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Teorizações sobre a lesbianidade: deslocamentos intrigantes

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 55-61)

HOMOSSEXUALIDADES E A CONSTRUÇÃO DA CATEGORIA LESBIANIDADE

2.4. Teorizações sobre a lesbianidade: deslocamentos intrigantes

De formas diversas , estudiosos/as internacionais e nacionais apontam para o silêncio que paira sobre a lesbianidade, apresentando explicações semelhantes e com tom de frustração, especialmente a produção existente no campo da homossexualidade. Boswell (1981, p.XVII), historiador apontado como referência no contexto internacional, em pesquisa sobre as atitudes em relação à homossexualidade/lesbianidade desde o período romano até o final do século XIV, no prefácio de sua obra, adverte os leitores/as:

Cabe introduzir aqui uma explicação quanto à relativa ausência de material sobre as mulheres. Boa parte das fontes utilizadas nesta (como em qualquer outra) pesquisa histórica é constituída por textos escritos por homens e sobre homens; onde há referência às mulheres, ela é sempre periférica [...]

Mott (1987, p.8) ratifica o silêncio:

Se a documentação sobre a história dos sodomitas é rara e lacunosa, as informações sobre o amor entre as mulheres ainda são muitíssimo menos numerosas, fragmentadas, quando não inexistentes [...] A história do

lesbianismo até pouco tempo atrás era uma página totalmente em branco, que somente nos últimos tempos tem merecido a atenção de poucos estudiosos. E devido aos milênios de alienação e inferioridade da mulher em nosso mundo, geralmente têm sido os intelectuais do sexo masculino que iniciam tais estudos e pesquisas.

MacRae (1990) considera a distinção entre o status da homossexualidade e da lesbianidade muito antiga. Desde a própria atividade científica do começo do século, como a pesquisa de Krafft-Ebbing (1931), que indicava a existência de 50 casos do fenômeno, até a atualidade, a lesbianidade continua menos estudada que a homossexualidade.

Durante muito tempo, a homossexualidade e a lesbianidade foram vistas de forma indiferenciada. O destaque para a homossexualidade, conforme Weeks (2001), se justifica porque essa modalidade sexual estava mais fortemente submetida às regulações sociais. Para o autor, se o final do século XIX é reconhecido como marco da construção da identidade do homossexual moderno, somente após quase uma geração a lesbianidade atingiu o mesmo patamar de reconhecimento. Esse período de indiferença é fundamentalmente explicado pelas diferentes suposições sobre a sexualidade feminina e masculina, particularmente pelas noções dominantes acerca da sexualidade feminina. Estudos originários do pensamento sexológico do século XIX apontavam que a existência sexual das mulheres estava circunscrita à maternidade, no limite, suas ações eram respostas ao desejo masculino. Essas pré-concepções acerca da sexualidade feminina

impediam qualquer possibilidade de conceituação21.

No instigante Atos impuros, Brown (1987) discute, entre a Idade Média e o início da Modernidade européia, a dificuldade de aceitar que mulheres pudessem sentir atração por outras mulheres. Segundo a autora, essa dificuldade se justifica pela visão falocêntrica predominante na sociedade da época. Para a sociedade, a lei, a medicina, a literatura e a opinião pública, as relações entre mulheres eram

21 É importante notar que os autores citados neste tópico são homens estudiosos da

homossexualidade que, ao tentar falar sobre a lesbianidade, se depararam com enormes dificuldades, desde a carência de fontes disponíveis até a priorização de enfoque adotada, pois a ênfase desses estudos incide sobretudo no enfoque masculino.

totalmente ignoradas, como se não existissem. Embora a palavra lésbica tenha aparecido no século XVI, a autora afirma que ela não entrou em uso até o século XIX. A ausência de discussão e a falta de vocábulos adequados para descrever o que se passava entre as mulheres deram margem ao aparecimento de uma série de termos: masturbação mútua, poluição, fornicação, sodomia, corrupção mútua, coito, cópula, vício mútuo, conspurcação ou impureza das mulheres uma pela outra, denominadas fricatrices, mulheres que bolinavam umas às outras, ou tríbades, correspondente grego para a mesma ação.

