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No ensaio “A dois passos do deserto: visões urbanas de Euclides na Amazônia”, Milton Hatoum (2000) se dedica a comentar as correspondências de Euclides da Cunha, a fim de mostrar o seu desejo de evasão e a sua atração pela aventura e pelo risco. Ao longo dessas cartas, Euclides realiza diversos apontamentos sobre Belém e Manaus, em sua passagem por essas cidades. É interessante o gesto de Hatoum nesse texto, porque sua leitura aproxima dois observadores de Manaus que estão há um século de distância um do outro. Nesse encontro, alguns valores se combinam e se fortalecem, ao passo que outros, evidentemente, se rechaçam de tal modo que revelam no pensamento de Hatoum um avanço considerável às ideias defendidas por Euclides no início do século XX. Nesse sentido, o ensaísta anota que, no fundamento dessas cartas, há um ideal de pureza da raça, pois Euclides revela uma completa descrença com os mestiços e os indígenas. Segundo Hatoum (2000, p.187), “a descrença na incapacidade do mestiço e na do indígena - ‘a raça inferior, o selvagem bronco’ - influiu na visão urbana de Euclides sobre as cidades da Amazônia”. Após demorar apenas algumas horas em Belém, o autor de Os Sertões vai embora com uma impressão muito positiva, especialmente porque a cidade se apresenta como uma réplica de Paris, e a sua população se comporta como cavalheiros generosos, aos moldes dos hábitos europeus. Assim, a visão é idealizada, e a qualidade de Belém e seus moradores vale pela semelhança com a sociedade europeia:

Euclides viu Belém como quem vê de longe uma paisagem e se extasia. Não sentiu a pulsação da vida belenense, não caminhou pela Doca do Reduto e o Porto do Sal, não pôde observar detidamente o movimento do mercado Ver-o-Peso, onde as en-tranhas da cidade portuária se revelam. Passou ao largo desses lugares que mostram a complexidade da cidade e sua rede de relações com o interior da Amazônia. Ele viu a grandeza de Belém sob a perspectiva de amplas alamedas alinhadas por casarões e palacetes. Viu, enfim, a Belém do fausto da economia extrativista: visão impressionan-te que encerrava traços de uma promessa modernizadora ainda atual (HATOUM, 2000, p.187).

Nesse ponto, os dois autores começam a se diferenciar bastante. Ora, Hatoum demonstra um conhecimento sobre Belém que nem de perto Euclides foi capaz de obter. Isso é fundamental, porque o primeiro, não só nesse ensaio, mas sobretudo em seus romances, seguirá bem adiante dos estereótipos e será capaz de uma representação mais adequada dos limites e das contradições dessas grandes cidades da Amazônia, especialmente de Manaus. Euclides é movido, pela belle époque do seu tempo e por seu espírito positivista, a considerar o que é belo e superior tudo aquilo que remete a Paris, por isso a sua instantânea devoção a Belém. As coisas mudam quando ele chega a Manaus, onde ele permanece por três meses. Nessa cidade, também havia o empenho de se parecer parisiense, mas a permanência forçada, durante um tempo cada vez mais prolongado, deu a Euclides uma perspectiva mais realista e, portanto, mais intensa da vida manauara. Nos termos de Hatoum (2000), a desordem de Manaus exige que esse sujeito se reposicione diante das novas referências, as quais cindem o credo naturalista e o código positivista intrincados na linguagem e na visão de mundo de Euclides. Diante da Paris dos Trópicos, o viajante registra a vida urbana segundo uma mistura de fascínio e aversão a essa alteridade assombrosa:

Quanta coisa a dizer! - o desapontamento que me causou o Amazonas, menos que o Amazonas que eu trazia na imaginação; a estranha tristeza que nos causa esta terra amplíssima, maravilhosa e chata, sem um relevo onde o olhar descanse; e, principalmente, o tumulto, a desordem indescritível, a grande vida à gandaia dos que a habitam... Estou numa verdadeira sobrecarga de impressões todas novas, todas vivíssimas e empolgantes. Preciso de uma situação de equilíbrio para o espírito (HATOUM, 2000, p.188).19

A partir dessa leitura da correspondência de Euclides, Hatoum vai esboçando, por um efeito negativo, o contorno da sua própria escrita. Sobre o viajante dos primórdios do século XX, o ensaísta afirma se tratar de um “comentador contumaz de uma região brasileira que ele sabia periférica e desconhecida por seus conterrâneos. Daí o desejo, o empenho de ver o país por outros prismas, mesmo se essa visão às vezes é refratária ou míope” (HATOUM, 2000, p.189). Muitas décadas depois, a obra de Milton Hatoum lança outro prisma para essa região, desta vez menos míope, marcada por aquilo que, em outro ensaio, o autor denomina “adesão afetiva”. Essa diferença de perspectivas se revela especialmente na forma dos narradores de Hatoum, os quais apresentam valores em boa medida diversos aos apresentados pelas cartas de

