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Aspectos descritivos na caracterização do objeto indireto

No documento Para a história do português brasileiro (páginas 77-82)

A CARACTERIZAÇÃO DO OBJETO INDIRETO NO PORTUGUÊS: ASPECTOS SINCRÔNICOS E

2. Aspectos descritivos na caracterização do objeto indireto

Mateus et alii (1991) definem o objeto indireto dos verbos ditransitivos como o argumento introduzido pela preposição a, tipicamente com a função semântica de recipiente (alvo/meta) e fonte/origem.19 O complemento preposicionado tem o traço [+animado], ou é interpretado como tal. Quando é um pronome, apresenta a forma casual dativa. No caso da 3a pessoa, as formas lhe/lhes.20

(1) a. O miúdo deu o brinquedo ao amigo. b. O miúdo deu-lhe o brinquedo. (p. 231)

19 A classificação dos verbos ditransitivos adotada é a que foi proposta em Berlinck (1996). Os predicados ditransitivos compreendem os verbos semanticamente classificados como verbos de transferência material - dar,

vender, entregar, comprar, roubar etc; transferência verbal/perceptual - comunicar, dizer, confiar, revelar, explicar, declarar,

mostrar etc.; movimento físico - trazer, fugir etc.; e movimento abstrato - oferecer, conferir, destinar etc, - dentro do esquema sintático S V OD OI. Por sua vez, o esquema temático envolve um argumento agente/causador da ação expressa pelo verbo; um argumento tema e um argumento recipiente/fonte que marca o ponto final ou o ponto de partida da ação expressa pelo verbo. Embora o traço [+animado] seja o termo preferido pelos gramáticos para caracterizar o núcleo do complemento indireto, este tem que ser entendido, às vezes, num sentido mais particular, como nome humano ou abstrato. Ex: Dava pouca importância ao seu futuro.

Certos verbos intransitivos do tipo de obedecer, sobreviver (obedecer ao regulamento, sobreviver ao massacre) selecionam o objeto indireto [-animado].21 O mesmo traço identifica o objeto indireto com os verbos dar e fazer, quando seguidos de objeto direto que tem como núcleo um nome deverbal, como (2a-b):

(2) a. Dar [uma pintura] OD [às estantes]OI b. Fazer[ uma limpeza] OD [à casa] OI (p. 230)

Nestas construções pode se ter ainda um oblíquo locativo: (3) a. Dar [uma pintura] OD [ nas estantes] OBL/loc

b. Fazer [uma limpeza] OD [na casa] OBL/loc (p.230)

A associação dos clíticos lhe/lhes ao complemento indireto constitui um bom teste para sua identificação. De fato, embora a preposição a não seja exclusiva dos objetos indiretos (cf. 4e), os clíticos dativos não podem estar associados a certos complementos preposicionados, como mostram os casos agramaticais do conjunto abaixo:

(4) a. O João gosta da Maria. b. *O João lhe gosta. c. O João pensa na Maria. d. * O João lhe pensa.

e. Os turistas assistiram à opera. f. *Os turistas lhe assistiram.

Para dar conta desses fatos, Mateus et alii propõem uma distinção entre relações gramaticais oblíquas e a relação gramatical de objeto indireto, embora sejam ambas introduzidas por preposição.22 As relações oblíquas são estabelecidas tanto por complementos, como por adjuntos, a partir da natureza do predicador verbal, e expressam um leque de relações semânticas, entre elas, instrumento, comitativo, beneficiário, tempo, duração, freqüência, locativo, situacional, direcional, causa, fim. Vejamos alguns exemplos:

21 Neste estudo, não tratamos dos predicados inacusativos, psicológicos, existenciais, nos quais o argumento dativo recebe uma diversidade de interpretações, incluindo experienciador, possessivo e locativo. Tais predicados expressam eventualidades (eventos, processos ou estados). Entre eles, podemos citar: obedecer, servir, chegar, constar,

faltar, incumbir, convir, tocar, corresponder, bastar, sobrar, subir, vir, cair, escapar, parecer, ocorrer, sobrevir, suceder, acontecer, agradar, desagradar.

