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Sobre sexo e (homo)sexualidades

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 41-46)

HOMOSSEXUALIDADES E A CONSTRUÇÃO DA CATEGORIA LESBIANIDADE

2.1. Sobre sexo e (homo)sexualidades

Apoiado nas definições do Oxford English Dictionary para pensar as distinções entre as categorias sexualidade e sexo, Davidson (1992) assinala que o termo sexualidade só apareceu no final do século XIX, cujo significado é “ter posse de poderes sexuais, ou capacidade de sentimentos sexuais”, já com indícios de uma compreensão mais ampla do termo, mostrando que a sexualidade não é redutível ao sistema reprodutivo ou à anatomia (DAVIDSON, 1992, p.98). Para Ferreira (1986, p.1581), a noção de sexualidade engloba “o conjunto dos fenômenos da vida sexual”, próxima da definição anterior. Entretanto, de acordo com Houaiss, Villar e Franco (2001, p.2564), o vocábulo expressa um “conjunto de caracteres especiais, externos ou internos, determinados pelo sexo do indivíduo”.

No Oxford, a condição de natureza não é dada e a sexualidade assume uma qualificação distinta de outras definições que a percebem somente como derivações do biológico.

A categoria sexo é definida como: 1) “a distinção entre macho e fêmea, respectivamente contida nas divisões dos seres orgânicos” (DAVIDSON, 1992, p.98); 2) “conformação particular que distingue o macho da fêmea, nos animais e nos vegetais, atribuindo-lhes um papel determinado na geração e conferindo-lhes certas características distintivas” (FERREIRA, 1986, p.1580); 3) “conformação física, orgânica, celular, particular que permite distinguir o homem e a mulher, atribuindo-lhes um papel específico na reprodução” (HOUAISS, VILLAR e FRANCO, 2001, p.2563). Essas definições, baseadas no argumento biológico, enfatizam as diferenças entre machos e fêmeas.

Mais do que uma distinção semântica, chamo a atenção para a importância do desenvolvimento de alguns campos teóricos para o aparecimento das categorias sexo e sexualidade. Segundo Davidson (1992, p.92), a noção atual de sexualidade é produto de um sistema de conhecimento específico, a Psiquiatria, cujo funcionamento obedece uma lógica e argumentação muito peculiar. Foi necessário um conjunto de saberes específicos que permitisse a ampliação do conceito para além das características anatômicas.

A argumentação de Davidson segue a mesma linha de Foucault (1984) sobre a importância dos saberes disciplinares, modalidades de poder que ajudaram a moldar a forma como são percebidas as experiências sexuais. Ao analisar especialmente os discursos médico e psiquiátrico do século XIX, fundamentais para a produção e a invenção da categoria e do sujeito homossexual, Foucault (1984) chama a atenção para os processos implicados nessa operação de produção, que consistem em inscrever uma natureza singular ao corpo do sujeito. Uma de suas idéias centrais está na definição de sexualidade como um “dispositivo histórico”, ou seja, ela se constitui historicamente a partir de múltiplos discursos cuja função é regular, normatizar e instaurar saberes, os quais produzem “verdades” (FOUCAULT, 1984, p.101). Para Foucault, o que caracteriza

a história da sexualidade não é um “regime de silêncio”, mas uma constante incitação ao discurso sob os auspícios de uma sociedade de vigilância e controle.

Seguindo as pistas de Foucault (1984), Davidson (1992) identificou uma mudança discursiva no tipo de racionalidade que embasava o discurso médico sobre a sexualidade. A partir da segunda metade do século XIX, o discurso médico se distanciou de uma explicação baseada na estrutura anatômica e passou a enfatizar os impulsos, as preferências, as atitudes, as satisfações e os traços psíquicos, incorporando elementos de uma discussão mais subjetiva e moral. Ainda segundo Davidson (1992), essa nova lógica permitiu a emergência e a expansão de uma grade de definição sobre as possibilidades do corpo, cuja racionalidade controlista faria emergir a noção de perversão e da tipificação de doenças e distúrbios da sexualidade.

Vale lembrar que, antes da racionalidade médica, outra visão dominava a percepção da homossexualidade. Vista como um pecado gravíssimo pela Igreja católica, a homossexualidade – denominada sodomia – era duramente combatida e perseguida pela Inquisição como heresia e imoralidade (MOTT, 1988). Indubitavelmente, a transição da noção de pecado e crime para a de doença mental foi uma mudança significativa na forma de conceber a homossexualidade. É Importante salientar que essas noções não foram totalmente suplantadas, pois as teorias de base anatômica não desapareceram. Entretanto, no final do século XIX, influenciadas mais intensamente pelas teorias científicas identificadas com essa nova racionalidade, as “teorias anatômicas” se tornaram responsáveis por delinear as fronteiras sobre as quais os homossexuais e as lésbicas iriam se definir, criando uma nova disciplina: a sexologia.

Obras clássicas, como Psycopathia sexualis, do psiquiatra alemão Krafft- Ebing (1931) e, posteriormente, The psychology of sex, de Ellis (1946), ajudaram a consolidar e a difundir a noção de homossexualidade como desvio e disfunção, tomando para si a classificação baseada em um espectro de repertórios mais alargado. O trabalho desses médicos, de compilar e sistematizar as narrativas, foi somente uma parte da história da criação da categoria homossexual, pois os

sexólogos extraíam seus “casos” de pessoas que encontravam em seus consultórios, de amigos ou de suas próprias vidas (Weeks, 2001, p.65).