Euclides. Se este desconfia da capacidade dos mestiços e dos indígenas, os narradores de Hatoum são justamente sujeitos cuja origem tem a ver com os caboclos e os índios da Amazônia. Já se ele desbrava discursivamente as cidades de Belém e Manaus de fora, a uma distância repleta de idealizações, assombros e preconceitos, esses narradores estão dentro de Manaus, eles ajustam o olhar na medida que a cidade convém. Sendo assim, embora a obra de Euclides da Cunha, incluindo Os Sertões e o ensaio “À margem da História”, tenha um poderoso valor investigativo do Brasil profundo, no ponto em debate neste capítulo, ela se presta como contraponto aos narradores construídos para a forma romanesca de Milton Hatoum. Em Relato de um certo Oriente, apesar dos vinte anos de ausência, a narradora não entrega ao relato final um sabor exótico ou demasiado crítico à cidade da infância. Ela se assusta com as mudanças, mostra-se confusa em alguns momentos, mas não impõe a sua experiência recente em tom de superioridade à vida na província. Para todos os efeitos, essa mulher sem nome ainda é uma manauara, por isso, a sua perspectiva não chega a ter a distância de um olhar sulista. Em Dois Irmãos e Cinzas do Norte, trata-se de narradores cujas vidas se desenvolveram em Manaus. Não por acaso, eles conhecem a cidade como a palma da mão. Nesses romances, justamente em virtude dessa forma narrativa semelhante, não há assombros, nem surpresas, há tão somente uma cidade que se ergue em seus detalhes do passado e do presente, em uma contraposição constante entre a fisionomia anterior ao desembarque dos militares e a que se desenvolveu posteriormente aos seus projetos de industrialização e de urbanização. Dos quatro narradores dessa série de romances, Nael e Lavo são os que sentem em medida mais aguda o que Hatoum (2011) formulou como a destruição da cidade. Já em Órfãos do Eldorado, a despeito das incertezas em relação à sanidade de Arminto Cordovil, trata-se de um narrador que é capaz de apresentar a Manaus do início do século em seu movimento singular de fantasia e realidade. Nesse sentido, essa última narração se aproxima do que Euclides da Cunha, descontadas as suas idealizações de cunho positivistas, conseguiu captar da Paris dos Trópicos:

A “Meca tumultuária dos seringueiros” e os “restos das tangas esfiapadas dos tapuias” dizem muito sobre a transformação social de uma cidade onde ainda mo-ravam muitas famílias indígenas (inclusive tapuias) e onde também milhares de nor-destinos dormiam em acampamentos, à espera de um barco que os transportasse aos seringais da Amazônia. A opulência da “cidade estritamente comercial” e “excessiva­mente cosmopolita” com seus “aviadores solertes, zangões vertiginosos e ingleses de sapatos brancos” não dissimulava as contradições sociais. Daí “as roupagens civilizadoras” dessa grande vitrine da modernidade, a que Euclides contrapõe “o seringueiro achamboado” e a “maloca transformada em Gand” (HATOUM, 2000, p.191-192).

Não sem motivo, a voz de Arminto é a que mais se aproxima do desconforto de Euclides. A desordem de Manaus mexe com o seu horizonte de retidão urbana e civilizatória. Belém é uma cidade planejada, com uma estrutura mínima para os anos do rubber boom, por isso a perspectiva desse viajante é empolgada e até mesmo otimista: nos termos de Hatoum (2000, p.192), “Belém era miragem ou utopia sonhada”. Já a outra capital da Amazônia é o resultado da aventura, fonte de tensão para Euclides da Cunha, que se vê obrigado a três meses de espera e angústia para continuar a viagem até o Acre. Durante esse período, ele é acometido por “uma momentânea inquietação interior” (HATOUM, 2000, p.192), cuja origem é o tédio e o estranhamento com uma cidade que não pode ser apreendida conforme os seus valores herdados das certezas e das verdades científicas. Assim como Arminto, que se desestrutura diante das imagens fugidias de Dinaura, o desbravamento discursivo do “escritor-engenheiro” (HATOUM, 2000, p.194) esbarra diante de um impasse, o surgimento de uma grande cidade “que contraria seu ideal positivista, em que o progresso, associado à ordem, ‘exigia dos mais esclarecidos, dos luminares, no topo da sociedade, assistência aos desvalidos e higiene para melhorar a saúde e evitar as epidemias’ (HATOUM, 2000, p.192). No lugar disso, índios e migrantes nordestinos esmolam nos arredores do porto, levas de trabalhadores aguardam pelas ruas transporte para os seringais do interior, enquanto o centro da cidade, com seus cafés e suas butiques parisienses, se veste de “roupagens civilizadoras”20.