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Aspectos filosóficos da conceituação da tecnologia

Pinto (2005) dedica um capítulo inteiro ao assunto que é título dos dois volumes do seu livro: “O conceito de tecnologia”. Segundo ele, a acepção do termo vem da ideologização da técnica. Então, a técnica tem a qualidade de ato produtivo e a tecnologia é concebida como epistemologia da técnica (PINTO, 2005).

O autor embasa a sua discussão no materialismo histórico dialético, e, dessa forma, percebe que as condições históricas da produção em cada época são, ao mesmo tempo, as propulsoras de criações e desenvolvimentos técnicos da humanidade, e o resultado das produções até aquele momento. Atualmente, tamanho o avanço das técnicas, obras de outros homens permeiam o mundo: “Ora, os suportes, no mundo de hoje, são o sedimento de técnicas e objetos artificiais que recobrem a superfície da realidade física e social com que o homem tem contato” (PINTO, 2005, p. 224).

Assim, ao procurar compreender e refletir sobre o mundo que os cerca, os indivíduos se deparam com inúmeros objetos artificiais, “filhos da técnica”. E é com base neles que serão criadas novas técnicas, originadas do conflito da sociedade em que se vive, numa determinada época histórica. Nesse sentido, “[…] a tecnologia do presente, anuncia e determina a tecnologia futura, que será então a verdadeiramente ‘explosiva’ para quem a presenciar” (PINTO, 2005, p. 234).

Existem também alguns equívocos detectados por Pinto (2005), que, ao descrever o conceito de tecnologia e técnica, diz que apenas a técnica pode ser capaz de sanar as desgraças que gera. Ao acreditar nesse equívoco, torna o homem objeto da técnica, o que deixa a técnica quase com vida própria. Esse conceito, conforme aqui se concebe, é, na verdade, contrário: o homem concebe e ideologiza a técnica. Assim, faz tecnologia.

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Outro equívoco vem da concepção naturalista de avanço das técnicas. Quase que num determinado momento ocorre uma “explosão tecnológica”, desconsiderando-se todas as características e tensões do processo histórico e social de evolução dos modos de produção.

Toda época teve as técnicas que podia ter. […] É difícil imaginar-se mais profunda impressão do que a causada nos contemporâneos pela “explosão tecnológica” da era das descobertas marítimas, do surgimento da imprensa, das novas teorias astronômicas subvertendo o significado do céu (PINTO, 2005, p. 234).

Ainda um terceiro equívoco está relacionado ao caráter cultural da técnica, depositando todo o prestígio da nova técnica somente na figura daquele que a inventou, sem considerar as exigências e interesses da sociedade, os conhecimentos acumulados e suas bases materiais – sua cultura.

O pensamento inventivo encontrará explicação quando a ciência tiver conseguido avançar suficientemente na pesquisa dos processos fisiológicos cerebrais, a ponto de manejar com segurança os dados da bioquímica das funções celulares corticais e dominar o problema da transmissão das informações nas complexas redes neurônicas (PINTO, 2005, p. 238).

O homem, pelo fato de ter razão, é o único ser que sente a insuficiência de um procedimento e a necessidade de substituí-lo. Adquire consciência do mundo existente e suas imperfeições, dando espaço para a descoberta de novos objetos, métodos e técnicas, propondo resoluções para as contradições da existência humana. “A compreensão da tecnologia só pode ser verídica quando se funda sobre a noção da historicidade constitutiva do homem, e consequentemente do trabalho” (PINTO, 2005, p. 243). Assim, o aspecto da historicidade é imanente ao desenvolvimento tecnológico. Conclui Pinto (2005, p. 284-285):

[...] nenhuma tecnologia antecipa-se à sua época, ou a ultrapassa, mas nasce e declina com ela, porque exprime e satisfaz as carências que a sociedade sentia em determinada fase de existência. Claro está que o descoberto em uma fase será a fonte das exigências da fase seguinte.

Além da especificidade da razão, o homem também vive em sociedade com outros homens, permeados pelas condições materiais de seus trabalhos, embebidos pela cultura, num dado período. Segundo Walon (1981), essa é uma característica do ser humano: ele é geneticamente social. Nesse sentido, o processo de hominização em sociedade guarda relações íntimas com a técnica e o avanço da tecnologia. Para Pinto (2005, p. 239):

A técnica define uma expressão do processo de hominização e por isso nele se acha incluída, até o estágio atual. A técnica futura exprimirá o estado de aperfeiçoamento da essência humana que o homem terá adquirido com o correr do tempo.

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Por isso, diferentes autores, na literatura atual, discutem as mudanças na sociedade e nas relações entre homens ocorridas pelo avanço das tecnologias (ALMEIDA, 2005; ALMEIDA; SILVA, 2011).

Pinto (2005) localiza o ponto dessa relação entre a técnica e o processo de hominização, que é o ato do pensamento, sendo este a matriz no funcionamento da mente. “Pensar o mundo constitui a técnica primordial. [...] Toda ação humana tem caráter técnico pela simples razão de ser humana” (PINTO, 2005, p. 239). Daí decorre também a característica ideológica da tecnologia: a epistemologia da técnica.

Vale observar que existe uma dimensão individual do ser humano na produção das técnicas, quando Pinto (2005, p. 240) relata que “toda ação técnica, dentro de um estilo aproximadamente comum, manifesta caracteres pessoais exclusivos, intransferíveis [...]. A ação técnica tende a tomar características únicas e irrepetíveis no desempenho individual”, sendo observadas na idiossincrasia de cada ser humano, que possui atributos próprios marcados pelas possibilidades de sua carga genética – biológica – e pelas interações com o meio social, que vêm a constituir a sua personalidade em determinada época da história.

