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O problema: e o dequeísmo pintou na sintaxe brasileira

No documento Para a história do português brasileiro (páginas 186-191)

O CLÍTICO LOCATIVO EN E O DEQUEÍSMO DAS ORAÇÕES RELATIVAS NO PM

1. O problema: e o dequeísmo pintou na sintaxe brasileira

Comecemos o estudo do fenômeno por um breve resumo do trabalho de Mollica. Segundo essa autora (1995:12)98, sentenças como:

(1) a) “... eu estou com a impressão de que o senhor é candidato ao governo do seu estado.”

b) “Tenho certeza Ø que entre mim e o povo há muita coisa em comum e Ø que nós nos daremos muito bem.”

(2) a) “Eu poderia provar para o povo de que houve fraude nas eleições passadas”

b) “Eu creio Ø que nós temos que fazer associação com qualquer país...”

exemplificam dois processos – queísmo (1b, 2b) e dequeísmo (1a, 2a) – ambos correntes no português, sendo que o segundo está se destacando atualmente no português brasileiro, envolvendo principalmente complementos nominais e orações substantivas objetivas diretas.

O processo do dequeísmo consiste na presença da preposição de antes da conjunção integrante que, formando o conjunto de + que; o queísmo consiste na utilização somente

98 Os grifos dos exemplos (1) e (2) são meus. Os exemplos numerados com (1a e b) correspondem aos de Mollica (1) e (1’), respectivamente; e os exemplos (2a e b), correspondem aos de (2) e (2’) da mesma autora.

da conjunção que, com elipse da preposição de, sendo seu lugar marcado por Ø. Constituiu-se assim o conjunto Ø que.

Rabanales (1974, apud Mollica 1995:22), um dos primeiros a estudar esses fatos no espanhol, assim definiu esses dois processos: (i) queísmo é a “perda”, “elipse”, “supressão” ou “ausência” da preposição de diante da conjunção integrante que, e (ii) dequeísmo é a “intromissão” ou “inserção” da preposição de antes da conjunção integrante que. Ele hipotetizou que o dequeísmo surgiu do cruzamento sintático de duas formas lingüísticas relacionadas sintática e semanticamente, dando os seguintes exemplos:

(3) a) ‘espero que venga mañana’

b) ‘tengo la esperanza de que venga mañana’

c) ‘espero de que venga mañana’;

d) ‘tengo la esperanza Ø que venga mañana’

Assim, uma subordinada substantiva objetiva direta (3a), introduzida por um que integrante, tem semelhança com uma subordinada completiva nominal (3b), que é introduzida pela preposição de e passa a apresentar também a conjunção integrante que, surgindo um de que; daí ocorre o cruzamento entre os dois tipos de orações: em (3c) tem-se uma substantiva objetiva direta com de que, (exemplo de dequeísmo), e em (3d), surge uma completiva nominal com Ø que, (exemplo de queísmo).

Inspirando-se nas explicações de Rabanales, Mollica (1995) estudou os mesmos fenômenos no Português Brasileiro atual, enfatizando a variação nos usos de de + que e de Ø que. A esse modo de enfocar o problema ela propôs o termo (de)queísmo, ou seja, a ocorrência da preposição de varia com a sua não-ocorrência, vindo daí a utilização da preposição de entre parênteses. Essa variação,

caracterizada de forma bem ampla, se constitui na possibilidade de empregar-se ou não empregar-se a preposição “de” diante de “que” numa relação de complementação entre ou um verbo, ou um nome, ou um adjetivo, ou uma expressão, presente na matriz, e uma sentença subordinada introduzida pelo complementizador ou pelo relativizador “que”. A referida variação pode também ocorrer no interior de locuções conjuntivas com função de conectar enunciados sentenciais.

Segundo a autora, vários gramáticos brasileiros já haviam mencionado a existência do dequeísmo no português e destacado sua origem como um cruzamento sintático. Cita Barreto (1980, apud Mollica 1995:19), que afirma que o infinitivo

preposicionado, muito empregado nos séculos XVI e XVII, deu origem às completivas nominais com ‘de que’. Assim, ‘determinou de escutar a música’, ‘jurou de cumprir’, ‘ordenou de vender’, equivalem a ‘tomou a determinação de’, ‘fez juramento de’; daí surgindo as orações subordinadas ‘fez juramento de que”, ‘tomou a determinação de que’.

