• Nenhum resultado encontrado

Sobre a expressão morfológica do O

No documento Para a história do português brasileiro (páginas 101-109)

A CARACTERIZAÇÃO DO OBJETO INDIRETO NO PORTUGUÊS: ASPECTOS SINCRÔNICOS E

3. Resultados de estudos quantitativos: PE vs PB

4.2 Sobre a expressão morfológica do O

Neste trabalho a nossa atenção se voltou ainda para a expressão anafórica dos argumentos dativos. O que se pôde observar é que o PB se distancia do PE, de forma marcante na língua falada, não só pelo uso preferencial da preposição para, como também pela ausência dos pronomes lhe/lhes em seu uso como 3a pessoa. Neste último caso, a inovação é substituí-los pelas formas preposicionadas a/para ele/s a/para ela/s, sem o redobro ou sem uma interpretação obrigatoriamente contrastiva.

No PE, porém, a expressão morfológica dos argumentos dativos é muito produtiva. O que queremos propor é que a manifestação morfológica dos argumentos dativos no PE não se restringe à forma cliticizada da 3a pessoa. Também o argumento dativo (DP) introduzido pela preposição a é outra estratégia morfológica disponível. Esta afirmação nos leva, então a tratar a frase introduzida por a como sintagma determinante (a-DP) e não como sintagma preposicional (PP). Assim, no PE, a preposição a teria um estatuto ambíguo: preposição plena e marcador de caso. No caso dos argumentos dativos, a preposição a não é uma verdadeira preposição, mas um marcador de caso dativo.

Essa afirmação pode ficar mais clara se retornarmos aos fatos da formação do português. Sabemos que os verbos que no latim clássico selecionavam um complemento morfologicamente dativo (loquor puero - falo ao menino), já no latim vulgar passam a expressá-lo pela forma ad + complemento acusativo. E embora, como vimos acima, a preposição ad tenha sido a escolhida para expressar a noção de direção em vários contextos verbais, vamos sustentar que, nos contextos dativos, sua evolução é diferente, ou seja, ela não é tratada como uma verdadeira preposição, mas um marcador de caso. Desta forma, entende-se por que os gramáticos têm divergido em suas descrições do objeto indireto. (cf. seção 2) As divergências descritivas revelam que a função está sendo entendida tanto num sentido estrito como num sentido amplo. No sentido estrito, que nós estamos entendendo como

aquele que se baseia também em critérios morfológicos, o OI refere-se ao conjunto dos argumentos plenos introduzidos exclusivamente pela preposição a e, neste caso, está em distribuição complementar com a forma cliticizada lhe/lhes. No sentido mais amplo, o termo pode se referir a uma gama de sintagmas introduzidos por preposição, inclusive a preposição a, e abrange um conjunto de verbos que não se restringe aos tradicionalmente denominados verbos ditransitivos (cf. Cunha & Cintra, 2001). Repare, porém, que o último critério implica que a possibilidade de co- ocorrência do argumento preposicionado com a forma cliticizada deverá ser desconsiderado obrigatoriamente, uma vez que os clíticos dativos não “substituem” os sintagmas preposicionados (PPs). Lembramos ainda que os pronomes dativos de 3a pessoa, ao contrário dos de 1a e 2a pessoas, resultam dos demonstrativos latinos e estabelecem uma distinção formal entre acusativo e dativo. Assim, o, a, os, as vs. lhe, lhes. “É esta a marca formal que ainda existe para distinguir com precisão objeto direto de objeto indireto, de um lado, e, de outro lado, objeto indireto e complemento de direção”. (Câmara Jr, 1975. p. 238, grifo nosso)

Com base no critério morfológico que identifica o OI, vamos propor que o PE apresenta dois tipos de construções que exibem as propriedades fundamentais do conhecido fenômeno da “alternância dativa”, já bastante estudado na literatura especializada para um conjunto de línguas. Na primeira, que denominamos construção ditransitiva preposicionada, o argumento de verbos como levar, dar, dizer, comprar, etc., introduzido por preposição, se apresenta como um PP, ou seja, é um argumento selecionado por uma verdadeira preposição, com conteúdo semântico, que proporciona o sentido direcional na expressão dos papéis temáticos meta/ recipiente e fonte.

