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4.1 PODIA SER DINAURA, OU INVENÇÃO DO MEU OLHAR

4.1.4 A narração como engano

Florita não é confiável, ela altera e muda o sentido, ela cria outra realidade para não assustar Arminto. Florita envolve a criança e depois o adulto em narrativas que são desde já

movediças, incertas, diversas dos eventos a que se referem, dos quais se pretendem representação. Em tudo isso, seja nas histórias de Arminto, seja nas lendas de Florita, uma narração que não oferece objetividade, uma narração que põe o seu ouvinte ou o seu leitor em estado de alerta, em dúvida constante:

Florita foi atrás de mim e começou a traduzir o que a mulher falava em língua indígena; traduzia umas frases e ficava em silêncio, desconfiada. Duvidava das palavras que traduzia. Ou da voz. Dizia que tinha se afastado do marido porque ele vivia caçando e andando por aí, deixando-a sozinha na Aldeia. Até o dia em que foi atraída por um ser encantado. Agora ia morar com o amante, lá no fundo das águas. Queria viver num mundo melhor, sem tanto sofrimento, desgraça. Falava sem olhar os carregadores da rampa do Mercado, os pescadores e as meninas do colégio do Carmo. Lembro que elas choraram e saíram correndo, e só muito tempo depois eu entendi por quê (HATOUM, 2008a, p.11-12).

A narração de Arminto, essa narração que ele engata diante do forasteiro, começa pela história da índia, a tapuia que irrompe pelo porto e vai nadando até sumir no fundo do rio. A narração de Arminto inicia pelo ambiente da lenda, será real a presença da índia? Ela de fato está sumindo na frente de todos? Aos olhos de uma criança, mais parece uma miragem, uma sereia voltando para casa. Arminto é um narrador que não tem pleno conhecimento dos fatos, ele depende de Florita para entender o que está acontecendo, ela é adulta e, mais, ela é capaz de entender o que a índia está falando, Florita é capaz de apreender o sentido das palavras de uma mulher que está afundando nas águas do Negro. Arminto depende de uma tradução, o mundo é estranho a ele, a língua da tapuia é diferente da sua, eis aqui o papel de Florita, ela adapta, reformula, ela cria uma história em torno da jovem suicida, faz dela uma mulher apaixonada por um ser encantado. Arminto é serpenteado pelas palavras de Florita, ela o engana, faz da realidade distorção, Arminto é verdadeiramente encantado pela narração de Florita e só muitos anos depois é capaz de compreender o engodo, a traição das palavras.

Nesse sentido, há de se observar o estatuto que a narração assume nessa história da tapuia. Ao traduzir um suicídio motivado pela miséria como se fosse um arroubo de amor encantado, Florita faz disso um ato de salvação, da inocência do menino, da perspectiva infantil, mas sobretudo de si mesma. A tradução adulterada de Florita, a tradução que dá outro sentido ao suicídio da índia, é uma salvação da própria Florita, também uma índia, também uma mulher à mercê do abandono, também uma mulher que está sujeita a tudo, a ser trapaceada e a morrer à míngua, como de fato aconteceu. Ao se deparar com a índia lamentando a extrema má sorte, Florita está diante de si, um duplo da sua trajetória, um aviso de qual será o seu destino. Essa narração, portanto, é um engano, um engano do ouvinte e da narradora, mas um engano salvador, que se coloca como uma brecha na vida de Florita, um sopro de esperança, talvez um

desenlace inesperado para uma existência enfronhada na mais dura realidade.

Durante toda uma vida, Florita foi a tradutora de histórias da Aldeia para Arminto. Só quando ambos já estão velhos, premidos pela miséria, ela revela o que fez sobre a índia que entrou no rio: "Traduzi torto, Arminto. Tudo mentira" (HATOUM, 2008a, p.90). Florita subverteu a fala original, ela criou, em verdade, um outro sentido para a história, amansou a maldade do mundo para o menino curioso. Esse gesto contamina todas as traduções feitas por Florita, nada fica seguro após essa revelação. Ela ingressa como uma narradora que se depara com uma realidade que é cruel demais, uma realidade que não é aceitável, tampouco comunicável, "E eu ia contar para uma criança que a mulher queria morrer?" (HATOUM, 2008a, p.90). Desse modo, a narrativa de Florita assume uma dimensão prática, não em sua sabedoria, ou em seu ensinamento, mas em sua invenção. Essa mentira é um alento para a criança abastada que se depara com o extremo do desespero e também para a própria narradora, que deforma a realidade a sua frente para, assim, criar um espaço de sobrevivência, uma possibilidade de conviver com o absurdo. A realidade que se apresenta é de tal modo pesada, de difícil apreensão, que a narração se acomoda a um registro de lenda, a uma atmosfera que dissolve as referências do ouvinte. A vida toda de Arminto é continuidade daquele momento, daquele dia em que Florita o inseriu no fluxo de uma história da qual ele jamais se livrou: uma índia no fundo do rio, uma cidade encantada, o Eldorado.

O narrador perdeu seu posto. A sabedoria, a serenidade, o tom objetivo, o domínio sobre as personagens, isso tudo se move, cede passagem à figura de um narrador frágil, confuso e desorientado. O desamparo do mundo, a impossibilidade de narrar em sua inteireza, o choque, a ruptura, uma catástrofe a cada esquina. O homem é um corpo minúsculo, o narrador é ambíguo e incerto. A realidade se impõe como uma fachada de acesso interdito, representá-la é tarefa que já não parece humana, sobram os fragmentos e os acertos do acaso. O romance de Hatoum se assenta na tradição dessa incapacidade, os seus narradores tropeçam, ficam emperrados nos meandros de seu trabalho. Arminto Cordovil é bom de papo, invade a imaginação de seu ouvinte, mas não é nada confiável. Um velho solitário, com fama de louco e mentiroso, o seu contorno é esse. Mesmo nas histórias que conta, a sua condição não se altera: é enganado por Florita e enfeitiçado por Dinaura. Arminto é a imagem de um narrador que não se apodera nem da própria narrativa, é levado por ela, é confundido por suas personagens, é traído pelo seu enredo. Nesse jogo, engambelam-se o ouvinte, o forasteiro atrás de água, e, em última instância, o leitor, esse esperançoso perseguidor, confiante de que é possível alcançar Dinaura, confiante de que, ao lado do narrador, é possível encontrar algum sentido no mundo. Confiança e ingenuidade, assim se costuram os fios de uma narração.