Investigando se o dequeísmo português é um fato novo ou se já ocorria na época medieval, Mollica concluiu que: (i) o (de)queísmo é uma inovação ibérica, ocorrendo tanto no português como no espanhol, e não existindo em nenhuma outra língua românica; (ii) aparece raramente em textos do espanhol medieval mas começa a ganhar força por volta do século XVII; (iii) no português já é detectado na Demanda do Santo Graal (obra dos séculos XII-XIII, de que se dispõe de uma versão do século XV) em sentenças subordinadas completivas nominais, como mostram os exemplos em (4a,b,c), ao lado do queísmo (4d), embora no trabalho exaustivo de Mattos e Silva (1989), sobre uma obra do século XIV, não tenham sido encontradas ocorrências de (de)queísmo; (iv) é detectado em todos os séculos no português, segundo um corpus composto pela própria autora, como mostram os exemplos em (5)99:

(4)100 a) “Enton se foi Tristam mui sanhudo e com grã pesar de que nom matara Palomades.” b) “... mui houve rei Artur Grã pesar de que rei mais assi escapou”

c) “... e pois cavalgarom partirom-lhe dali mui ledos e com mui grã prazer de que escaparom tam bem.”

d) “Pero que trobam e sabem loar sas senhores o mais e o melhor que eles podem, são sabedor Ø que os que trobam quando a qual sazom a ...”

(5) a) “Essas coisas de que dicemos forão feytas por espaços de tempos, em vida Del Rey” (Livro de Linhagens, anônimo, p.05, século XII)

b) “Dicemos, olhando para a molher de seu Senhor, de que tantas mercas houveis recebida” (A arte de furtar, p.05, século XIII)

c) “Grandes senhores foram liados contra el Rey de que se muyto temiam” (Chronica de el Rey D. Affonso, Rui de Pina, p.03, século XIV)

d) “Estas coisas de que dicemos foram feytos por espaços de tempos, em vida Del Rey D. Affonso” (Chronica de D. Affonso Henrique, Duarte Galvão, p. 02, século XV)

99 Exemplos encontrados em Mollica (1995:38) 100 Exemplos tirados de Mollica (1995:18).

e) “mas o que digo entendo de que se isso o fazem” (Espelho de casados, século XVI)

f) “Não era assim com meu conhecido, tão discretamente confiado, que sempre apostava, a quem menos sabia, prezando-se de que ninguém melhor que elle ignorava, o que ignorava” (Apólogos Dialogaes, século XVII)

g) “Sem dúvida, que a saber de que falava de veras, perdera os meus sentidos e também apariência” (Anfitrião ou Júpiter e Alomena, século XVIII e XIX)

h) “Cumprindo disposições do Exm Presidente da República e do Monistério da Guera, General Campos tenho a satisfação de avisar a Vossa Ex que expeço pelo correio a guia e os detalhes do conteúdo de três caixas em que vos são enviados modelos das armas de que usa o exército argentino e destinados ao Museu Militar de Artilheria do glorioso exército Brazileiro” (Jornal “O Paiz” – 1900, século XX)

Verificando em que contextos o dequeísmo aparece no século XX, Mollica (1995: 44-46) menciona os seguintes:

1. No começo do século XX apareciam em locução (sic) (6a), em orações subordinadas adverbiais comparativas (6b), e os dequeísmos propriamente ditos (sic) (6c-e):

(6) Contextos dequeístas no começo do século XX

a) “Não se perdeu tempo em admirar a passagem. A imediata disposição da pequena força avançada para que tomassem as melhores vantagens militares era necessária ao exílio de toda operação. As tropas de apoio estavam ainda muito distantes e antes de que chegassem, já estava tomado e convenientemente defendido” (O Paiz, 11/03/1900)

b) “Pelas suas fecundas reações pátrias em bem da ordem e da prosperidade pública, que não se sinta credor d’ esses agradecimentos que tanto o penhorava, visto como moda mais fez de que procurar cumprir o seu dever...”

c) “A nenhum dos leitores deve ser estranho o nome de Lopes Cardoso, ou antes o de Victor Vieira, pseudonymo de que usa aquelle meu amigo, a creatura mais hábil que o céu cobre.”