(5) a. O meu amigo pintou esse quadro para a Maria. (beneficiário) b. Tenho de sair já para não perder o avião. (fim)

c. O Luís foi ao cinema com a Ana. (comitativo)

d. O João cortou-se com o abre-latas. (instrumento) (p. 234)

Os constituintes oblíquos podem ser, portanto, introduzidos por uma preposição, que marca sua função semântica. Os verbos que determinam o esquema oblíquo são, em geral, verbos que selecionam a preposição. Assim, entre os que selecionam a preposição com, temos: confundir, partilhar, repartir; a preposição de: afastar, aproximar, esconder; em: converter, enfiar; a preposição por: distribuir, substituir, trocar. Observe-se que os complementos oblíquos podem ser pronominalizados pelas formas tônicas ele/s, ela/s, introduzidas pelas respectivas preposições (6a-f). Igualmente, verbos como chegar, ir, vir, viver, morar, selecionam oblíquos que podem ser comutados por advérbios de lugar (6h):

(6) a. Todos gostam do artista. b. Todos gostam dele.

c. Os turistas assistiram à opera. d. Os turistas assistiram a ela. e. O José não confia nos empregados. f. O José não confia neles.

g. O José chegou de São Paulo. h. O José chegou de lá.

Voltando ao objeto indireto, uma questão intimamente relacionada à sua identificação diz respeito ao estatuto da preposição que o introduz na estrutura verbal. No conjunto das línguas românicas, o objeto indireto tem sido caracterizado como uma relação gramatical, formalmente introduzida pelas preposições a e para. No entanto, sabemos que as preposições a e para têm significados distintos que se manifestam nos diferentes contextos lingüísticos.Vejamos um caso claro em que as preposições a e para não são sinônimas: (7) a. O Pedro comprou um carro ao José.

b. O Pedro comprou um carro para o José.

Em (7a), a seqüência a+DP é ambígua: ao José é interpretado como recipiente ou fonte. A ambigüidade se expressa na direção do movimento que se estabelece entre o OI e o OD. No primeiro caso, José é entendido como o ponto final do movimento.

No segundo caso, como o elemento de onde partiu o movimento, ou seja, a sentença expressa a venda de um carro por parte de José. Em (7b), porém, o DP introduzido pela preposição para é um adjunto oblíquo, interpretado como o beneficiário do evento comprar. 23

Bechara (2000) reconhece a necessidade de se esclarecer esse ponto: “Cabe insistir que a preposição que introduz o complemento indireto é a; muitas vezes, parece que,

nesta função, se acha a preposição para, já que a e para se alternam em muitos esquemas

sintáticos, mas não quando se trata do complemento indireto, o que só raramente acontece” (pp.422-423). Segundo o autor, na sentença alguns alunos compraram flores para a professora, a preposição para não introduz o objeto indireto, dada a possibilidade de co- ocorrência com a preposição a, como em: alguns alunos compraram flores à florista para a professora. Além disso, a pronominalização só poderia ser realizada com o termo à florista, evidente no contraste entre a gramaticalidade da sentença alguns alunos compraram-lhe flores para a professora e a gramaticalidade de alguns alunos compraram-lhe ao florista. Além do mais, não seria possível introduzir com a preposição a os dois sintagmas preposicionados como em Alguns alunos compraram flores à florista à professora.24

23 Na versão atual da sua gramática, Mira Mateus et alii (2003) confirmam a intuição do falante português no uso das preposições a e para: a primeira, expressa meta/fonte (i-ii);

(i) O João ofereceu um CD ao Pedro.

(ii) O João comprou esse livro raro a um alfarrabista do Portal. (p. 289) (iii)O meu amigo pintou esse quadro para a Maria. (p. 294)

Nos casos em que ocorre a preposição a, as autoras afirmam tratar-se da relação gramatical objeto indireto; nos casos em que ocorre a preposição para, são relações oblíquas.

24 Em seus estudos sobre o OI no espanhol, Ordoñez (1999) apresenta uma reflexão semelhante, ao considerar equivocado o paralelo entre a e para, como expresso em (i):

(i) a. Hizo una toquilla a su suegra / Le hizo una toquilla. b. Hizo una toquilla para su suegra / Le hizo una toquilla.

