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Lesbianidade nas novelas da Rede Globo: Vale Tudo, Torre de Babel,

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 82-87)

A CONSTRUÇÃO DE “PROBLEMAS” SOCIAIS

3.5. Lesbianidade nas novelas da Rede Globo: Vale Tudo, Torre de Babel,

Mulheres Apaixonadas e Senhora do Destino

Nos últimos anos, a presença de personagens homossexuais/lésbicas tornou-se recorrente em diversos meios de comunicação – revistas, programas de

TV, novelas, filmes e seriados30.

A partir de 1988, uma seqüência de quatro novelas da Rede Globo atesta que a temática da homossexualidade/lesbianidade vem ganhando espaço e visibilidade na mídia, instigando o questionamento sobre as formas como essa visibilização tem ocorrido. Apesar deste estudo não propor a análise dessas quatro novelas, é possível perceber que há elementos que se repetem entre as diferentes histórias, permitindo pensar que os autores utilizam estratégias e abordagens discursivas que vão sendo construídas e implantadas em interlocução constante entre o que eles escrevem e como o público reage a isso.

A primeira novela que tratou do tema da lesbianidade, Vale Tudo (1988- 1989), mostrou duas mulheres bem-sucedidas, Cecília (Lala Deheinzelin) e Laís (Cristina Prochaska), cuja relação foi apresentada de forma sutil, até à morte de Cecília. O fio condutor, que conferiu visibilidade ao tema, estava no campo do Direito, colocando em questão se Laís teria direito à herança de Cecília, já que as duas, além de parcerias amorosas, eram proprietárias de uma pousada. A luta de

30 Os seriados The L word e Queer as folk se destacam como produções norte americanas

Laís chega a bom termo, pois no final da novela seu direito à posse da pousada foi reconhecido e ela retomou sua vida amorosa com a fotógrafa Marília (Bia Seidl).

Na segunda novela, Torre de Babel (1998-1999), o par formado por Rafaela (Cristiane Torloni) e Leila (Silvia Pfeifer) – empresárias, donas de uma loja em um

shopping center – foi retratado desde o início com cenas que sugeriam um

relacionamento amoroso entre elas, por exemplo, tomam banho juntas, provocando intensa rejeição de setores mais conservadores da sociedade. Diante das críticas e das pesquisas, o autor (Silvio de Abreu) decidiu refazer a trama e eliminar as personagens, explodindo o shopping center (Dicionário da TV Globo, 2003).

Em Mulheres Apaixonadas (2003), a terceira novela, a relação entre as protagonistas – duas mulheres jovens e estudantes, Clara (Aline Moraes) e Rafaela (Paula Picarelli) – foi gradualmente apresentada, evidenciando os conflitos e as reações das outras personagens à relação entre elas. No capítulo final, o esperado beijo foi mostrado em uma encenação, na qual elas interpretam Romeu (Rafaela) e Julieta (Clara), o que restabeleceu a ordem convencional masculino-feminino sem provocar a ira dos conservadores. Ressalto que essa novela foi pioneira na manutenção do par lésbico até o último capítulo.

Senhora do Destino (2004-2005) trata da relação entre a médica Eleonora

(Mylla Christie) e a estudante de fisioterapia Jenifer (Bárbara Borges), mostrando os conflitos de Jenifer com a descoberta do amor de Eleonora e de seu amor por ela. Houve toda uma preparação do público e de Jenifer para o seu processo de

coming out31. Quando já estavam namorando, Eleonora encontra um bebê no lixo

e as duas iniciam um processo de adoção. Das quatro novelas, Senhora do

Destino (2004-2005) se destaca por mostrar, de forma mais direta, cenas que

sugerem intimidade, como a cena em que acordam juntas e nuas na mesma cama. De um total de 151 cenas protagonizadas pelo casal no período de agosto de 2004 a março de 2005, os meses de outubro e novembro foram definitivos para

31 A expressão coming out se refere à decisão de alguns/mas homossexuais de assumir

o desenrolar do romance por terem apresentado médias de IBOPE (51,1 e 51,7 respectivamente) acima da média da novela como um todo (50,3).

As quatro novelas apresentam muitas semelhanças na construção das personagens e na forma de desenvolver a trama. As histórias, a princípio, apresentadas de forma sutil, vão se tornando mais diretas e explícitas; as relações, inicialmente vistas como amizade, tornam-se aos olhos das outras personagens mais erotizadas; as personagens protagonizam relações que passam de momentos de auto-descoberta, com muito conflito, até a aceitação do amor diferente da norma, além de muita negociação com as personagens que compõem o entorno da relação. O foco deixa de recair somente sobre a orientação sexual das personagens e passa a incidir também sobre outros aspectos da sociabilidade, como a relação com a família, o trabalho e as amizades, estratégia que visa conferir maior legitimidade ao assunto.