A segunda, denominada construção de objeto duplo, é a construção dativa “verdadeira” no sentido em que o OI se apresenta como uma classe distinta morfologicamente, uma vez que está identificado por uma marcação especial de caso. O argumento dativo se apresenta na sua forma cliticizada (lhe/lhes) ou como um argumento pleno, (a-DP), em que a preposição a é uma marcador de caso dativo, incluindo ainda as formas a ele/s, a ela/s. Como dissemos, ao assumir a alternância dativa, estamos ao mesmo tempo afirmando que a preposição a tem um estatuto ambíguo no PE nos contextos ditransitivos. Assim, na construção ditransitiva preposicional, a é uma preposição plena que proporciona um sentido direcional, locativo. Neste caso, o OI é um PP. Na construção de objeto duplo, o OI não é um PP, mas um DP marcado morfologicamente como uma expressão

dativa. A interpretação temática do argumento dativo é obtida através da posição em que o mesmo é gerado.45

Vejamos como a alternância dativa se apresenta no PE na expressão dos papéis temáticos meta/recipiente (33a)e meta/fonte (33b): 46

(33) a. O José enviou uma carta à Maria / enviou-lhe uma carta vs. O José enviou uma carta para a Maria.

b. O José roubou o relógio ao Pedro/ roubou-lhe o relógio vs. O José roubou o relógio do Pedro/ O José roubou o relógio para o Pedro.

É importante registrar que os falantes cultos do PE reconhecem também diferenças sutis na interpretação da duas construções, embora os papéis temáticos possam ser os mesmos. Assim, com verbos do tipo de enviar, entregar, a construção ditransitiva com para só será possível se a carta não tiver sido entregue diretamente à Maria. Ou seja, se puder ser interpretada como: O José entregou ao João uma carta para a Maria/entregou -lhe (ao João) uma carta para que este a entregasse à Maria. Ao contrário, se enviou a carta à Maria, entregou-a diretamente. O mesmo se dá com verbos do tipo de roubar, tirar, furtar. No caso em que o argumento interpretado como fonte/origem do movimento é introduzido por a, entende- se que embora o relógio não tenha que estar necessariamente com o Pedro na hora do roubo, o Pedro é, de alguma forma, mais diretamente afetado pelo roubo. No segundo caso, não. Ou seja, no PE há uma distinção entre uma expressão dativa e uma expressão genitiva. Já com roubar para, o José roubou o relógio para o Pedro/ roubou-o para dá- lo ao Pedro ou porque o Pedro lhe pediu ou porque ele sabia que o Pedro o queria.47 A dicotomia no estatuto da preposição a como preposição direcional e marcador de caso dá conta também dos fatos do redobro obrigatório no PE, discutidos na seção 2. Enquanto o redobro é exigido com as expressões pronominais a ele/s, a ela/s nos contextos dativos (cf. exs. em 10), o mesmo não ocorre com as expressões pronominais selecionadas por diferentes tipos de predicadores (cf. exs. em 15). Portanto, aqui também o mesmo morfema a está presente em ambas as construções, embora com estatuto gramatical distinto.

45 Para um estudo do estatuto categorial das preposições, associado à dicotomia Caso estrutural vs. Caso inerente, cf. Chomsky (1981, 1986).

46 Em trabalho em andamento, Torres-Morais & Berlinck apresentam novos argumentos, de natureza sintática e morfológica, mostrando que as duas construções no português correspondem às duas estruturas da alternância dativa. As sentenças ditransitivas com argumentos clíticos ou com o redobro têm uma estrutura distinta das sentenças em que o OI é um complemento PP.

Como discutimos anteriormente, os processos que levam à substituição da preposição a pela preposição para no PB, em oposição ao PE, na expressão do objeto indireto, não ocorrem isoladamente, mas paralelamente à perda da estratégia de expressão morfológica dos complementos dativos, ou seja, do uso dos dativos anafóricos de 3a pessoa, lhe/lhes. Tais mudanças morfológicas se refletem ainda na perda do redobro do clítico na presença dos pronominais fortes. Nesta perspectiva, consideramos que o que ocorreu na história do PB foi a perda de uma propriedade que caracteriza a gramática do PE, a saber: os argumentos dativos formam uma classe distinta morfologicamente.

