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Aspectos conceituais e históricos da telenovela brasileira

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 69-75)

A CONSTRUÇÃO DE “PROBLEMAS” SOCIAIS

3.2. Aspectos conceituais e históricos da telenovela brasileira

Apesar do enorme sucesso, Bucci (1996) assinala que a telenovela no Brasil não é uma unanimidade. Alguns ainda a olham com desconfiança e menosprezo e certos intelectuais a consideram um bem cultural menor e um produto alienante. Essa desqualificação é vista pelo autor como pouco produtiva, pois desconsidera que “falar de televisão é falar do Brasil” (BUCCI, 1996, p.25). O autor nomeia essa postura de neo-elitista, afirmando que a excelência da televisão brasileira consiste justamente na razão pela qual ela vem sendo contestada: “o

melodrama de fato é um sucesso, o telejornalismo é emocional, a publicidade lança novidades” (BUCCI, 1996, p.27). Para aqueles/as que se interessam pelo país, a televisão, particularmente a telenovela, pode ser uma excelente vitrine de nossas contradições. Sua defesa, especialmente da telenovela, é contundente:

O que é preciso entender é como a novela consegue ter significados profundos para além do óbvio, que a telenovela só é bem-sucedida como fator de integração nacional porque tem uma visão de Brasil dentro de si e porque consegue organizar em vários níveis de profundidade (se fosse apenas simplório, um novelão das oito jamais funcionaria, jamais envolveria o grande público) (BUCCI, 1996, p.27).

A telenovela é, sem dúvida, parte do cotidiano do povo brasileiro, e instiga discussões e comentários sobre os temas que desenvolve. Esse destaque se deve à apresentação de temas cotidianos que despertam grande interesse do público e têm potencial para provocar discussões. As novelas são tema de conversa diária entre as pessoas e os/as telespectadores/as acompanham, comentam, torcem e se envolvem com as personagens e suas histórias. A novela funciona como grande vitrine de modelos, muitas vezes contraditórios, mas amplamente compartilhados. De acordo com Hamburger,

as novelas provêm um repertório através do qual os telespectadores mobilizam seus dramas pessoais em termos que são reconhecíveis publicamente. (...) Os telespectadores não necessariamente concordam ou imitam esses padrões, mas se posicionam em relação a assuntos polêmicos legitimando o tratamento público de questões antes confinadas às alcovas (HAMBURGER, 2005, p.145 e 144).

A estrutura narrativa da novela é construída de forma fragmentada, ou seja, a história deve ser contada aos poucos, fórmula concebida para manter o suspense e, conseqüentemente, a atenção do público. Campedelli (1987, p.20) afirma que “a telenovela desenrola-se segundo vários traçamentos dramáticos, apresentados aos poucos”, o que ela chama de “história parcelada”. Esse parcelamento da história, para a autora, é conhecido tecnicamente como multiplot

– várias histórias acontecem ao mesmo tempo e, no decorrer da trama, o plot24

principal é eleito pelo público.

Outra característica estrutural da telenovela, segundo Campedelli (1987), é a sucessividade, significando que a história vai sendo apresentada em progressão, uma característica que possibilita ao autor dosar o fluxo da trama, tendo como referência a opinião pública e também aspectos inesperados, como o adoecimento de atores no decorrer do trabalho. Os chamados ganchos são recursos narrativos utilizados para prender a atenção do telespectador. A curiosidade em saber o que vai acontecer no dia seguinte – a cena termina com uma pergunta sem resposta ou com uma carta que será aberta e lida por alguém – , faz com que os capítulos possam ser “enganchados” na novela. Campedelli (1987) destaca que os ganchos não acontecem somente dentro da novela, mas também atingem outros veículos de comunicação – revistas, jornais, programas de televisão e publicidade –, mídias que concorrem pela atenção do telespectador para a história que está sendo desenvolvida na tela.

Outro atrativo da telenovela é ser uma obra aberta, construída juntamente com outros elementos no decorrer de sua exibição. Apesar de haver um roteiro inicial, as pesquisas de opinião pública, os “fatos” e “acontecimentos” durante o período de exibição da telenovela, o desempenho do elenco, os interesses da emissora e das empresas que anunciam seus produtos interferem no desenrolar da trama.

A estratégia de iniciar e interromper o fluxo da novela cumpre algumas funções. A primeira é de estimular o compartilhamento das histórias, já que existem pausas no decorrer da novela. As interrupções servem também para introduzir os anúncios que patrocinam a própria produção do programa. A idéia de um novelo desenrolando, adotada por Campedelli (1987), parece ser bastante adequada como imagem e descrição da forma de funcionamento das novelas.

