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Tradição e (des)continuidade

5.3 UM MURMÚRIO ROMPENDO O SILÊNCIO

5.3.1 Tradição e (des)continuidade

Na Tese VII, há uma das passagens mais famosas do pensamento benjaminiano: "nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie" (BENJAMIN, 1987a, p.225). Nessa Tese, Benjamin está se referindo ao processo de transmissão da cultura, em tudo que ele pode conter de violência e conservadorismo. Para isso, o autor se vale da metáfora da guerra e de seus vencedores e perdedores, posições nem sempre intercambiáveis: "todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe" (BENJAMIN, 1987a, p.225). A partir desse trecho, chega-se a uma definição do processo histórico: a tradição dos vencedores se desdobra em um ritmo de continuidade. Não há abalos, nem fragmentações; à custa da injustiça e da barbárie, os bens culturais se acomodam sobre uma superfície homogênea e planificada.

Embora essa Tese encaminhe o debate para o campo da história, ela se dedica a dois conceitos fundamentais para compreender a narração da mulher sem nome: a tradição e a continuidade. Ora, o trabalho de recolha, organização e edição do depoimento de Hakim faz parte de uma tradição familiar, porque se trata de uma irmã / sobrinha14 que se dispõe a ouvir as histórias contadas por um irmão / tio mais velho, em cuja memória habita a vida de Emilie no Líbano e em seus primeiros anos no Brasil. No entanto, esse depoimento não é ingênuo, muito menos imparcial, ele apresenta uma face da matriarca que se distancia da sua fama de “mãe de todos” (HATOUM, 2008b, p.89). Na forma definitiva do relato, a narradora- organizadora impõe o seu gesto, e a voz de Hakim ganha potência ao desvelar as contradições em que a própria mãe se enreda no interior do sobrado. Seguindo o ritmo dessa narração do

14 A narradora e o irmão são criados como filhos adotivos de Emilie. Isso pressupõe que a mulher sem nome é

irmã mais nova de Hakim. Apesar disso, ele e Samara Délia são chamados de tio e tia. Mais um indício do estatuto ambíguo da narração.

filho mais velho de Emilie, a narradora rompe com o valor de continuidade familiar e formaliza um texto em que a trajetória da família adotiva é representada em seus excessos de sentido. Ouvem-se vozes, mencionam-se nomes, apresentam-se versões que jamais chegariam a um relato, não fossem o retorno dessa mulher e o seu empenho em lembrar e fazer justiça.

Mais adiante em suas Teses, Benjamin (1987a, p.230) introduz a imagem dos tiros contra os relógios de Paris da seguinte maneira: "a consciência de fazer explodir o continuum da história é própria às classes revolucionárias no momento da ação" (grifo do original). Para além da conclamação de feição bélica, esse trecho assinala a cesura, um conceito-chave da filosofia da história benjaminiana. Se na Tese VII, o ensaísta cria a imagem de um cortejo que desfila incólume sobre a humilhação das suas vítimas, nesta Tese XV, o seu intento é chamar atenção para a necessidade de interromper o trajeto desse mesmo desfile. A cesura, portanto, é o gesto essencial do materialista histórico, que “contempla com distanciamento” (BENJAMIN, 1987a, p.225) o ritmo desse cortejo e assume para si a tarefa de “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1987a, p.225). Essa compreensão do processo histórico se afasta o máximo que pode da acumulação de fatos em causalidade e se aproxima, por consequência, de uma perspectiva para o passado que se abre “aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado” (GAGNEBIN, 2006, p.55). Nesse ponto, os preceitos da historiografia proposta por Benjamin se mostram pertinentes a uma teoria da narração:

Para voltar a uma teoria da narração e da historiografia, as fraturas que escandem a narração não são, portanto, simplesmente as marcas da desorientação moderna ou do fim de uma visão universal coerente. São, igualmente, os indícios de uma falha mais essencial da qual pode emergir uma outra história, uma outra verdade (da qual podem nascer outras histórias, outras verdades). Uma possibilidade que, cumpre repeti-lo mais uma vez, nunca é garantia. Nas teses “Sobre o Conceito de História”, a tarefa do historiador “materialista” é definida, essencialmente, pela produção dessas rupturas eficazes. Longe de apresentar de início um outro sistema explicativo ou uma “contra- história” plena e valente, oposta e simétrica à história oficial, a reflexão do historiador deve provocar um abalo, um choque que imobiliza o desenvolvimento falsamente natural da narrativa (GAGNEBIN, 1999a, p.104).

Ao desenhar o contorno do historiador materialista, Benjamin (1987a) insere o conceito de cesura e atenta para a necessidade desse trabalho de interrupção histórica. A partir disso, Gagnebin (1999a), aproximando o debate do âmbito da narração, atribui importância e protagonismo à cesura, uma vez que ela impõe fraturas significativas, por conta das quais se dá a ver o passado em suas porções diversas às homogeneizadas pela plaina do conservadorismo. No texto seminal, o escopo é o historiador, na leitura de Gagnebin (1999a), por sua vez, o horizonte se expande, e a tarefa do narrador também é levada em consideração. Segundo a autora, a reflexão historiográfica de Benjamin antecipa a problemática da narração que vai se

constituir sobretudo após os horrores indizíveis da Segunda Guerra Mundial e que tem, na fórmula de Adorno (2003, p.55), a sua síntese mais poderosa e emblemática: "não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração". Sendo assim, na esteira dessa injunção legada por Benjamin (1987a) e Adorno (2003), Gagnebin (1999a, p.104) move o conceito de “intervenção eficaz”, em cujo gesto de cesura benjaminiana se revela a essência da organização e da edição da mulher sem nome.

A narração de Hakim é a oportunidade que ele esperava para falar do passado. “O encontro aconteceu na noite do domingo, sob a parreira do pátio pequeno, bem debaixo das janelas dos quartos onde havíamos morado. Na manhã da segunda-feira tio Hakim continuava falando (...)” (HATOUM, 2008b, p.28). A recolha desse relato ocupa uma noite e toda uma manhã, trata-se de um material imenso com o qual a mulher sem nome tem de lidar. Nesse ponto, reside a “intervenção eficaz” da narradora-organizadora, porque ela recorta dessa fala gigantesca momentos em que o tio deixa escapar a feição doméstica da matriarca Emilie. No interior do sobrado, a empregada Anastácia Socorro e as caboclinhas pobres sentiram na pele o avesso da “mãe de todos”. Dessa forma, há de se reconhecer um firme trabalho de edição, em que a mulher sem nome, apesar da sua fragilidade e da sua instabilidade, realiza um gesto de cesura na trajetória de vida de Emilie e revela a unidade contraditória sobre a qual se assenta a famosa generosidade da mãe adotiva.