5. Conclusão

Como procuramos mostrar ao longo deste texto, não havia no latim clássico um complemento dativo preposicionado. A construção de objeto duplo, em que o argumento meta/fonte é introduzido pela preposição a aparece no português com a perda da flexão casual nos nomes. No entanto, a manifestação morfológica da função permanece, uma vez que, neste caso, a é um marcador de caso e não uma verdadeira preposição. Com isso, tem o mesmo estatuto morfológico dos pronominais clíticos de 3a pessoa. O estatuto da preposição a como marcador de dativo se reflete ainda no redobro obrigatório com os pronomes fortes. Estes fatos caracterizam a gramática do PE atual.

No PB, porém, se estivermos no caminho certo em nossa argumentação, após a perda das propriedades morfológicas do OI, esta é uma função preposicionada na presença dos verbos ditransitivos, ou seja, a deixa de ser uma preposição ambígua, ao mesmo tempo em que os clíticos dativos lhe/lhes se tornam praticamente ausentes na língua falada e escrita menos formal, para se referir à 3a pessoa. Com isso, desaparece na gramática do PB o fenômeno da “alternância dativa.” Este seria sido o primeiro momento da mudança. Num segundo momento, há uma tendência em se usar a preposição para com os argumentos meta/recipiente, e a preposição de com os argumentos fonte/origem. Resumindo: com a perda de certas características gramaticais que identificam o OI, este ganha o estatuto de complemento oblíquo, sendo expresso unicamente nas construções ditransitivas preposicionadas no PB.

6. Referências

BECHARA, E. (2000) Moderna gramática portuguesa. Edição Revista e Ampliada. Rio de Janeiro: Ed. Lucerna.

BERLINCK, R. de A. (1996) The Portuguese Dative. In: Van Belle, W. & Van Langendonck, W. The

Dative. Vol 1: Descriptive Studies. Amsterdam: John Benjamins, 1996. pp. 119-151.

BERLINCK, R. de A (1997). Sobre a realização do objeto indireto no português do Brasil. In:

II Encontro do CelSul (CÍRCULO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO SUL). Anais.

Florianópolis: UFSC.

BERLINCK, R. de A. (2000a) O objeto indireto no português brasileiro do século XIX. In: II

Congresso Nacional da e XIV Instituto Lingüístico, 1999. Anais. Florianópolis: UFSC. pp. 210-220.

BERLINCK, R. (2000b) Complementos preposicionados: variação e mudança no português brasileiro. Conferência proferida no Congresso Internacional “500 anos da Língua Portuguesa no Brasil”, 8 a 13 de maio de 2000. Universidade de Évora. Évora – Portugal.

BERLINCK, R. de A. (2001) Dativo ou Locativo? Sobre sentidos e formas do “dativo” no português. Curitiba. Revista Letras. n. 56, pp. 159-175.

CAMARA JR.(1975) História e estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão Livraria Editora Ltda.

CAMPOS, H (1999) Transitividad e intransitividad. In: BOSQUE, I. & DEMONTE, V. (dir.) (3 vol.) Gramática Descriptiva de la Lengua Española. Madrid. Espasa-CALPE.

CHOMSKY, N. (1981) Lectures on government and binding. Dordrecht: Foris. CHOMSKY, N. (1986) Knowledge of languages. New York: Praeger.

CYRINO, S.M.L. (2000) “O objeto indireto nulo no português brasileiro.” Signum. n. 3. Londrina: Ed. UEL.

CUNHA, Celso & CINTRA, L. (2001) Nova Gramática do Português Contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. Nova Froneteira. 3a edição revista.

DILLINGER, M. et alii (1996) “Padrões de complementação no português falado.” In: KATO, M. (org.) Gramática do português falado. Vol.V. Campinas. UNICAMP.

DUARTE, M. E. L. (2000) The loss of the avoid principle in Brazilian Portuguese. In: KATO, M. A. & NEGRÃO, E.V. (Orgs.) Brazilian Portuguese and the null subject parameter. Vervuert – Iberoamericana. DUARTE, M. I. (1987) A construção de topicalização na gramática do português: regência, ligação e condições

GALVES, C. & ABAURRE M. B. Os clíticos no português brasileiro: elementos para uma abordagem sintático-fonológica. In: CASTILHO, A. e BASÍLIO M. (Orgs). Gramática do Português Falado. Vol IV: Estudos Descritivos. Campinas, Editora da UNICAMP. p. 267-312. 2002.

