específico ou ser autoexplicativa;

 Referências à cultura pop, cultura de massas;

 Iconografia desvairada;

 Mistura cultura pop com objetos do período clássico;

 Mistura de diferentes elementos históricos;

 Falta de continuidade histórica;

 Estética kitsch11.

Resgate e releitura de elementos e estilos do passado

 Tratamento de “envelhecimento”, uso de determinadas fontes, elementos estéticos que contexto do cinema e da literatura: filme ou escrito que recorre a elementos surreais, a situações ilógicas, absurdas etc. (Definições retiradas do dicionário de português da Google, fornecido pela Oxford Languages).

11 “Acompanhando a pesquisa de Rüdiger (1990), o termo generalizou-se [...] como a combinação contraditória de cores ou estilos, e as manifestações artísticas “falsificadas” [...], o tipo de cultura para o consumo em massa, produzida por grandes empresas. É neste sentido que o kitsch foi resumido à arte do mau-gosto.” (TREVISAN, 2011, p. 31)

Atenuação das fronteiras entre:

 Alta cultura e cultura popular;

 Artístico e comercial;

Mainstream12 e movimentos de vanguarda.

Interferências visuais (com grafismos)

 Ruídos, sujeiras, rabiscos, rasgos, respingos de tinta;

 Palavras soltas, destruídas, fragmentadas.

Experimentação com imagens

 Imagens fragmentadas, justapostas, mal reveladas e com efeitos de distorção;

 Sobreposição de camadas durante a edição do vídeo, criando um visual com imagens e palavras superpostas umas às outras.

Recorte e colagem

 Experimentações com padronagens, texturas, formas geométricas e pedaços de imagens;

 Combinação entre informações gráficas díspares.

Cores e formas ousadas

 Cores exuberantes;

 Misturas de cores e texturas;

 Estilo psicodélico.

Experimentações tipográficas

 Mistura de diferentes fontes tipográficas;

 Escrita em cima de um escrito anterior, que é

 Surrealismo – paisagens oníricas, imagens que parecem geradas a partir do processo artístico do fluxo de consciência;

Pop art – repetição de imagens, serialização;

 Cubismo – recortes, colagens, justaposições de imagens, palavras soltas, grafismos, figuradas mal reveladas e outros ruídos visuais.

Humor e irreverência  Ironia;

12 Termo do inglês cuja tradução literal significa corrente (ou fluxo) principal. É comumente usado para designar as tendências, modas e correntes de pensamento mais populares no âmbito da cultura de massa.

 Autoironia;

 Ridicularização;

Nonsense;

 “Império do grotesco” (TEIXEIRA, 2006, p. 98).

QUANTO À IDENTIDADE DA MARCA

Relativos ao ideal de juventude:

 Despojamento;

 Rebeldia;

 Anarquia;

 Questionamento de valores;

 Rompimento com regras e convenções;

 Visual propositalmente “amador”;

 Experimentalismo;

 Inovação estética.

Relativos à pós-modernidade:

 Mutação constante da marca (principalmente no logo MTV);

 Constante anseio por novidades;

 Instabilidade;

 Espetáculo;

 Efemeridade;

 Descartabilidade;

 Superficialidade;

 Banalidades;

 Multiplicidade;

 Pluralidade;

 Heterogeneidade.

Fonte: produção própria da autora desta monografia, feita a partir da síntese dos apontamentos presentes nos textos de Carla Cristina da Costa Teixeira (2006) e Michele Kapp Trevisan (2011).

Figura 4 - Vinhetas da MTV: flerte com o surreal e o grotesco.

Figura 5 - Vinhetas da MTV: mutação da marca, pastiche, resgate do passado, inspiração em movimentos artísticos modernos.

Figura 6 - Recorte e colagem; fragmentação; mistura de cores e texturas; e nonsense em vinhetas da MTV Plus.

Figura 7 - Referências à cultura pop; releitura de diversos estilos musicais que fizeram sucesso no decorrer do tempo em vinhetas da MTV Classic.

Figura 8 - Sinuosidade das formas, mistura de cores e texturas em vinhetas da MTV Hits.

Diante de tudo que foi visto, pode-se compreender o estilo MTV como uma composição criada a partir da união de elementos contemporâneos à criação da emissora, cujo longo alcance em termos de influência e a perpetuação do sucesso se deram a partir de uma série de escolhas e combinações acertadas – e ainda não realizadas pela concorrência até então. São elas:

identificação e captação habilidosa de público-alvo; construção de uma identidade de marca forte e coerente com seu público; criação de uma linguagem visual correspondente a público e identidade, aproveitando-se do que havia de mais recente na época em termos de movimentos artísticos, cultura e tecnologia; estruturação de um forte marketing, que reforçava a todo tempo a linguagem do canal e a identidade da marca, dialogava efetivamente com seu público-alvo e anunciava efetivamente seus financiadores: a indústria fonográfica, os artistas e as empresas que compravam um espaço em seu bloco comercial.

Não se pode deixar de relembrar também que o estilo MTV é representado pelo conjunto de características descritas por Dancyger e posteriormente expandido por outros autores, de modo a englobar os elementos da tabela aqui organizada. Mas também representa, tal qual o videoclipe, seu principal produto, a mescla entre a compactação da narrativa presente nos curtas-metragens, a monumentalização gerada pelas arrojadas técnicas cinematográficas, o embelezamento da imagem provocado pelos maneirismos estéticos da publicidade e, por fim, o caldeirão de referências advindas da cultura pop e da generalidade da TV.