• Nenhum resultado encontrado

4.1 PODIA SER DINAURA, OU INVENÇÃO DO MEU OLHAR

4.1.1 Um ataque de alvo duplo

Considere-se a seguinte citação de Benjamin (1987a, p.198), no ensaio “O narrador - Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”:

Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.

sobreviventes voltaram em silêncio, não havia forma de comunicar em sua inteireza a guerra de trincheiras e o uso de armas químicas. Essa tese da incomunicabilidade se presta a muitas interpretações, desde aquelas que a acolhem até as que a refutam. De qualquer modo, as ideias de Benjamin ainda estão por aí, ressoando como nunca. Para além da crise na transmissão da experiência, há o evento em si, o fato da guerra. Trata-se de um momento de ruptura, o mundo ocidental é um antes e outro depois. Uma geração acostumada à velocidade da tração animal se deparou com o avião atacando pelo céu e com o gás mostarda se alastrando pelo ar. A expectativa de uma tecnologia libertadora se transformou em uma realidade mortífera. Imagens de homens e cavalos portando máscaras contra ataques químicos revelam a coexistência de dois tempos tecnológicos e culturais, uma união que seria completamente desfeita quarenta anos depois. O homem que tinha domínio sobre o animal foi submetido aos avanços da própria técnica. Benjamin não experimentou a Segunda Guerra em sua totalidade, mas foi um dos seus melhores intérpretes e um dos seus maiores anunciadores. E, claro, uma das suas vítimas.

Essas guerras não são, evidentemente, os únicos eventos traumáticos dos últimos cem anos, o século XX e já o XXI estão repletos deles. Apesar disso, elas ingressam com força na filosofia benjaminiana, como dois cortes na continuidade da experiência humana, por conta dos quais se dão a ver profundas mudanças históricas, sociais e até mesmo estéticas. Nada será como antes, nem mesmo a Literatura. O método se estende e pode ser utilizado para outros tantos exemplos. Por ora, vale o caminho trilhado por Benjamin. Que homem é esse que emerge das trincheiras e das cortinas de fumaça? Que homem é esse que sobrevive aos campos de concentração? A arte ainda é capaz de representá-lo? Segundo o excerto apresentado acima, e mesmo a totalidade do ensaio a que ele pertence, faz concluir que não, a arte, em especial a arte narrativa, é constrangida em sua forma. A imagem do narrador tradicional, de carne e osso, se desfaz pela ascensão do romance, gênero marcado pela solidão de seus interlocutores, o romancista e seu leitor estão separados para sempre. Após as experiências da guerra, o próprio narrador do romance é questionado em seus fundamentos mais essenciais. Já não é mais possível a ilusão de apreender a realidade, “o frágil e minúsculo corpo humano” está acuado diante de um acelerado ritmo de mudanças. Narrar pressupõe entender o mundo, mas como fazê-lo, se o mundo se fecha em sua estranheza?

O mundo se torna estranho ao homem, e os homens se tornam estranhos entre si. Conforme Theodor Adorno (2003, p.56), “contar algo significa ter algo especial a dizer”. Mas o que é especial em um mundo acinzentado pela mesmidade e com homens que não se encontram, separados em gerações que não conversam? Soando como Benjamin, Adorno (2003, p.56) também situa a guerra como um ponto de ruptura, "o que se desintegrou foi a

identidade da experiência, a vida articulada e em si mesma contínua, que só a postura do narrador permite". Depois de Auschwitz e de Hiroshima, é ingênuo o narrador que pensa dominar a experiência diante do horror da guerra e do processo social fechado e intransponível. Uma narração que pretende encontrar sentido no mundo pode esbarrar na impaciência e no ceticismo. Em tudo isso, o narrador é posto contra a parede. A sua postura de objetividade, o intento de contar o que de fato aconteceu é submetido à mais profunda relativização. O narrador do romance oitocentista é atacado em sua força, em sua autoridade e, sobretudo, em sua palavra final. O seu aparente conhecimento de tudo e de todos, como se carregasse o leitor para junto da cena, torna-se impotente ao se deparar com uma realidade que é fragmentária e catastrófica. O mundo é escorregadio, o cinema e o jornalismo confiscam boa parte da tarefa, e a narração, por isso mesmo, passa a ser um terreno de incertezas.

O romance moderno, Proust, Kafka, Thomas Mann, Joyce, é um ataque de alvo duplo: a mentira da representação e, especialmente, o próprio narrador. Esses autores se afastam da técnica ilusória de representar toda a trajetória de um indivíduo, seguindo cada uma de suas etapas e situações, graças a uma perspectiva afastada, que não se mostra, como se fosse uma presença ubíqua. Nesse ponto, a experiência do século XX é implacável, a contemplação é marcada pela impossibilidade, "porque a permanente ameaça da catástrofe não permite mais a observação imparcial, e nem mesmo a imitação estética dessa situação" (ADORNO, 2003, p.61). O narrador se aproxima, a sua distância com o leitor se encurta e, mais, ela varia como uma câmera de cinema. Por cima e por baixo, pelos lados, por dentro e por fora, a distância estética ganha movimento. O narrador desce de seu pedestal e participa dos desamparos desse mundo à mercê da destruição. Em seu gesto, ele atravessa a fachada das relações coisificadas e se entrega à difícil tarefa de captar a essência humana. Todo esse processo de encurtamento da distância estética aproxima o narrador a tal ponto da matéria narrada que ele mesmo se torna inseguro e passa a desconfiar do próprio conhecimento. O saber sobre as personagens é apenas impressão, a certeza sobre o mundo é colocada em dúvida, enfim, a imagem de um narrador dono de si e de todas as situações a sua volta é substituída pela imagem de um narrador encurralado pelo próprio trabalho da narração. O narrador não confia em si, tampouco no que narra, o narrador vira um problema para o leitor.