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Televisão brasileira: especificidade, exuberância e seu papel na construção de “problemas” sociais

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 66-69)

A CONSTRUÇÃO DE “PROBLEMAS” SOCIAIS

3.1. Televisão brasileira: especificidade, exuberância e seu papel na construção de “problemas” sociais

Qual a relevância da TV e de seu mais importante produto cultural no contexto brasileiro?

Diferentemente de países europeus, como a França, no Brasil, assistir televisão é um hábito presente no dia-a-dia e uma das referências mais constantes nas abordagens sobre um país atravessado por tensões e contradições. Segundo Eugênio Bucci (1996, p.16), “foi a televisão que forneceu ao brasileiro sua auto-imagem a partir dos anos 70. Não foi o cinema, a literatura, não foi a imprensa, nem o futebol, nem a religião: foi a TV”.

A capacidade da televisão de penetrar no cotidiano dos/as brasileiros/as é explicada por Hamburger (1998, p.441) como uma das características mais marcantes da onipresença desse veículo de comunicação:

Longe de prover interpretações consensuais, a TV fornece um repertório comum por meio do qual pessoas de classes sociais, gerações, sexo e regiões diferentes se posicionam, se situam umas em relação às outras. Ao tornar um repertório comum acessível a cidadãos os mais diversos, a TV sinaliza a possibilidade, ainda que sempre adiada, da integração plena. Ela como que alimenta cotidianamente uma disputa simbólica, uma corrida pelo domínio das informações necessárias, um jogo de inclusão e exclusão social.

Através da difusão de informações, sem distinção de classe social ou localização geográfica, a TV contribui para a diluição das fronteiras entre público e privado, disponibilizando informações e repertórios antes conhecidos apenas pela via de instituições tradicionais – escola, igreja, família e Estado. Para Hamburger (1998, p.442),

(...) a televisão, e a telenovela em particular, são emblemáticas do surgimento de um novo espaço público, no qual o controle da formação e dos repertórios disponíveis mudou de mãos, deixou de ser monopólio dos intelectuais, políticos e governantes titulares dos postos de comando nas diversas instituições estatais.

A televisão tem afirmado, ao longo de sua história, a capacidade de penetrar nos espaços públicos e privados, integrando expectativas diversas, além de lançar novidades para sua imensa audiência. Ao captar a atenção pública e incorporar temáticas atuais nas telenovelas, como a homossexualidade/ lesbianidade, a mídia televisiva contribui ativamente para a construção de sentidos dessa categoria. Nas sociedades modernas, a mídia se configura como uma das arenas importantes para definição dos problemas sociais (ROSEMBERG, 2007).

Hamburger (1998) argumenta que, apesar da aparente conexão com as demandas e mudanças sociais, a televisão está implicada no processo de reprodução de representações que mantém e perpetua matizes de desigualdade e discriminação, como na super-representação de brancos em relação a negros nos mais diversos programas televisivos e, por omissão, acaba contribuindo para a reprodução da discriminação racial. No entanto, essa visão é contra-argumentada

por Benedito Medrado (2000) – com quem concordo –, ao assinalar que a mídia não apenas reproduz fenômenos sociais, mas também produz e veicula sentidos.

Bucci (1996) oferece algumas pistas sobre o funcionamento da televisão e apresenta cinco constantes que ajudam a compreender o sucesso alcançado pela TV no Brasil. Retomo três dessas constantes, que dialogam diretamente com este estudo: na primeira, afirma o autor, “a televisão reproduz a exclusão social e o preconceito de classe à medida que o integra” (BUCCI, 1996, p.32). A regra é simples: a TV mostra o Brasil integrado por meio de uma redução idealizada, um país cujas contradições e tensões são imediatamente equacionadas. Para isso, é preciso silenciar os socialmente excluídos – negros, miseráveis, feios e opositores – que, quando aparecem, são apresentadas de forma estereotipada, dando vazão a preconceitos. À lista apresentada por Bucci (1996), acrescentaria outras formas de exclusão decorrentes de preconceitos relacionados a gênero, geração e orientação sexual, representados por mulheres solteiras, velhos, homossexuais, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, ambíguos, entre tantos outros.

A segunda constante se refere ao papel transgressor da mídia televisiva “à necessidade da televisão de transgredir os próprios limites” (BUCCI, 1996, p.34), mantendo seu público fiel por meio da apresentação de novidades, e é no campo dos costumes que faz isso de forma mais eficiente. Ao lidar com temas considerados tabus, a TV traz à cena um cardápio aparentemente inovador e polêmico: o que choca o telespectador é o que o fascina. Para Bucci (1996, p.34),

A TV brasileira estará sempre tangenciando os tabus, onde quer que eles estejam. Seja porque o espaço público tende a crescer, seja porque a imbricação entre ele e o espaço privado tende a aumentar, seja porque ele se espraia, devorando privacidades e gerando novas esferas de intimidade, seja porque precisa englobar tudo isso, a TV depende de ir sempre além. O seu oxigênio vem de espaços virgens. Espaços já conquistados são espaços estéreis. Quando não encontra, ela fabrica novos espaços virgens.

Na terceira constante – forma de funcionamento – Bucci (1996, p.31) aponta que, para ter sucesso, “as novelas precisam propor uma síntese do Brasil”, associando sua percepção de país vivida cotidianamente e o que é apresentado

pela TV. De acordo com Bucci (1996, p.32), é na novela das oito que essa síntese tem de se mostrar mais acurada:

O novelão das oito (o núcleo, o horário nobre) é obrigado a trazer ao público uma reelaboração estética do próprio país e de suas tensões presentes. Não há escapatória. O novelão das oito trabalha com tramas fictícias, por certo, mas alimentando-as, movendo-as estão as tensões reais vividas pelo telespectador. O diálogo entre a realidade do cidadão e o enredo imaginário sugerido pela novela produz obras que comportam vários níveis de entendimento – e de eficiência. É ingenuidade supor que novelas não passem de roteirinhos à toa. Há nelas, obrigatoriamente, uma complexidade que apenas se apresenta superficial. Sem essa complexidade (que constitui o âmago da difícil arte do novelista), ela deixa de atrair o público.

Essas três constantes foram estrategicamente utilizadas por Aguinaldo Silva, autor da novela Senhora do Destino (2004-2005) para introduzir o tema da lesbianidade no horário nobre da TV brasileira. Neste caso, a inclusão dessa temática contempla a necessidade de explorar assuntos pouco abordados no vídeo, embora sintonizados com as rápidas mudanças nos costumes e na intimidade, sem, no entanto, realizar um processo de desestabilização de valores.

Lembro que, entre os programas veiculados pela TV, a telenovela se tornou um de seus carros-chefe de maior sucesso e rentabilidade e é um dos grandes responsáveis pela mobilização da audiência nacional em termos de informação e formação de opinião pública, portanto, um contexto muito favorável para vender produtos e disseminar idéias.

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 66-69)