Nos termos do autor, a substituição pelo clítico dativo da expressão para su suegra em (ib) não é adequada descritivamente e assumi-la obriga ou a postular que os sintagmas introduzidos por a e para desempenham a mesma função, ou abandonar o critério da substituição pelo clítico, uma vez que os contextos de redobro no espanhol mostram claramente que o lhe redobra unicamente DPs introduzidos por a, como seria o caso em Le

hizo una toquilla a su suegra. Segundo o autor, nenhuma das conclusões é aceitável, uma vez que decorrem de uma

má aplicação da possibilidade de cliticização do argumento dativo, com base na sinonímia contextual, ou em uma confusão dos conteúdos lingüísticos com a realidade extralingüística que se depreende das expressões a su hijo e para su hijo (cf. também, Hernanz & Brucart, 1987 e Campos, 1999). Como ele afirma: “El mantenimiento en las gramáticas (con la honrosa excepción de Bello 1847) de la preposición para como índice funcional proprio de los complementos indirectos no se correspondia con el comportamiento de la lengua. Poco a poco se iria desvelando la inconveniencia e incluso las contradicciones a las que conducia mantener aquella opinión.”(p.1868).

Algumas línguas, como o espanhol, permitem ainda que se estabeleça uma distinção entre as preposições a e para com base no conhecido fenômeno do redobro do clítico.25 De fato, como se vê pelos exemplos (8a-b), os pronomes clíticos lhe/lhes co-ocorrem com constituintes introduzidos unicamente pela preposição a, em oposição à preposição para. Entretanto, ao contrário do espanhol, onde o redobro do OI é muito produtivo e praticamente irrestrito, o português alinha-se ao francês e ao italiano, por não apresentá- lo em sua gramática com os complementos lexicais (exs.9a-f):26

(8) a. Le envió una postal a Pepe. b. *Le envió una postal para Pepe. (9) a. Jean a donné des bonbons à Marie.

b. *Jean lui a donné des bonbons à Marie. c. Lina a dato una caramella a Giovanni. d. *Lina gli ha dato una caramella a Giovanni. e. O José deu balas à Maria.

f. *O José deu-lhe balas à Maria 27

O argumento do redobro do clítico pode ainda ser aproveitado para o português, quando se considera que o fenômeno é bastante produtivo na presença das formas pronominais. Neste caso, a restrição quanto à preposição a se apresenta normalmente. É o que se observa no contraste expresso em (10a-c). Mais importante, porém, para nossas reflexões é o fato de o redobro das formas pronominais a ele/s, a ela/s, ser obrigatório na presença dos verbos ditransitivos (10a–b), e vetado aos contextos em que os predicadores selecionam um complemento pronominal oblíquo (10d)28. Portanto, tanto as restrições quanto à preposição como a obrigatoriedade do redobro não atingem os predicados que não selecionam um argumento dativo (cf.exs.6a-h).

25 Na literatura corrente, o redobro do clítico se caracteriza pelo esquema cl-DP, em que o DP-OI é “dobrado” pelo clítico dativo, instanciando concordância de número e pessoa.

26 Os exemplos do francês e italiano são de Jaeggli (1986).

27 A ausência de redobro do clítico do OI lexical pode estar refletindo uma variação dialetal. De fato, nos dados do CORDIAL-SIN – corpus dialetal de etiquetação sintática –, encontramos alguns casos, embora duvidosos, uma vez que podem ser tratados como anti-tópicos. Um exemplo:

(i) E essa rapariga roubou-lhe, ao pai, apanhou-lhe ao pai um cheque de cento e sessenta contos, e fugiu com o gajo e o ouro.

(10) a. Dei-lhe o livro a ela. b. *Dei o livro a ela. c. *Dei-lhe o livro para ela. d. *O José reagiu-lhe a ele.

O mesmo contraste entre as preposições a e para se manifesta nas construções de Deslocamento à Esquerda Clítica (DEC), nas quais o lhe co-ocorre com um OI lexical, introduzido por a. Observe-se ainda a agramaticalidade de (11b), com a forma a ele em lugar do lhe. Os exemplos são do PE atual.

(11) a. Ao teu amigo, ainda não lhe pagaram os direitos de autor, pois não? b. *Ao teu amigo, ainda não pagaram a ele os direitos de autor, pois não? c *Para o João, ainda não lhe pagaram os direitos de autor, pois não? (cf. Duarte, 1987) 29

No documento Para a história do português brasileiro (páginas 77-82)