• Nenhum resultado encontrado

Ramificações políticas do debate entre essencialismo e construcionismo A criação da categoria “homossexual” pelos sexólogos do século

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 50-55)

HOMOSSEXUALIDADES E A CONSTRUÇÃO DA CATEGORIA LESBIANIDADE

2.3. Ramificações políticas do debate entre essencialismo e construcionismo A criação da categoria “homossexual” pelos sexólogos do século

possibilitou a organização e a legitimação de uma “identidade homossexual”, até então, impensável, devido a falta de recursos teóricos discursivos que a assegurassem. A terminologia adotada pelos médicos do século XIX, segundo Foucault (1984, p.96), deu margem à “afirmação reversa” – efeitos de mão dupla dos discursos sobre a homossexualidade, inversão, pederastia e hermafroditismo psíquico produzidos na psiquiatria, na jurisprudência e na literatura no século XIX. Por um lado, esses discursos serviram como instrumento de controle social sobre essas “perversidades”, por outro, propiciaram a constituição de um discurso de oposição e resistência.

Epstein (1992, p.251) assinala que, para além da “afirmação reversa”, importantes mudanças sociais, especialmente na estrutura familiar, foram geradas pela revolução industrial e pela urbanização, primordiais para a emergência de subculturas homossexuais. Sem as bases materiais ou pré-condições, argumenta o autor, a homossexualidade enquanto categoria classificatória não teria florescido. Essas mudanças foram discutidas, mais profundamente por Weeks (1977) e D’Emilio (1993), como condições à emergência da categoria homossexual.

Jagose (2004) mostra que as primeiras manifestações pró-homossexuais surgiram na Alemanha no fim do século XIX, época marcada pela cristalização da homossexualidade como identidade, denominadas movimentos homofílicos. Nos Estados Unidos, a política homossexual dos anos 1950 e 1960 conduzida por esses grupos estava alinhada com uma política acomodacionista, que buscava maior integração dos/das homossexuais na sociedade enfatizando que esses eram cidadãos-modelo e não perturbavam o status quo.

Ao final da década de 1960, conforme Epstein (1992), observou-se uma

ruptura com o modelo homofílico e, com a revolta de Stonewall19 em Nova York, foi

inaugurado o período da gay liberation ou movimento de liberação homossexual. O cerne da luta política estava na crítica à estrutura e aos valores da sociedade heterossexual dominante – a monogamia, a rígida divisão entre homens e mulheres e a lei. O homossexual era visto como uma solução para uma sociedade deformada, um sujeito revolucionário que, ao fazer avançar a causa da liberação sexual, impactaria a sociedade como um todo. O orgulho gay (gay pride) foi um dos importantes desdobramentos desse período.

O argumento liberacionista serviu de inspiração para estudiosos do construcionismo, cujas idéias ajudaram a construir as estratégias políticas do movimento feminista e do movimento gay. Ambos compartilhavam pontos em

19 Em 1969, cansados de serem hostilizados, gays, lésbicas e travestis freqüentadores do

bar Stonewall em Nova York resolveram se rebelar e entraram em choque com a polícia. Esse episódio simbolizou a mudança da postura passiva dessa população, frente à sociedade e ao Estado, para uma atitude de enfrentamento e de exigência de direitos.

comum, como a ênfase de que as tipologias sexuais eram sociais e não fatos naturais, que eram fluidas e que precisavam ser superadas. Além disso, compartilhavam um senso de abertura para as possibilidades históricas, enriquecidas pelo clima político favorável da época.

Desiludido com a proposta de libertação, acrescida da reavaliação sobre como as estruturas de poder e resistência funcionam, o movimento gay foi levado a buscar outro modelo. Ironicamente, ao conseguir mudanças para a situação de

gays e lésbicas, o movimento liberacionista solapou seus próprios argumentos. A

proposta de uma mudança mais universal para a sociedade foi atropleda pela necessidade de uma plataforma de mudanças pontuais, radicada na idéia de que os gays constituíam um grupo social específico, com seus próprios interesses políticos e sociais (Jagose, 2004).

Assim, segundo Jagose (2004), nos anos 1970 e início dos 1980, ganhou força o modelo étnico, cujo objetivo era estabelecer a identidade gay como a de uma minoria legítima e, com o reconhecimento oficial, garantir a cidadania e os direitos civis para gays e lésbicas. A forma como foi construído aproxima-se do conceito de uma minoria étnica. O modelo étnico constituiu uma estratégia para garantir proteção legal igualitária para gays e lésbicas, estabelecendo comunidades urbanas visíveis e legitimando-os como categorias identitárias. Dessa forma, o gay passou a formar um grupo distinto e identificável, diferente da possibilidade radical vislumbrada pelo modelo do gay liberation. A partir disso, lésbicas e gays passaram a exigir reconhecimento do sistema e direitos iguais.

Contrariamente aos ideais que circulavam na década de 1970 e ao pensamento construcionista em desenvolvimento, os ativistas adeptos do modelo étnico compartilhavam as idéias essencialistas, nas quais a sexualidade é movida por forças biológicas e as identidades sexuais são resultado de diferenças subjacentes genuínas.(Stein,1992).