GALVES, C. (1998) “A gramática do português brasileiro”. Línguas & Instrumentos Lingüísticos. n.1, p. 79-93.

GALVES, C. (2001) Ensaios sobre as gramáticas do português. Campinas: Editora da Unicamp. GUEDES, M. & BERLINCK, R. de A. Variação em complementos preposicionados no português paulista do século XIX. Estudos Lingüísticos 32. Documento C198.htm, 2003. Publicação do

Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo.

GOMES, Christina Abreu. (2003) Embedded processes in dative alternation: a comparative study about three contemporary varieties of Portuguese. NWAV(E) 28, Toronto, Canadá, mimeo. HERNANZ, M. L. & BRUCART, J.M (1991) La Sintaxis. Barcelona. Editorial Crítica.

SALLES, H. M. L. & SCHERRE, M. M. P. (2003) Indirect objects in ditransitive constructions in Brazilian Portuguese. In: Núñez-Cedeño, Rafael; LÓPEZ, Luis; CAMERON, Richard. (Orgs.). A

Romance Perspective on Language Knowledge and Use - Current Issues in Linguistic Theory. Amsterdam/

Philadelphia: John Benjamins. p. 151-165.

SILVEIRA, G. (1999) “A realização variável do objeto indireto (dativo) na fala de Florianópolis. Trabalho apresentado para exame de qualificação em Sociolingüística, curso de Doutorado em Letras/ Lingüística, Universidade Federal de Santa Catarina.

ILARI, R. et alii. (1996) “Os pronomes pessoais do português falado: roteiro para análise. In: CASTILHO, Ataliba de & BASÍLIO, Margarida (orgs.) Gramática do português falado. Vol. IV: Estudos

Descritivos. p. 79-168.

JAEGGLI, O. (1982) Topics in Romance Syntax. Studies in Generative Grammar 12.

KATO, M. A. (1999) Strong pronouns, weak pronominals and the null subject parameter, Probus. 11 (1), p. 1-37.

KROCH, A. (1994) “Morphosyntactic variation.” University oh Pennsylvania. ms.

MATEUS, M.H. M. et alii ( 1983) Gramática da Língua Portuguesa. Coimbra: Livraria Almedina. MATEUS, M.H. M. et alii (2003) Gramática da língua portuguesa. Lisboa: Caminho.

MONTEIRO, J.L.(1994) Pronomes Pessoais. Subsídios para uma gramática do português do Brasil. Fortaleza: EUFC.

ORDOÑEZ, S. G. (1999) Los Dativos In: BOSQUE, I. & DEMONTE, V. (dir.) Gramática Descritpiva

PEDROSO, C. (2001) Contos Populares Portugueses. São Paulo: Ed. Landy.

PERES, J. A. & MÓIA, T. (1995) Áreas críticas da língua portuguesa. Lisboa: Caminho.

RAMOS, C. (1999) O clítico de terceira pessoa:um estudo comparativo português brasileiro/ espanhol. Universidade Federal de Alagoas. Dissertação de Doutorado.

RAPOSO, E. (1998) Some observations on the pronominal system of portuguese. Catalan Working

Papers in Linguistics, 6, p. 59-93.

SARAMAGO, J. (1982) Memorial do Convento. Lisboa: Caminho.

TORRES-MORAIS, M. A. (2002) Rastreando aspectos gramaticais e sociohistóricos do português brasileiro em anúncios de jornais do século XIX. IN: ALKMIM, T. M.(org.) Para a história do

português brasileiro: Primeiros Estudos. Vol. III. São Paulo: Humanitas. pp. 69-126.

TORRES-MORAIS & BERLINCK, R. de A. (2002) Caracterização do objeto indireto no português. Trabalho apresentado no V encontro do PHPB. Outro Preto. MG.

A EVOLUÇÃO DO SE REFLEXIVO EM PORTUGUÊS

No documento Para a história do português brasileiro (páginas 101-109)