Assim, o mesmo plano de aula, com os mesmos conhecimentos a serem trabalhados para um mesmo grupo de alunos, será mediado de forma diferente por dois professores distintos, e a aula ocorrerá de forma distinta em cada grupo-classe, exigindo posturas diferentes do docente. Não são os desejos individuais que movimentam a história da humanidade e suas descobertas, mas as contradições da sociedade. Dessa forma, “[...] mesmo as ações de relacionamento mais comuns e repetidas são invenções e se revestem do traço existencial, típico da operação técnica, de solucionar uma contradição com a realidade” (PINTO, 2005, p. 240). Sendo assim, quanto mais o docente planeja e medeia suas aulas, maior será o repertório para que crie e ouse situações de aprendizagem com a invenção de técnicas.

A essência da tecnologia está na mediação entre o homem e o meio, para resolver contradições. Ela é representada pelo conjunto das técnicas de que dispõe uma dada sociedade. “É a sociedade que, graças à cultura acumulada, inventa, na pessoa de seus sábios, as técnicas possíveis a cada momento e as aplica” (PINTO, 2005, p. 285). Portanto, é a capacidade criadora do homem, em dada sociedade e em certo momento histórico, que garantirá o avanço constante da técnica.

Pinto (2005, p. 246, 266 e 269, grifo nosso) enfatiza o conceito de tecnologia como patrimônio da humanidade:

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Se soubermos abstrair dos resultados visíveis, materializados nas máquinas ou nas regras de confecção, o verdadeiro ato humano nelas executado, ou por meio delas, compreenderemos o conceito de técnica, no plano superior. Estaremos fazendo, sob o nome de tecnologia, o estudo do processo de criação do homem pela práxis da realização existencial material de si, em função de seus condicionamentos sociais. [...] torna-se necessário mostrar que a tecnologia, ao contrário da insinuação paralisadora, corresponde a um patrimônio da humanidade. [...] Sendo a técnica a forma da ação produtiva humana, racionalizada em virtude de obedecer ao conhecimento das propriedades dos corpos e das forças naturais, [...] o conceito da técnica mostra que deve ser, por necessidade, patrimônio da espécie. Sua função consiste em ligar os homens na realização das ações construtivas comuns. Constitui um bem humano que, por definição, não conhece barreiras ou direitos de propriedade, porque o único proprietário dele é a humanidade inteira.

Entretanto, cumpre ressaltar que questões de cunho econômico e político revestem esse conceito de outras perspectivas, como no caso de obter o máximo rendimento financeiro quase a qualquer custo, bem como da imposição de um fosso digital entre países desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento. A luta pela posse exclusiva de um bem comum é a marca de quase todas as fases da humanidade. E é dessa posse que este trabalho trata: como tornar universal o que tem sido objeto de disputa de grupos. A educação escolar entra nessa zona de conflito.

Segundo Pinto (2005), países desenvolvidos tendem a possuir as tecnologias mais avançadas e as exportam criando uma dependência para os países em desenvolvimento. Assim, cria-se uma sobrevida ou “mais vida” aos equipamentos obsoletos. Nesses casos, é exportado somente o já sabido, o já usado, aquele procedimento que não oferece mais lucro, isso porque técnicas superadas encontram lugar nos países dependentes daqueles desenvolvidos. Uma parcela da população é treinada para que possa consumir as tecnologias superiores importadas.

Contudo, “o produto consumido transporta consigo a totalidade dos elementos da realidade social que o produziu, inclusive a ciência e a maquinaria utilizada para gerá-lo” (PINTO, 2005, p. 274). Sob a ameaça de exportar a maneira como reparar e criar determinado produto, o exportador instala-se no país com uma máscara de produtor nacional – no caso de assistência em reparos. É possível observar, como um caso desses, que, no mercado de lousas eletrônicas no Brasil, existem diversas revendedoras de marcas estrangeiras originais da China, Coreia, Canadá e Estados Unidos que invadem o mercado nacional.

A posse dos maquinários fabris ou foi negada a esses países em desenvolvimento ou foi fornecida em doses racionadas, “devidamente empacotados num envoltório ideológico”

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(PINTO, 2005, p. 268), dificultando com que se enxergue a situação real em que vivem essas nações, e mantendo o controle de seu desenvolvimento. Assim, “um cria e pode exportar, o outro não cria e tem de importar” (PINTO, 2005, p. 287). O país forte inventa a tecnologia e aqueles dependentes contentam-se em apropriar-se dela. Procurar a consciência de si e suas necessidades específicas é um desafio no âmbito das políticas públicas para esses países.

No entanto, mesmo os países em desenvolvimento têm as técnicas possíveis para aquele período e aquela sociedade possuidora daqueles conhecimentos acumulados. Esses países em desenvolvimento precisam realizar uma política de apropriação de suas forças criadoras, apropriação para si das riquezas naturais, e enfrentar a diferença existente historicamente. Nas palavras de Pinto (2005, p. 267), “[...] nenhuma sociedade de seres suficientemente hominizados poderia existir sem técnicas correspondentes ao estado de crescimento de suas forças produtivas”.

Portanto, a questão do uso de tecnologias integrado ao currículo na escola está no campo de uma luta política para proporcionar o acesso a elas pela sociedade como um todo, não ficando restritas a minorias. É papel do docente mobilizar, intencionalmente, ações na direção da democratização do acesso as tecnologias por todos. E essa intenção pode estar explícita nos planos de aula elaborados pelos docentes.