Conforme Sterling (2001-2002), médicos como Ulrichs, Benkert, Ellis Carpenter, Kinsey, Freud, entre outros cientistas envolvidos no estudo e na sistematização das narrativas homossexuais, foram determinantes para a emergência da categoria homossexual. Na modernidade, afirma Weeks (2001), os sexólogos contribuíram para atribuir ao sexo a centralidade nas preocupações ocidentais.

Segundo Weeks (2001), os trabalhos de Krafft-Ebing (1931) e Ellis (1946) denotam uma visão de sexualidade que estava sendo construída em sua época: impregnada de suposições de que a sexualidade é inata, constituinte central da vida de uma pessoa e essencialmente masculina. Krafft-Ebing (1931, p.1) afirma que o sexo é “uma força e energia absolutamente avassaladora que exige satisfação”, Ellis (1946, p.3) define a sexualidade como o centro da existência e primordialmente como uma experiência masculina: “O sexo penetra a pessoa inteira; a constituição sexual de um homem é parte de sua constituição geral. Há uma considerável verdade na expressão: ‘um homem é aquilo que o seu sexo é’”. Esse “homem” não é, na acepção de Weeks, genérico e universal, mas denota uma linguagem metafórica, cujas suposições estão baseadas na experiência masculina.

Além de enfatizar a importância da história e da linguagem na definição dos termos “sexo” e “sexualidade”, Weeks (2001) chama a atenção para as diferentes implicações sociais associadas à forma como a homossexualidade foi sendo transformada em doença. O autor indica que o termo homossexual foi utilizado pela primeira vez em 1869. Para Sterling (2001-2002, p.42), esse novo termo não foi responsável pela criação imediata das categorias de sexualidade do século XX, mas propiciou sua emergência para que se desenvolvessem de forma gradual. As abordagens dos primeiros médicos/sexólogos estavam impregnadas da noção de sexualidade, na qual o sexo era visto como poderosa força instintiva e, portanto, precisava ser restringido pela sociedade. Outro ponto comum entre esses

trabalhos era a noção da homossexualidade como característica de um tipo particular de pessoa, cuja ênfase não mais incidia sobre os aspectos anatômicos, mas sobre os aspectos mentais.

As definições utilizadas por esses cientistas eram construídas sobre uma lógica dual da sexualidade, na qual os sexos eram vistos como masculino ou feminino e classificados de forma hierárquica . Essa lógica propiciou a invenção da figura do/a invertido/a, proposta por Ellis (1928, p.250), que descreve a “verdadeira” lésbica invertida:

Os movimentos bruscos e enérgicos, a atitude dos braços, a fala direta... A franqueza e o senso de honra masculinos (...) tudo sugere ao observador cuidadoso a anormalidade psíquica subjacente (...) há muitas vezes o gosto pronunciado por cigarros (...) mas também uma tolerância decidida por charutos. Há também desagrado e, às vezes, incapacidade para a costura e outras ocupações domésticas, e também alguma capacidade para o atletismo.

O modelo da invertida está intimamente ligado à visão da sexualidade apoiada na clara distinção entre masculino e feminino regida pela heteronormatividade. Essa lógica busca restabelecer a ordem “natural”, a coerência entre sexo, gênero e orientação sexual, pois para uma mulher gostar de outra mulher só pode ser homem, e para um homem gostar de outro, só pode ser uma mulher.

Esse período fértil de estudos sobre sexualidade humana, a partir do século XIX até o início do século XX, foi marcado pela expansão de trabalhos voltados para o controle da homossexualidade, levando a um maior conhecimento sobre o tema, tarefa da qual se incumbiram os cientistas.

As narrativas sustentadas por esses cientistas foram determinantes para a construção das auto-descrições de pessoas que se identificavam como homossexuais. Se, por um lado, os discursos científicos ocuparam um lugar de autoridade e de competência, por outro, foram se alterando, na forma e no conteúdo, no decorrer da história, como atestam as mudanças ocorridas no discurso médico sobre a homossexualidade. A noção de invertido é um dos exemplos de idéia que sofreu abalos, à medida que o conceito sobre papéis

sexuais rígidos e estritos era suplantado por explicações que associavam comportamentos ao desejo e, mais tarde, à preferência sexual. Mesmo com perspectivas de análise distintas – papéis, identidade ou desejo –, diferentes categorias têm sido utilizadas para definir, medir e analisar o comportamento sexual humano, demonstrando que a organização e a expressão social e pessoal da sexualidade não é atemporal, tampouco universal, mas constitui uma arena de constantes negociações de sentido e regulação.

Alfred C. Kinsey apareceu como um dos pioneiros dos modernos estudos sobre a homossexualidade. O “Relatório Kinsey” – como ficaram conhecidas suas obras Sexual behaviour in the human male (KINSEY; POMEROY; MARTIN, 1998 [1948]) e Sexual behaviour in the human female (KINSEY et al., 1998 [1953]) – , desmistificou a idéia de uma sexualidade resumida a dois tipos de pessoas: heterossexuais e homossexuais. Apesar de seu pensamento inovador, ao adotar a perspectiva do impulso sexual, Kinsey não conseguiu romper com seu background de cunho biológico e com a visão convencional da sexologia.

Contra o argumento biologicista, Weeks (2001) adverte que para entender a história da homossexualidade é necessário levar em conta as especificidades culturais de cada época, percebendo-as como um aspecto das amplas regulações de sexo e de gênero.

2.2. Homossexualidade/lesbianidade em discussão: de condição a

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 41-46)