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3.2 O REI DA BÉLGICA

3.2.1 Um jipe fumegante

No livro das Passagens, Benjamin (2009, p.503) defende um materialismo histórico que tenha superado os conceitos de “progresso” e de “época de decadência”. A sua desconfiança com as promessas de futuro não é menor que a sua ressalva aos lamentos pelo passado. Por isso, como uma síntese de seu pensamento, Benjamin (2009, p.500) define: "O páthos deste trabalho: não há épocas de decadência" (grifo do original). Nesse sentido, o sentimento da decadência ganha contornos de classe e evidencia a perda de privilégios ou de posição relativa na sociedade. Os bons e velhos tempos rejeitam a realidade em seus meandros, em um gesto afeito aos impulsos da celebração. Ao defender o desenho da sua crítica materialista, Benjamin

(2009) assume o ponto de vista dos perdedores do processo histórico, dos sujeitos para quem a “época de decadência” tem um valor de continuidade, e jamais de exceção ou novidade. Assim, justifica-se refutar esse conceito, pois ele congrega em si uma lamúria que não é própria das classes oprimidas pela escravidão, pela pobreza ou por abusos de toda sorte.

A irritação de Zana com seu carro dá indícios desse contorno de classe. Yaqub foi forçado a viver cinco anos no Líbano. No retorno, o seu pai o esperava no porto do Rio de Janeiro. Mais uma escala, um bimotor até Manaus. No aeroporto, Zana desceu do seu Land Rover verde, entrou na sala de desembarque, subornou um funcionário e teve acesso à pista de pouso. O filho pastor, um ra’í, foi recebido pela mãe efusiva e escandalosa. Nesse breve resumo, há de se observar o carro da matriarca: um jipe imponente passeia pelas ruas da cidade e leva o filho de volta para casa. Manaus viveu dias difíceis durante a Segunda Guerra, apesar disso, Zana não deixou de dirigir o seu jipe, não deixou de dar ordens em casa, tampouco deixou de exercer sua influência na rua – algum dinheirinho e ela pôde receber o filho direto no avião. Voltando do aeroporto, o Land Rover cruza altivo os lugares da infância de Yaqub, a memória se acende, e as lembranças com o irmão vêm à tona. Muitos anos depois, já na década de 60, o jipe continua nas mãos de Zana:

Noites de blecaute no norte, enquanto a nova capital do país estava sendo inaugurada. A euforia, que vinha de um Brasil tão distante, chegava a Manaus como um sopro amornado. E o futuro, ou a ideia de um futuro promissor, dissolvia-se no mormaço amazônico. Estávamos longe da era industrial e mais longe ainda do nosso passado grandioso. Zana, que na juventude aproveitara os resquícios desse passado, agora se irritava com a geladeira a querosene, com o fogareiro, com o jipe mais velho de Manaus, que circulava aos sacolejos e fumegava (HATOUM, 2006a, p.96).

O Land Rover cruzou firme duas décadas, mas já demonstra sinais de fraqueza e cria certo embaraço. Na década de 1940, o jipe rompia os portões de um aeroporto. Na década de 1960, está velho, sacoleja, vai tossindo a fumaça de todos os seus anos. O Land Rover de Zana é um sinal de decadência. Trata-se de uma queda, um flerte com o abismo. Mas da perspectiva de quem? Sob qual ponto de vista um jipe se arrastando carrega tanta desgraça? Para quem assiste ao mundo de um quartinho dos fundos, um carro velho é apenas mais um dos tantos problemas a resolver. A narração de Nael constata as dificuldades de Zana e de toda a família, porém não sofre por isso. Um passo além do sobrado, uma volta por Manaus, e a miséria se revela uma constante. Desde quando o jipe impunha respeito e causava inveja, a Cidade Flutuante, os Educandos, as beiras de igarapés, essa enorme porção de Manaus crescia no ritmo do improviso e da necessidade. Na verdade, muito antes disso, desde quando a Paris dos

Trópicos parecia cortejada para sempre pelo rubber boom.

Estelita Reinoso, vizinha dos libaneses, se lamenta, sente falta desses anos do ouro branco. Nael despreza Estelita, rica, mas pão-dura. Ela pertence a uma linhagem, se posiciona em um lugar diferente na vizinhança, "o avô dela, um dos magnatas do Amazonas, aparecera na capa de uma revista norte-americana que a neta mostrava para todo mundo" (HATOUM, 2006a, p.62). Não à toa, portanto, o seu álbum de fotos lança a sua memória para um tempo em que Manaus esticava os dedos e quase alcançava a Europa: “Mostrava também as fotografias das embarcações da firma, que haviam navegado pelos rios da Amazônia vendendo de tudo aos ribeirinhos e donos de seringais. Numa roda de pessoas desconhecidas, ela começava a conversa dizendo: ‘O rei da Bélgica se hospedou em casa e passeou no iate do meu avô’” (HATOUM, 2006a, p.62).

