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Práticas discursivas no cotidiano: a linguagem em ação

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 31-35)

Como psicóloga social, um de meus interesses está voltado para a compreensão das controvérsias sobre a sexualidade, particularmente sobre a produção de sentidos sobre a lesbianidade no cotidiano. Entre os vários campos empenhados em dar sentido ao mundo, a mídia, juntamente com outros saberes, cumpre a função de produzir e circular idéias, valores, referências e

posicionamentos sobre o mundo. Na perspectiva construcionista,

O sentido é uma construção social, um empreendimento coletivo mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas, na dinâmica das relações sociais historicamente datadas e localizadas, constroem os termos a partir dos quais compreendem e se posicionam em situações cotidianas (SPINK, 2004, p.48).

Entre as formas de interação, a linguagem se destaca como um dos modos mais expressivos e efetivos de construção de mundo. A diferença entre a pesquisa construcionista e outros tipos de pesquisa, cujo foco também recai sobre a linguagem, se dá justamente porque nela a linguagem não é mera ferramenta para exposição de idéias, pois falar equivale a construir o mundo, nossas experiências, nossas emoções. Ela se constitui como uma forma de ação no mundo. A linguagem não é a expressão de algo interno ou de um conhecimento prévio, mas faz parte de um processo dinâmico de negociação de sentidos, atualizada por interações cotidianas, e institucionalizada por meio de matrizes que lhe sustentam e legitimam. Afinal, é por meio da linguagem que os sentidos são construídos. O acontecimento que modificou a forma de conceber a linguagem no século XX é denominado de “virada lingüística”, reflexo de profundas mudanças ocorridas na filosofia e nas ciências humanas e sociais Além de conferir um aumento progressivo de atenção à linguagem, a “virada lingüística” impactou decisivamente as noções sobre a natureza do conhecimento, assim como modificou a própria concepção da natureza da linguagem. Por meio desse acontecimento histórico, a linguagem passa a ocupar um novo status, não mais como mera descrição das coisas, mas como constitutiva do mundo (IBÁÑEZ, 2004).

Na Psicologia Social13, especificamente no Núcleo de Estudos e Pesquisas

em Práticas Discursivas e Produção de Sentidos, do Programa de Estudos Pós- graduados em Psicologia Social, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (NPDPS), o termo “práticas discursivas” é utilizado para demarcar e distinguir o

13 O ramo da Psicologia Social que concebe o conhecimento como uma construção coletiva,

foco de interesse das pesquisas voltadas para o papel da linguagem na interação social. A opção pelo termo práticas discursivas justifica-se, segundo Spink (2004), em função da proposta de distinguir entre dois tipos de leitura: um voltado para o cotidiano e outro direcionado para o uso institucionalizado da linguagem. Na formulação de Spink (2004, p.40), a análise das práticas discursivas deve abarcar os seguintes níveis:

(...) as maneiras pelas quais as pessoas, por meio da linguagem, produzem sentidos e posicionam-se em relações sociais cotidianas e um outro (...) para o uso institucionalizado da linguagem – quando falamos a partir de formas de falar próprias a certos domínios de saber, a Psicologia, por exemplo.

Nesse tipo de abordagem, o cotidiano assume posição de destaque, pois o interesse recai sobre a linguagem em uso, ou seja, refere-se às práticas sociais que circulam no dia-a-dia da conversação. É importante pontuar que apesar do trabalho em práticas discursivas recair sobre as interações cotidianas, a noção de contexto é determinante para estudar não somente os conteúdos, mas também a forma e as circunstâncias da comunicação, nas quais os repertórios interpretativos ocupam papel de destaque.

2.1. De repertórios interpretativos e tempos

Um elemento crucial para a análise das práticas discursivas voltadas para a apreensão dos sentidos que atravessam o cotidiano é o conceito de repertórios interpretativos desenvolvido por Potter e Wetherell (1987). Os autores definem repertório como o conjunto de termos, descrições, lugares-comuns e figuras de linguagem que estão freqüentemente agrupados em torno de metáforas e imagens, utilizando unidades de construção dos discursos e estilos gramaticais próprios. Ainda segundo os autores, esses dispositivos lingüísticos são utilizados em distintas produções discursivas, por exemplo, nos discursos veiculados pela ciência e pela mídia, atuando como substrato para a argumentação. Essas unidades de construção dos discursos demarcam o rol de possibilidades discursivas, tendo como parâmetros o contexto em que as práticas discursivas

acontecem. Os repertórios são utilizados para construir versões das ações, eventos e outros fenômenos que estão à nossa volta.

Segundo Spink e Medrado (2000), o conceito é particularmente útil para o estudo das práticas discursivas, na medida em que incorpora tanto os aspectos da variabilidade e polissemia quanto de estabilidade ou permanência (constância de significados) em uma dada construção lingüística.

Através desta pesquisa, interessa-me apreender a linguagem empregada na telenovela para tratar as diversas versões sobre a lesbianidade que circulam no cotidiano. O ponto de partida para a análise dessas práticas discursivas são as narrativas da novela, o que as personagens dizem a respeito da lesbianidade e como se posicionam diante disso, focando os repertórios que constituem essas narrativas. Parto da premissa de que as narrativas se alimentam de repertórios que circulam ativamente em cada sociedade e dos posicionamentos assumidos na conversação pelos interlocutores. Inscritos na história, os repertórios interpretativos são provenientes de diferentes temporalidades.

2.2. Os tempos

Spink (2004) sugere que os repertórios interpretativos sejam compreendidos através de uma matriz histórica temporal que compreende três tempos: o longo, o vivido e o curto. O tempo longo é definido por Spink e Medrado (2000, p.51) como o “domínio da construção social dos conteúdos culturais que formam os discursos de uma dada época”. Esse tempo abriga conhecimentos produzidos por diferentes domínios do saber – religião, ciência e senso comum –, que se constituem tendo por limite as contingências sociais de cada época e se fazem presentes no cotidiano das pessoas por meio de instituições, modelos, normas e convenções. O tempo vivido é compreendido como o produto dos processos de socialização, tudo aquilo que se aprendeu durante a vida a partir de determinadas experiências e que pertence a determinados grupos sociais. O tempo vivido possibilita a ressignificação de conteúdos aprendidos tendo por medida a bagagem acumulada de cada pessoa. O tempo curto é o da

conversação, também chamado de interanimação dialógica.

O recorte temporal sugerido por Spink (2004) permite entender que os sentidos atribuídos à homossexualidade/lesbianidade perpassam essas temporalidades: as decorrentes do tempo longo – conteúdos culturais definidos ao longo da história da civilização –, do tempo vivido – linguagens sociais aprendidas pelos processos de socialização –, e do tempo curto – relativo aos processos de interação.

Os repertórios são colocados em ação por meio dos processos de interanimação dialógica, propiciando tanto a manutenção de certos modos de falar como novas combinações.

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 31-35)