Stein (1992, p.243) chama a atenção para as diferenças entre os modelos explicativos de homossexualidade/lesbianidade, enfatizando as implicações de distintas teorias e, conseqüentemente, de diferentes práticas no tocante à

homossexualidade/lesbiandiade. O autor aponta para as tensões entre uma política de tendência mais essencialista adotada pelo movimento gay, a partir de 1970 – que concebia a noção de homossexualidade como algo real e não como uma diferença arbitrária –, e a abordagem construcionista, na qual a distinção hetero/homossexualidade era percebida como uma ficção social.

A tensão entre teoria e prática não é novidade e perpassa também os movimentos Negro e Feminista. Aparentemente, as explicações teóricas, do ponto de vista das estratégias necessárias para legitimidade e organização, não respondem às expectativas da militância. Um dos dilemas impostos pela disjunção entre teoria e prática situou-se na pouca aderência da posição construcionista aos anseios de gays e lésbicas ao se colocarem como um grupo específico e distinto do grupo dos heterossexuais, em um movimento que clamava pela constituição de uma política identitária. Nesse sentido, é compreensível que a relação entre teoria e ativismo seja dinâmica e interdependente. A posição teórica não está isenta de tensão e exposição de suas limitações; portanto, as teorias devem ser entendidas como incompletas e provisórias.

No caso dos estudos e políticas voltados para gays e lésbicas, a

emergência de pesquisas queer20, nos anos 1990, apontou para o

descontentamento de alguns/mas teóricos/as com modelos explicativos até então utilizados para a compreensão das sexualidades, particularmente os adotados pelos movimentos feminista, gay e lésbico. A teoria queer radicalizou o questionamento de estabilidade, fixidez e coerência das identidades sexuais. Ancorado no pensamento pós-moderno, entendido como um conjunto de movimentos, práticas e saberes que desafia a noção de um sujeito racional, livre, autônomo, centrado e soberano, o pensamento queer abre passagem para as diferenças e os diferentes – o “estranho” e aqueles que habitam as fronteiras e

20 Segundo Louro apud Seidman (2001), apesar de se configurarem como um agrupamento

diverso que apresentam aproximações e divergências, os estudiosos queer compartilham alguns elementos: apoiar-se fortemente no pensamento pós-estruturalista francês e na desconstrução como um método de crítica literária e social; fazer uso de categorias e perspectivas psicanalíticas; ser favoráveis a uma estratégia descentradora ou desconstrutivista que escapa às proposições sociais e políticas pragmáticas positivas; imaginar o social como um texto a ser interpretado e criticado, uma forma de contestar o conhecimento e as hierarquias sociais dominantes.

vivem na ambigüidade.

Nesse sentido, a posição construcionista é um modelo explicativo e um movimento que contribui para a elaboração de teorias com diferentes especificidades e tem sido referência para a teorização feminista sobre gênero e útil à teoria queer, na medida em que entende a sexualidade como construção social e problematiza a universalidade e o caráter a-histórico da categoria homossexual. Entretanto, a teoria queer vai além da hipótese da construção social da identidade, conforme Silva (2005, p.107), “na hipótese da construção social, a identidade acaba, afinal, sendo fixada, estabilizada, pela significação, pela linguagem, pelo discurso”. A concepção queer coloca a identidade em cheque, ao radicalizar o livre trânsito entre as fronteiras da identidade, apostando na mobilidade e na possibilidade do cruzamento de fronteiras. Na interpretação de Louro (2004, p.7),

Queer é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade desviante – homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o excêntrico que não deseja ser “integrado” e muito menos “tolerado”. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambigüidade, do “entre lugares”, do indecidível. Queer é um corpo estranho que incomoda, perturba, provoca e fascina.

Seguindo rumos análogos à teorização feminista alinhada ao pensamento pós-estruturalista, a teoria queer possibilita questionar a identidade de gênero, ou como homens e mulheres são socialmente construídos e vivem sua sexualidade. Partindo do questionamento do que é identidade, Butler (2003), teórica queer e feminista, introduz o conceito de perfomatividade, no qual enfatiza que a identidade sexual não fica contida pelos processos discursivos que tentam fixá-la, sugerindo que pensemos as práticas reguladoras de formação e divisão de gênero como constituintes da identidade. Essas mesmas práticas reguladoras que governam gênero também controlam as maneiras pelas quais as pessoas se tornam inteligíveis. Para a autora, a identidade de gênero é concebida como ficção cultural, efeito performativo de atos reiterados dos regimes sexuais regulatórios em conformidade com padrões reconhecíveis de inteligibilidade de gênero, cujo

maior objetivo é aparentar uma suposta uniformidade e coerência com a matriz heterossexual. Para Butler (2003), as pessoas são aquilo que sua suposta identidade define que elas sejam, porém, as mesmas limitações impostas pela matriz heterossexual convertem-se em possibilidades de transgressão dessas fronteiras.

Diferentes modelos de conhecimento e circunstâncias históricas, incluindo as contidas nos movimentos homofílico, gay liberation, feminismo lésbico e teoria

queer, mostram que a questão posta pelos teóricos não é única e que não se pode

apreender a homossexualidade/lesbianidade através de um raciocínio linear sem entender os sucessivos modelos teóricos e as estratégias políticas empreendidas no último século. Os diferentes pressupostos que norteiam as teorizações construcionistas e essencialistas implicam compromissos distintos à chamada posição construcionista ou essencialista. Ainda assim, ambas discutem a homossexualidade e, certamente, contribuíram para sua legitimação.

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 50-55)