O álbum de Estelita celebra o passado, os bons tempos da borracha, a infinita riqueza do fausto. Se as fotos ganhassem movimento, entretanto, se elas pudessem mostrar as embarcações da antiga firma, não seriam vistos tão somente os seringais e seus donos, mas também os seringueiros, os trabalhadores da extração do látex. E são justamente os ex- seringueiros do interior, fugidos da penúria que se assolou com o término do boom gomífero, quem constroem as primeiras palafitas da Cidade Flutuante, quem erguem as primeiras casas do bairro dos Educandos, quem buscam, enfim, a sobrevivência no que restou da Paris dos Trópicos. Desse modo, a compreensão de que se trata de um passado em decadência assume um evidente posicionamento de classe, pois, enquanto Estelita se engrandece com o seu álbum de fotos e Zana se irrita com o seu jipe velho, os bairros pobres de Manaus vão se formando com homens e mulheres que experimentam a decadência em seu estado de continuidade.

Um passo fora desse quadro, Nael se empenha em rememorar o passado. Ao abrir o álbum e mostrar as fotos do avô, Estelita sustenta suas histórias em um “tempo homogêneo e vazio”, que achata quaisquer saliências e ranhuras. Em sentido oposto, a narração de Nael se dedica a uma tradição cujo espólio de uma geração a outra não é o sobrenome, o dinheiro ou as memórias de um tempo áureo, e sim a perpetuação da pobreza e das más condições de vida. Enquanto Estelita suspira as suas saudades, os moradores da Cidade Flutuante são filhos e netos dos seringueiros que trabalharam para o seu avô ou para outras famílias ligadas à produção e ao escoamento do látex. A narração de Nael rompe esse espírito desalentado, e, por conta disso, se dão a ver com serenidade, e não com alarmismo, as dificuldades que se ensaiam para Zana e Reinoso. Em uma Manaus estagnada economicamente, distante do fausto gomífero e da esperança industrial, a experiência de classe das duas senhoras perde rápido a paciência e não compreende a injustiça da sua situação.

Halim é o cicerone de Nael. O velho comerciante, acostumado a regatear pelos sinuosos caminhos de Manaus, carrega o neto em seus passeios pela Cidade Flutuante. O olhar atento do rapaz vai captando o bairro em seus detalhes, nos movimentos que vão lhe dando vida. Uma perspectiva de empatia, que vai se tornando consciente do processo de formação desse imenso aglomerado de casas em pleno Rio Negro. As palafitas não nasceram de um dia para o outro, há sempre uma história por trás. A Cidade Flutuante, onde Halim fez negócios e amigos, cresceu junto com o comércio do libanês. O narrador é sensível a isso, ele representa o bairro sob uma perspectiva que não lhe responsabiliza pela própria miséria, mas valoriza a sua sobrevivência, dá créditos ao milagre da sua arquitetura e à complexidade da sua organização. Durante os passeios com Halim, o filho de Domingas interrompe a caminhada e olha com calma para o tanto de gente que, assim como ele, tem de se apertar pelas quinas de Manaus:

Ele me levara para um boteco na ponta da Cidade Flutuante. Dali podíamos ver os barrancos dos Educandos, o imenso igarapé que separa o bairro anfíbio do centro de Manaus. Era a hora do alvoroço. O labirinto de casas erguidas sobre troncos fervilhava: um enxame de canoas navegava ao redor das casas flutuantes, os moradores chegavam do trabalho, caminhavam em fila sobre as tábuas estreitas, que formam uma teia de circulação. Os mais ousados carregavam um botijão, uma criança, sacos de farinha; se não fossem equilibristas, cairiam no Negro. Um ou outro sumia na escuridão do rio e virava notícia (HATOUM, 2006a, p.90).

O narrador se aproxima da vida que narra, ele não faz do seu relato um lamento por fotos antigas ou por um jipe velho. Ao contrário da matriarca e da vizinha Reinoso, Nael pertence a uma cidade viva, que não ficou congelada em postais ou em saudosas lembranças. Dentro da Cidade Flutuante, ele consegue ver os Educandos e perceber a cisão de Manaus: de um lado, o bairro anfíbio; de outro, o centro. Nael oferece uma descrição viva do imenso bairro de casas flutuantes, as canoas, as tábuas, todo o alvoroço. Dessa perspectiva, as pessoas que vivem nesse lugar são tratadas como moradores, elas têm um trabalho e o seu esforço é reconhecido como o de um equilibrista. Existe, portanto, uma compreensão narrativa que não trata esses indivíduos como se eles fossem invasores, malandros ou meros desocupados. A narração de Nael sabe que se trata de gente que vem perdendo uma após a outra desde os tempos áureos da borracha, gente que vai se arrumando como pode, sobrevivendo das madeiras que sobram e dos trabalhos que aparecem. Quando se narra de um quartinho dos fundos, a cidade é algo maior, para além dos álbuns de fotografias, o tempo que ela vive são os mais diversos, e o seu passado ainda é uma história a ser contada.