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2.2 QUE CHANCES TERIA UM RAPAZ COMO LAVO?

2.2.3 Estima e autoestima do favor

Os tios de Lavo não dependem financeiramente dos Mattoso. Bem ou mal, tia Ramira carrega a família com as suas costuras, e tio Ran aparece com um bicho para o almoço ou com um dinheiro de algum negócio mal explicado. Enfim, os dois se viram como podem. Nem mesmo Lavo é dependente dos tios. Ao entrar no curso de Direito, ele consegue um estágio e passa a contribuir com o orçamento da casa. Mas na Vila da Ópera toda oferta é bem-vinda, seja a tartaruga da Vila Amazônia, seja as calças e camisas encomendadas por Jano, tudo é oportunidade para comer ou lucrar. A dependência é de outra ordem, está no nível da permutação simbólica. Para os Mattoso, os antigos conhecidos do Jardim dos Barés têm ou terão alguma utilidade, por isso é bom mantê-los nas proximidades. Para a casinha da Vila da Ópera, os Mattoso trazem prestígio, criam inveja nos vizinhos e atraem clientes para a costureira. Nos termos de Schwarz (1977, p.16), é um “jogo fluido de estima e autoestima”, ambas as partes saem ganhando. A princípio, é bem verdade.

No passeio de Lavo com Jano e Fogo, o arbítrio se desenvolve em sua melhor forma. O sobrinho da costureira está à mercê do chefe dos Mattoso, há um desprezo completo pela vontade e sobretudo pela honra desse rapaz pobre e, mais, órfão. Cúmplice desse abuso é o motorista Macau, sobre quem Ranulfo dá a melhor definição: “É um homem correto, mas faminto como todos nós” (HATOUM, 2010a, p.101). Dentro do DKW, estão todos submetidos ao capricho de Jano: Fogo atende por um assobio, Macau dirige por uma ordem e Lavo entra no carro por instinto de sobrevivência. Pretensa amostra da sua autonomia, o rapaz declina a generosa oferta e sai do escritório com a dignidade preservada. O dinheiro não o seduz, não o prende ao malicioso empresário, no entanto o peso dessa proposta se instala como um fardo em suas costas. Aceitando ou não o envelope, depois desse episódio, Lavo se torna mais íntimo, mais próximo do palacete, passa inclusive a investigar os movimentos de Mundo, principalmente as suas incursões pelo ateliê de Arana. Lavo não aceitou, isso é um fato, outro fato é a consequência desse passeio forçado: o sobrinho da costureira foi atraído, fisgado pela força de um homem ainda muito poderoso, de tal forma que ele poderia simplesmente sair daquele escritório e sumir, mas não, ele ainda viajou para a Vila Amazônia e tudo o mais.

Seguindo esse caminho, há mais do que apenas dinheiro na relação entre a família de Lavo e os Mattoso. Na década de 1960, Manaus se moderniza às custas dos empreendimentos liderados pelo coronel Zanda. É uma modernização tardia e em descompasso com a porção centro-sul do país, isso vale para o romance e mesmo para a história da cidade. Apesar disso, não deixa de haver mudanças significativas, sobretudo as de urbanização e de abertura para o capital estrangeiro. Nos termos de Rufinoni (2018, p.333), esse é um “momento de tensão aguda”: Lavo inclui em suas memórias o desembarque dos militares, a fundação da Zona Franca, a construção do Novo Eldorado, a chegada de lojas com produtos orientais, enfim, o processo de modernização de Manaus. A questão toda é compreender como isso se dá, para conversar com Schwarz (1977, 1997), na periferia do capitalismo. A considerar os argumentos defendidos até aqui, trata-se de um “paradoxal processo de modernização”, o qual carrega traços do “antigo código do privilégio e do favor” (RUFINONI, 2018, p.319-320). Não por acaso, conforme já se viu, a subjetividade de Lavo se esvazia em sua narração, e os seus tios se regozijam no contato com os Mattoso. Enfim, o poder familiar, “pressuposto da ordem no Brasil em vias de modernizar-se” (RUFINONI, 2018, p.333), se impõe sobre esses humildes moradores da Vila da Ópera.

