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Homossexualidade/lesbianidade em discussão: de condição a construção

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 46-50)

HOMOSSEXUALIDADES E A CONSTRUÇÃO DA CATEGORIA LESBIANIDADE

2.2. Homossexualidade/lesbianidade em discussão: de condição a construção

O entendimento de que a sociedade define e constrói o desvio ainda é muito recente. Na história ocidental, alguns estudos apontam para a construção social da “condição homossexual” sem deixar de caracterizá-la como a um “problema social”.

O trabalho de McIntosh (1992), considerado por vários autores como um exemplo de crítica à idéia de condição na homossexualidade, até então afirmada pelas teorias médicas, é uma referência para estudiosos do tema, na medida em

que considera a sexualidade um fenômeno histórico, portanto, mais alinhado com a postura construcionista.

Segundo McIntosh (1992), a inadequação das teorias médicas refere-se à divisão das pessoas em homossexuais, heterossexuais e bissexuais, cuja maior implicação é reduzir as pessoas a essas classificações, sem levar em conta a recorrente incoerência entre desejo, comportamento e identidade. Ao pressupor a homossexualidade como condição, os cientistas da época direcionavam suas pesquisas à busca de sua etiologia, pois queriam saber se a condição homossexual era inata ou adquirida, sem problematizar a própria construção da noção da homossexualidade como “problema social”. Vale mencionar o argumento de Rosemberg (2007): os problemas sociais são definidos pela sociedade a partir da projeção de sentimentos coletivos e não de condições sociais objetivas.

Para McIntosh (1992), a prática de rotular as pessoas como desviantes

opera como mecanismo de controle social17 de dois modos. O primeiro divide

claramente os comportamentos permitidos e aqueles que não o são, dificultando qualquer movimento de transposição para os não permitidos, dado que qualquer menção nesse sentido poderia significar uma aproximação ao “desvio” e, conseqüentemente, à exposição a todas as sanções a essa transgressão. No segundo, o processo de rotulação segrega os indivíduos desviantes, restringindo- os a pequenos grupos. Nesse sentido, o controle social opera como mecanismo eficiente de discriminação e exclusão. Por outro lado, de acordo com a autora, utilizar o rótulo como mecanismo de controle social fixa essas pessoas nesses desvios à medida que são rotuladas. McIntosh (1992) propõe que o/a homossexual seja visto/a como alguém que desempenha um papel na sociedade, não como alguém que tem uma condição e, sobretudo, que a homossexualidade seja vista, não como um traço atemporal, mas como histórica e culturalmente constituída.

17 Controle social se refere aqui ao controle exercido pelo Estado, pela ciência e pelos

saberes, diferente da acepção utilizada pelos movimentos sociais por cidadania, na qual controle social é o inverso: os/as cidadãos/ãs fiscalizando o poder público.

Essa teorização sobre a homossexualidade propiciou a emergência da noção de pessoa homossexual distinta, da individualização da homossexualidade, processo gradual que ocorreu em um movimento dinâmico e bilateral de transformações sociais e teorizações sobre essas mudanças.

Para Davidson (1992), sempre houve pessoas que se relacionavam com outras do mesmo sexo, mas a categoria “perversão” e os argumentos sobre essas pessoas apareceram somente a partir do final do século XIX, como aponta o autor, “não somente o conceito médico de perversão não existia antes do século XIX, como também não havia ‘pervertidos’ antes desse conceito existir” (DAVIDSON, 1992, p.121).

Hacking (1992, p.78) afirma que “não foi um tipo de pessoa que veio a ser reconhecido por burocratas ou estudantes da natureza humana, mas sim um ’tipo’ de pessoa que veio a existir ao mesmo tempo em que um ’tipo’ estava sendo

inventado”18. Hacking (2001) propôs o conceito de matriz para pensar os

processos de classificação que criam um tipo de pessoa específica. Trazendo o exemplo das “mulheres refugiadas”, o autor postula que um tipo se constitui por um conjunto de elementos e práticas sociais que cria e sustenta determinada idéia. Segundo, Hacking (2001, p.33), a matriz se constitui como

(...) um complexo de instituiciones, defensores, artículos de periódico, juristas, decisiones judiciales, actas de inmigración. Por no mencionar la infraestructura material, barreras fronterizas, pasaportes, uniformes, mostradores de aeropuertos, centros de detención, juzgados, campos de vacaciones para niños refugiados.