Faderman (2001) assinala que no século XIX ainda prevalecia a crença na assexualidade da mulher, posto que a sexualidade dominante era apenas a do homem, considerado o único portador de desejo sexual. O mundo era rigidamente separado em esfera privada e pública e os laços entre os homens eram encorajados desde cedo. As mulheres nutriam-se mutuamente nesse ambiente doméstico, cercadas de proteção e emocionalidade. A aceitação e o estímulo da amizade íntima jamais levantava qualquer suspeita, pois as mulheres eram, na percepção da época, assexuadas, de forma que esses laços poderiam ser descritos como “amizade romântica”. Um exemplo interessante da história da

relação íntima entre mulheres é o Boston marriage22, um tipo de relacionamento

que unia duas mulheres, geralmente da elite. Se as relações afetivo-sexuais entre as mulheres sempre existiram, somente com o advento da Sexologia e da Psicologia como ciências que a noção de lésbica como categoria pôde emergir. A partir de um estudo das relações afetivas entre as mulheres no século XIX, Rich (1993) defende a idéia de um continuum lésbico sugerindo que a amizade romântica seria o modelo para a lesbianidade.

Os estudos de Faderman (2001) e Vicent-Buffault (1996) mostram uma história repleta de exemplos de amizade entre mulheres, do Renascimento ao

22 Segundo Faderman (2001), Boston marriage era o temo usado no século XIX para

descrever amizades românticas que incluíam coabitação duradoura. Eram amizades emocionalmente intensas e fisicamente suaves entre duas mulheres que escolhiam viver juntas em vez de se casarem tradicionalmente. Essas relações não eram consideradas homossexuais ou pervertidas em seu tempo, porque eram tidas como não-sexuais. Os vitorianos confiavam que mulheres sérias eram desprovidas de desejo sexual e podiam manter relações íntimas e duradouras entre si.

século XIX. A amizade, que podia envolver afeto, cuidado, troca de carícias e beijos, era vista como perfeitamente possível e aceitável pela sociedade. A amizade íntima era uma idéia bastante aceita e convenientemente protegida de qualquer suspeita de uma possível tendência sexual.

Segundo esses estudos, a noção de amizade sofre mudanças importantes no decorrer do século XIX. Para Ortega (2002, p.151):

A principal transformação na forma de perceber a amizade refere-se ao deslocamento da noção de uma amizade afetiva, “a qual não problematizava a sexualidade (podiam existir intercâmbios sexuais ou não, era tolerada uma sexualidade pré-marital entre mulheres) na Renascença, para uma sob suspeita de lesbianismo e patologizado”.

Faderman (2001) afirma que a mudança na forma de perceber a amizade pode ser explicada pelas formulações médicas introduzidas pelos sexólogos na transição entre os séculos XIX e XX, que viam essa amizade como patologia, um problema médico. Outro motivo apontado pela autora é a mudança do status das mulheres. A maior participação no mundo público, por exemplo, a conquista do voto feminino, e uma maior independência eram vistas como uma ameaça para a instituição da família e do casamento.

O lesbian continuum de Rich (1993) – noção que retomo adiante – foi duramente criticado por Rubin (2003), que apontou para a simplificação da análise desses relacionamentos, nos quais os componentes de classe social, entre outras distinções importantes, ficaram relegados a segundo plano. Assim, Rubin (2003, p.175) enfatizou que “esse sistema categórico soterrou muitas complexidades históricas e sociais numa noção romântica, politizada e limitada de lesbianismo”. A autora considera algumas leituras feministas dos anos 1970 sobre lesbianidade um equívoco, pois privilegiam as relações de amizade na definição da categoria do lesbianismo, colocando outras formas sexualizadas de lesbianismo como inferiores, deficientes e degradadas.