24 Para Campedelli (1987), plot é o nome técnico conferido pelos teóricos da dramaturgia

para designar qualquer enredo. A autora descreve alguns tipos de plots mais usuais: de amor, de sucesso, Cinderela, da volta, vingança, conversão, sacrifício, família, e comenta que as novelas tratam simultaneamente de diferentes plots.

Essas características podem sugerir que definir uma telenovela seja tarefa fácil, mas, como qualquer outro conceito que faz enveredar pela seara da disputa de sentidos, engloba diversas interpretações e está em constante estado de fluxo e redefinição. A despeito das várias definições que o termo comporta, a telenovela é um conjunto de narrativas que operam segundo um gênero ficcional; nos termos de Martín-Barbero (1997, p.302), uma estratégia de comunicabilidade e de interação, isto é, “modos em que se fazem reconhecíveis e organizam a competência comunicativa, os emissores e os destinatários, e por ser interativo dialoga constantemente com o conhecimento que circula na sociedade”.

Essa definição permite pensar a telenovela como gênero ficcional composto por uma trama de narrativas que incluem uma agenda de questões e temas, operando como espaço de mediação que congrega referenciais comuns, tanto aos produtores quanto aos receptores. Esse entendimento de um referencial comum leva os autores a apostarem na identificarão da audiência com seus textos, assim como permite aos autores seguir determinados conjuntos de regras e configurações específicas na expectativa de atingir o público.

Herdeira do folhetim25, a novela abriu seu caminho pelo melodrama,

conhecido como poderoso recurso para atrair distintas audiências, devido sua potencialidade para evocar reconhecimento e produzir familiaridade. O melodrama constrói sua trajetória de sucesso através de narrativas de aventuras e desventuras amorosas. Nessas narrativas, as personagens geralmente encarnam divisões binárias – bem e mal, lealdade e traição, honestidade e desonestidade. A retórica discursiva do drama é reconhecida como um recurso importante para conferir credibilidade aos assuntos tratados e, associada ao romantismo, torna-se a fórmula perfeita para conquistar uma boa audiência.

Da mesma forma que a televisão, a telenovela também passou por um processo de modernização. Hamburger (2005) sistematiza a história da telenovela brasileira em períodos, tomando por referência o tipo de relação estabelecida com

25 Andrade (2003) afirma que a raiz histórica da telenovela é o folhetim, que surgiu por volta

de 1830 na imprensa, e não na literatura. Em 1836, esse tipo de texto se tornou uma publicação diária veiculada pela imprensa escrita, que o apresentou recortado em fatias cotidianas.

o Estado, a indústria da televisão, os anunciantes e o público. No primeiro período, de 1970 a 1989, consolidou-se a expansão da indústria da televisão no Brasil, tendo a Rede Globo como seu principal expoente. As novelas passaram de uma posição incipiente nos anos 1960 para uma posição de destaque, tornando-se um dos programas mais populares e lucrativos da televisão brasileira, termômetro do índice de audiência e motivo de disputa entre as emissoras.

A primeira telenovela diária brasileira estreou na TV Excelsior em 1963, com a adaptação do roteiro argentino 2-5499 ocupado, cujo enredo tratava da relação entre uma telefonista presidiária (Glória Menezes) e o advogado Larry (Tarcísio Meira) que, a partir de uma ligação telefônica por engano para o escritório dele, se apaixonam tendo por mediação conversas ao telefone (HAMBURGER, 2005). Entretanto, somente nas décadas de 1970 e 1980 a televisão brasileira, sob o domínio da Rede Globo, se consolidou, período em que a novela realmente se tornou o gênero mais popular e lucrativo deste veículo de comunicação (HAMBURGER, 2005).

A fase que se inicia na década de 1990 ficou conhecida como o período de diversificação da estrutura e da programação televisiva, com a introdução de novas tecnologias – TV a cabo, novos aparelhos televisivos, videocassetes, tecnologia digital com imagens transmitidas diretamente por satélites e disseminação de antenas parabólicas. Esse período também foi marcado pela maior concorrência entre as emissoras de televisão e pela ameaça de quebra da hegemonia da Rede Globo. Um de seus produtos mais rentáveis, a telenovela, já não mais auferia os altos índices de audiência de outrora. O declínio de audiência da Rede Globo foi compreendido por vários autores como indicativo de que a fórmula das telenovelas tinha se esgotado e estava com seus dias contados. Borelli e Priolli (2000), em análise detalhada dos fatores envolvidos no declínio do volume de audiência sofrido pela emissora, concluem que a constatação da perda de audiência nos anos 1990 não foi suficiente para que a Rede Globo perdesse a liderança que apresenta até os dias atuais. Concordando com essa análise, Hamburger (2006), em entrevista concedida ao jornalista Ricardo Calil para um periódico eletrônico, reavalia as previsões catastróficas sobre o futuro das

telenovelas, e afirma que, contrariamente ao que havia sido pensado, atualmente,

as novelas vivem um boom26. Nessa entrevista, Hamburger (2006, p.2) aponta

duas razões para a longevidade de sucesso do gênero:

Primeiramente, a novela permanece como um dos formatos mais lucrativos da televisão, porque exige um investimento inicial alto, mas que se dilui ao longo de meses e pode ser facilmente recuperado com

publicidade, merchandising27 e, em alguns casos, vendas internacionais.

Depois, a novela continua atraindo uma grande audiência porque seu formato permite uma adequação do conteúdo ao público. Como os folhetins de jornal do século XIX, da qual descende, a novela pode se moldar de acordo com a resposta do público e pode fazer uma crônica muito imediata de seu tempo. O final de Cobras & lagartos, em que Foguinho abre uma barraquinha de profiteroles e cidra, é um comentário muito preciso sobre o aumento do consumo na classe baixa. Nesse sentido, a novela é um formato proto-interativo. Ao mesmo tempo, ela tem vantagens sobre formatos mais interativos, como os reality shows, por exemplo, uma dramaturgia mais consistente e o poder de suas estrelas.

Um dos fatores centrais no processo de modernização das novelas foi a evolução e a sofisticação das técnicas de medição de audiência. Além da Rede

Globo28 ter criado um departamento responsável pelas pesquisas de audiência e

opinião, o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística – IBOPE, empresa especializada em elaboração e realização de pesquisas – fornece um cardápio diverso de metodologias no qual a audiência online, e ao vivo nas principais cidades, é uma das armas para o acompanhamento do ritmo frenético de produção de uma novela.

As telenovelas são acompanhadas diariamente por meio de diversas fontes de informação – IBOPE, grupos de discussão, entrevistas –, estabelecendo uma espécie de diálogo constante com os diversos perfis que compõem a audiência.

26 Em novembro de 2006 existiam oito novelas brasileiras no ar: quatro na Rede Globo (se

for incluída Malhação), três na Record (contando Alta estação) e uma na Bandeirantes. Apenas no mês de novembro houve três estréias nas três emissoras: Pé na Jaca, Vidas Opostas e Paixões Proibidas (HAMBURGER, 2006).

27 Segundo Cobra (1984), merchandising refere-se a um conjunto de operações planejadas

para criar impulsos na mente dos consumidores, ou usuários, tornando mais rentáveis todas as operações nos canais de marketing. Atualmente, o princípio do merchandising aparece também na televisão, especificamente nas telenovelas.

28 Hamburger (2005) informa que o Departamento de pesquisa da Rede Globo foi criado em

A partir de 1990, as novelas sofreram modificações. Do período chamado de fantasia (pré-68) à fase denominada nacional-popular (até 1990), as telenovelas passaram por reformulações, tanto na forma quanto no conteúdo, e incorporaram em seus enredos o estilo conhecido como novelas de intervenção, no qual a escolha de enredos, cujo mote principal é a representação nacional, dá lugar a histórias relacionadas com a vida cotidiana das pessoas.

A novela de intervenção é marcada pela mistura do espaço narrativo das personagens com o universo cotidiano dos telespectadores, o que leva, de acordo com Hamburger (2005), à expansão dos limites do folhetim eletrônico. Porém, ao incorporar eventos e relações do mundo externo e ao alargar seus limites, a telenovela pode perder sua especificidade. Segundo Hamburger (2005), apesar dos riscos da perda da identidade do folhetim, tem ganho cada vez mais espaço a proposta de novelas de intervenção, nas quais os autores interferem diretamente em determinados assuntos pontuais, desde os políticos até os comportamentais, tendo em vista suas afinidades e respectivos estilos.

Conforme a análise de Hamburger (2005), ver novela passou a significar estar sintonizado, ou estar “antenado” com o que há de novo no mundo da moda, dos comportamentos, das relações. Nesse sentido, os temas abordados nas telenovelas se tornaram fundamentais para atrair a audiência, entre os quais destaco a homossexualidade/lesbianidade.

3.3. O papel da telenovela na construção da visibilidade da

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 69-75)