Hacking (2001) é enfático ao comentar que o que está sendo construído não é a pessoa individual, mas uma classificação. Ainda segundo o autor, o que acontece com o/a homossexual é somente mais um exemplo do que a ciência pode fazer ao criar categorias de pessoas ao mesmo tempo em que as pessoas começam a se reconhecer nessas categorias, em um movimento bilateral dos dois processos. Hacking busca argumentos no pensamento construcionista para alertar sobre a forma como práticas e saberes produzem categorias e identidades sociais.

Os argumentos construcionistas servirão como poderosos contra- argumentos às idéias essencialistas de uma suposta homossexualidade inata, discussão que perpassará todo o debate sobre a sexualidade nesta tese. Além disso, o argumento construcionista abriu brechas para pensar a construção da categoria heterossexualidade, possibilitando questionar a “naturalidade” da relação heterossexual.

Stein (1992) lembra que o debate entre essencialismo e construcionismo, no âmbito da orientação sexual, é recente e aponta o trabalho de McIntosh (1992) como pioneiro no uso da abordagem construcionista social aplicada à homossexualidade. Entretanto, a referência mais importante para os construcionistas é a obra clássica de Foucault (1984), História da Sexualidade

vol.1, especialmente a segunda parte do Capítulo II, na qual o autor desenvolve a

tese sobre a construção social da homossexualidade:

A sodomia – a dos antigos direitos civil ou canônico – era um tipo de ato interdito e o autor não passava de seu sujeito jurídico. O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa (...) A homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi transferida, da prática da sodomia, para uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie (Foucault, 1984, pp.43- 44).

Na perspectiva de Foucault (1984), a homossexualidade é social e historicamente construída, ou seja, depende da cultura e das relações sociais estabelecidas, o que possibilita pensar em diferentes formas de viver e de construir identidades de gênero e sexuais. A contribuição teórica do autor é inestimável para entender que “o homossexual” é uma construção sócio-histórica e não universalmente aplicável, portanto, requer uma explicação sobre os processos envolvidos em sua construção.

É amplamente reconhecido que a perspectiva do construcionismo social teve grande impacto no pensamento social e influenciou diferentes disciplinas – entre outras, História, Sociologia, Psicologia. Correndo o risco de simplificar, Epstein (1992, p.246) aponta que estudos recentes sobre gays e lésbicas nas

sociedades ocidentais, particularmente advindos da História e da Sociologia, têm como origem o marco das escolas do Interacionismo Simbólico e da Teoria dos Rótulos. Gagnon e Simon (1973), em estudos sobre a conduta sexual, e os teóricos dos rótulos – Plummer (1981) na análise do estigma sexual e McIntosh (1992) na análise do papel homossexual – são expoentes dessas escolas. Somados a esses, os estudos sobre os sistemas de sexo e gênero oriundos da Antropologia, mais próxima ao construcionismo, e o trabalho de Foucault, a partir de 1980, imprimiram um novo ânimo à investigação construcionista sobre o tema da homossexualidade.

Apesar de a posição construcionista ter sido extremamente importante para a compreensão da sexualidade e da homossexualidade, ela trouxe algumas dificuldades para ativistas do movimento homossexual, cuja expectativa era de que a teoria pudesse respaldar a legitimação dos homossexuais como um grupo específico e distinto dos heterossexuais. Antes de entrar nas críticas ao construcionismo, situo a política do movimento homossexual nos Estados Unidos e sua relação com as perspectivas teóricas disponíveis, especialmente no final dos anos 1960.

2.3. Ramificações políticas do debate entre essencialismo e construcionismo

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 46-50)