Na visão dos historiadores, parece haver consenso de que a dificuldade em conceituar a lesbianidade refere-se à histórica supressão da sexualidade feminina, elemento apresentado como recorrente em quase todas as sociedades. Vicinus

(1993) comenta que a historiografia lésbica é difícil de ser apreendida e, ainda na atualidade, apresenta mais descontinuidades do que continuidades, enfatizando que é pelas margens, rupturas e fraturas que a história entre as mulheres pode ser recontada.

A visibilidade da sexualidade lésbica só se configura de forma mais evidente quando ela se torna um “tipo”, cuja construção se dá a partir de uma matriz (HACKING, 1999, p.10). A maioria dos historiadores localiza a emergência da categoria lésbica a partir de noções produzidas pelos sexólogos do século XIX. Tais noções serviram de modelo explicativo para mulheres que se identificavam com essas descrições, algo visto como contribuição positiva da Sexologia. O lado negativo estava na ênfase dessas abordagens em configurar as variações sexuais como doença, desvio, perversão (RUBIN, 2003).

Uma idéia bastante difundida no final do século XIX e início do século XX apresentava a lesbianidade como congênita, percebendo a lésbica como invertida, um membro do terceiro sexo, uma pessoa que nasceu com alma e mente masculina, mas estava aprisionada em um corpo feminino. Nesse tipo de abordagem prevalece a concepção essencialista da sexualidade. Essa noção, introduzida magistralmente na obra de Hall (1982), descreve o sexo como uma força imperativa, a identidade como imutável e a sexualidade feminina como uma cópia da sexualidade dominante masculina. A racionalidade que sustenta o enredo do livro de Hall (1982) é baseada no pensamento de trabalhos teóricos de sexólogos, cuja ênfase era a origem congênita da lesbianidade, complementado com a visão de que as lésbicas são masculinizadas, reproduzem o modelo heterossexual e são infelizes. O par de protagonistas descrito por ele, Stephen Gordon e Mary, reproduz os papéis estereotipados de gênero, ou seja, Stephen incorpora a polaridade masculina e Mary a polaridade feminina, evocando a rígida

divisão butch/femme23.

23 Expressão utilizada para referir-se ao par lésbico e que tem por modelo uma visão binária

As narrativas sustentadas por esses cientistas foram determinantes para a construção de um tipo de pessoa com direito à nomeação, identificação, classificação enquanto desvio ou patologia, mas também possibilitaram a identificação, a ruptura do silêncio, a troca de experiências e a formação de redes de solidariedade.

Nesse sentido, vale a pena lembrar o comentário de Falquet (2004, p.38): “de forma geral o desenvolvimento da lesbianidade tem acompanhado os avanços e retrocessos da situação das mulheres”. De acordo com a autora, a visibilidade e a legitimidade conferidas às práticas afetivo-sexuais entre mulheres são dependentes da forma como cada sociedade articula as noções do que é ser homem, ser mulher e suas interconexões com a sexualidade. A autora ressalta que as sociedades sempre controlaram, negaram ou silenciaram quaisquer expressões da sexualidade feminina que não se enquadrassem na norma, por isso as práticas sexuais entre mulheres têm sido mais ignoradas e menos estudadas se comparadas às práticas sexuais entre homens.

O paradoxo é evidente: se as práticas sexuais podem assumir variadas formas, especialmente nos dias atuais, os modelos que informam a sexualidade ainda são muito limitados, circunscritos ao binômio construção-inatismo. Epstein (1992, p.260) mostra que a própria idéia de oposição construcionismo/ essencialismo precisa ser melhor explorada naquilo que se convencionou considerar opostos imutáveis, escolha versus obrigação e igualdade versus diferença, no sentido de questionar esses binômios.

Seguindo esse raciocínio, “lésbica” pode ser compreendida como uma categorização social constituída por práticas discursivas e institucionais, cujos sentidos são constantemente negociados . Essa argumentação não nega o fato de que relações afetivo-sexuais entre mulheres provavelmente sempre existiram. No entanto, elas não existiam como categoria e tampouco eram nomeadas ou classificadas como desvio.

2.5. Teorizações sobre lesbianidade a partir dos movimentos lésbico e

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 55-61)