Nessas novelas, há uma certa equivalência na construção dos perfis das personagens: mulheres brancas, de camadas urbanas altas e médias, escolarizadas, profissionais e que poderiam ser caracterizadas como autônomas e independentes com a apresentação de relações mais do tipo igualitário. Mesmo as adolescentes de Mulheres Apaixonadas (2003) não fugiam a esse padrão. Esse traço comum combina com a forma não convencional de gerenciar suas respectivas vidas amorosa e sexual, bem como com uma forma de caracterização de mulher mais aceita socialmente nos dias atuais. Outro elemento comum é que não são mais os indivíduos o foco de interesse e sim o “casal”, cuja relação vai sendo apresentada aos poucos, sugerindo que os enredos passam a investir fortemente em histórias centradas nos pares românticos e, como toda boa história romântica, com muito sofrimento até culminar no “felizes para sempre”. A principal variação entre as novelas mencionadas diz respeito ao tempo de permanência do par lésbico no ar em relação à duração total da novela. Das quatro novelas, as protagonistas lésbicas de Senhora do Destino ocupam um tempo maior de cena do que os outros pares. A segunda variação mais relevante está relacionada à introdução de diferentes facetas, ou adversidades, que um casal lésbico pode vivenciar – a disputa pela herança no caso de Vale Tudo (1988-1989), o

enfrentamento do preconceito da mãe e de uma colega em Mulheres Apaixonadas (2003) e a adoção de uma criança em Senhora do Destino (2004-2005).

Alguns/mas autores/as, que tratam da homossexualidade/lesbianidade em telenovelas, concordam que a maior visibilidade de personagens homossexuais/ lésbicas tem tido impacto sobre a sociedade, gerando discussões e debates (GOMIDE, 2006; MARQUES, 2003; PEREIRA; LOPES; SILVA, 2006; PERET, 2006). Esses autores/as apontam para o tratamento ambíguo dispensado à temática ora mais positivado, ora reforçando estereótipos. Tais variações na forma de abordagem do tema são imputadas às maneiras como se estabelece a mediação entre produção e recepção, cada vez mais suscetíveis aos movimentos da opinião e do debate público.

O trabalho de Gomide (2006) merece destaque, porque também teve como objeto de estudo a novela Senhora do Destino (2004-2005), ao refletir sobre a construção das representações sociais de identidades lésbicas pela ficção seriada brasileira.

Gomide afirma que esta novela representa uma inovação na teledramaturgia nacional, “...uma vez que mulheres homossexuais foram trazidas para a narrativa ficcional conservadora que representa uma fonte de informação para expressiva parcela populacional” (2006, p.194). Porém, a autora ressalva que essa aparição é realizada às expensas de um padrão hegemônico, que conforma o “casal” ao modelo clássico heterossexual, com co-habitação, monogamia e uma criança para cuidar. Gomide (2006, p.9) critica o tratamento dispensado à Eleonora e Jenifer:

(...) ainda que circunscrito dentro da simulação do padrão hegemônico, o casal é tratado de forma discriminatória comparativamente aos casais heterossexuais, sendo vítima de preconceitos e censura, principalmente em relação às manifestações físicas de afeto.

Convém lembrar que a televisão e a própria telenovela sofrem restrições sobre o que veiculam. A televisão é um meio de comunicação regulada, portanto, não pode intencionalmente desestabilizar as normas. Ela tem que manter os

padrões socialmente instituídos como a família, o casamento, a heterossexualidade, entre outros.

Mais do que as práticas do “casal” retratadas na novela, o que está em jogo é a idéia de “casal” nos moldes da heterossexualidade institucionalizada. Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1986), o termo casal refere-se ao par composto de macho e fêmea ou homem e mulher. As práticas adotadas por Eleonora e Jenifer na novela, como casamento, co-habitação, maternidade, aparecem como indicadores de coerência para que essa idéia matriz se torne inteligível.

Apesar de concordar com a autora acerca da inovação em Senhora do

Destino (2004-2005) e que determinados padrões hegemônicos permaneceram

intocados, creio ser importante ilustrar, a partir das narrativas presentes na novela, os diversos repertórios e posições assumidas pelas diferentes personagens ao longo da trama. Mais do que afirmar que os textos e imagens são intrinsecamente progressistas ou reacionários, as fronteiras da mídia são difusas, apresentando amplo espectro de repertórios e posições que não se integram em uma posição absoluta, pura ou coerente a respeito de um determinado assunto.

CAPÍTULO 4

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 82-87)