(O Paiz, 18/04/1900)

d) “A companhia acaba de tomar uma resolução acertadíssima e de que demonstra o espírito conciliatório de que acha animado o digno gerente dessa importante empresa.” (O Paiz, 28/ 04/1900)

e) “Folgo de que o meu artigo seja o vehículo de tão justificado enthusiasmo.” (O Paiz, 19/

2. Nos anos 60 apareceram em orações subordinadas substantivas objetivas diretas (7a-c), em oração subordinada substantiva apositiva (7d), em orações relativas (7e), em locução conjuntiva (7f), e em situação de reorganização dos termos da estrutura por parte do falante (sic) (7g-h), como se pode verificar em (7):

(7) Contextos dequeístas nos anos 60

a) “... aqui na sua pauta está escrito no final de que há muito escrúpulo dessas mulheres em abandonar os filhos...”

b) “... todo mundo botou na cabeça de que a vocação do Rio de Janeiro e a vocação da oposição ...”

c) “ ... nós já avisamos de que o alho tem uma substância que é capaz de matar bactéria ...”

d) “... como é que você explica isso de que uma peça foi feita em 34 só agora a primeira apresentação dela...”

e) “ ... porque ela é que car ... carreira os anseios é ... da da ... da sociedade de que tem transtornos da da sexualidade ...”

f) “ ... o raps é uma tendência normal por causa de que ele vem com batidas seqüentes ...”

g) “ ... existe um fator com que você tem que contar, que alguns atribuem à palavra sorte, que eu não, não coloco bem por aí, mas a índole que essa pessoa vem ao mundo, e trabalha com a índole é ... um problema sério de que por mais que você dê os exemplos dificilmente ...”

h) “ ... Qual é o momento provável de que isso acontecerá? O momento provável de que isso acontecerá é quando as forças americanas ...”

Apesar desses resultados, Mollica afirma que o dequeísmo: (i) ocorre no português atual do Brasil, provavelmente em todo o território nacional, sendo raro na fala e mais raro ainda na escrita, e aparecendo somente em certos contextos e em alguns falantes; (ii) é bem documentado atualmente em vários países da América Espanhola, sendo que seu uso está em expansão; (iii) ocorre com freqüência muito baixa no espanhol europeu de Madri e se mostra em fraca expansão, mas é bem difundido no espanhol de Santiago; (iv) ocorre mais na classe média alta e rica, e menos nas classes baixas, valendo essa observação para toda a América, espanhola e portuguesa.

Sintetizando o pensamento da autora, vê-se que (i) no dequeísmo tem-se a preposição de acompanhando uma conjunção integrante que, formando o conjunto

de + que, enquanto que no queísmo há a ausência da preposição de diante da

conjunção que, sendo então, marcado com Ø + que; (ii) o dequeísmo é fruto de um cruzamento sintático entre estruturas semelhantes; (iii) é um processo inovador das línguas românicas ibéricas; (iv) é um fato encontrado desde o século XII-XIII

no português e no espanhol; (v) atinge os seguintes contextos no português brasileiro atual: orações substantivas completivas, orações subordinadas substantivas objetivas diretas e apositivas, orações relativas, subordinadas comparativas e algumas locuções prepositivas.

Dois pontos prenderam minha atenção nesse trabalho de Mollica. Um deles foi o modo como a autora procurou caracterizar os processos queísmo x dequeísmo, e o outro, seu resumo das idéias de Érica Garcia (1986) sobre o dequeísmo.

Mollica (1995:11) insiste em caracterizar o que é queísmo/dequeísmo e para isso lança mão de alguns argumentos não muito claros:

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