Se não há dependência financeira ou da terra e se a cidade se torna mais moderna e dinâmica, por que a família da costureira permanece fiel às cartas enviadas do Rio de Janeiro? Por que os outros recebem tanta importância? Apesar dos artigos de Taiwan e da abertura de

avenidas no centro da cidade, a sociabilidade entre essas duas famílias se funda “à sombra do escravismo” (RUFINONI, 2018, p.323). Ora, Jano é um patriarca incapaz de lidar com os novos tempos, mas ainda assim um patriarca, o chefe dos Mattoso, o herdeiro da Vila Amazônia. Para Albino Palha, ele é um estorvo, um negociante de ritmo paquidérmico. Para a Vila da Ópera, no entanto, ele é um homem de roupas caras e elegantes, dono de um palacete, três carros e patrão de um motorista mal-encarado. Isso basta. Recém-egressos de um bairro pobre como o Jardim dos Barés, atrasados duas vezes ou mais na periferia do capitalismo, esses pobres ainda veem o patriarca em declínio como um homem grande demais, alguém por quem se sente admiração ou de quem se sente medo, mas nunca desprezo. No final das contas, o mundo só faz sentido com a permanência da família no palacete. Sem ela, em meio ao turbilhão de mudanças, há um vazio no horizonte desses três.

As coisas se dão “à sombra do escravismo”, porque já não há, conforme a expressão de Schwarz (1977, p.16), “a relação produtiva de base, esta assegurada pela força”. Todavia, a “forma perversa de progresso” brasileiro sustenta esse descompasso entre as promessas da modernização manauara e o atraso da família de Lavo, adulando os Mattoso até quando os Mattoso já não existem mais. Nessa manutenção de uma sociabilidade com ares de proprietário, agregado e escravizado, o favor ainda permanece como uma “mediação quase universal” (SCHWARZ, 1977, p.16). A Vila da Ópera e o palacete se aproximam justamente no “instante- chave do reconhecimento recíproco” (SCHWARZ, 1977, p.18) propiciado pela instituição do favor. Jano encontra em Lavo alguém para mandar, em Ranulfo para bater e em Ramira para seduzir; Alícia encontra em Ramira alguém para lembrar a sorte que teve, em Ranulfo para se satisfazer sexualmente e em Lavo para servir de espião e, talvez, se aventurar, criar ideias na cabeça do rapaz. Em contrapartida, Ramira não é uma costureira qualquer, Ranulfo não é um vagabundo sem serventia e Lavo não é um órfão sem amigos. Nesse jogo de “prestação e contraprestação” (SCHWARZ, 1977, p.18) simbólica, eles se diferenciam dos índios e dos miseráveis da Manaus moderna.

Sendo assim, nas cenas em que a pobreza da cidade salta aos olhos de Lavo, ele está sempre ao lado de Mundo. O sobrinho da costureira observa, mas sem se ocupar de nenhuma atitude. Diante de uma casa abandonada, é o amigo quem oferece moedas a alguns índios: "Curvou-se, pôs a mão entre as barras de ferro e ficou assim por uns segundos; quando se afastou, vi uma família de índios catando as moedas que jogara; moravam ali, entre o gradil e a fachada da casa em ruínas" (HATOUM, 2010a, p.28). De modo semelhante, é Mundo quem demonstra inquietação com as pessoas disputando lixo com os urubus: “Atrás do Palácio do Governo uma mancha escura se movia lentamente nas margens do rio. Urubus, dezenas,

bicavam dejetos deixados pela vazante. Um cacho de asas abriu um clarão, e no meio apareceram homens e crianças maltrapilhos. Mundo falou: ‘Nossa cidade…’” (HATOUM, 2010a, p.106). Essa miséria está muito próxima de Lavo, um lance da vida e ele pode se tornar mais um pedinte da cidade. A condição da sua família é precária, o sustento depende das costuras de tia Ramira e das malandragens de tio Ranulfo. E se Jano resolve sufocá-los e vingar- se pela recusa de Lavo ou por qualquer outro motivo? E se a costureira não resiste ao excesso de trabalho? Enfim, na casinha da Vila da Ópera, todo cuidado é pouco, a pobreza em sua versão extrema é uma sombra tão próxima quanto a dos Mattoso. Andar pelas ruas de Manaus sendo guiado por Mundo é uma garantia de que, pelo menos naquele momento, Lavo não é um miserável faminto. Ou talvez de que tenha despertado afetos que a narração é incapaz de esclarecer: “Depois Mundo enfiou por uma quebrada e foi sair no beco da Indústria; só o alcancei num terreno baldio, entre um estaleiro e uma serraria, perto do igarapé de São Vicente” (HATOUM, 2010a, p.28-29).

3 DOIS IRMÃOS