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Os acenos intermitentes da metrópole

3.3 CORPOS BORRADOS PELA NEBLINA

3.3.1 Os acenos intermitentes da metrópole

Para a Manaus de Dois Irmãos, o anjo anunciador da modernidade é o gêmeo Yaqub. A sua prosperidade em São Paulo é responsável pelas mudanças na casa e na loja da família. Além

de dinheiro e presentes, ele envia cartas repletas de fascínio pela cidade e pela vida nova, “os acenos intermitentes da metrópole: o dia a dia na Pensão Veneza, os cinemas da São João, os passeios de bonde, o burburinho do viaduto do Chá e os sisudos mestres engravatados, venerados por Yaqub” (HATOUM, 2006a, p.45). O filho mais velho de Zana se torna militar, depois engenheiro e passa a admirar as ideias e os programas que sustentam o crescimento da metrópole. Os mestres engravatados, mais tarde os fardados, ditam o ritmo do movimento adotado pelo gêmeo. O espadachim da Independência encabeça um cortejo sobre o qual nada para em pé, o Café Mocambo fecha as portas, a praça das Acácias vira um bazar, o lupanar Verônica dá adeus à noite manauara, o centro é invadido por indianos, coreanos, chineses, gente do interior, tudo se transforma em Manaus.

Na previsão de uma batalha comandada por gases venenosos, reside uma das versões da crítica benjaminiana à modernidade e à sua ideologia do progresso. Com a metáfora do gás mostarda, a retidão e a constância do desenvolvimento moderno seguem firmes até se deparar com uma região tomada pelo nevoeiro, em que a visibilidade é curta, e os objetos e seres contidos nela assumem um contorno ambíguo e indiscernível. No fundamento dessa metáfora, existe a compreensão de que a modernidade carrega em seu seio um elemento contraditório, cujo empenho é o do próprio aniquilamento. Por essa via, vale a síntese de Benjamin (2009, p. 502) no livro das Passagens: “o conceito de progresso deve ser fundamentado na ideia de catástrofe”. A confiança na tecnologia e na indústria se transforma em horror diante de uma guerra que não oferece fronteiras visíveis, tampouco distinção entre combatentes e civis. Todos estão implicados, a fumaça se espalha pela atmosfera, e os espaços deixam de ser referências seguras.

Em um passeio de domingo pela Praça da Matriz, Nael entrega seus ouvidos às histórias de Domingas e apura a visão para as mudanças da cidade. Após o desembarque dos militares, o narrador não deixa de notar que o aviário da praça está vazio e silencioso, cargueiros achatam barcos e canoas no porto, e estivadores, guindastes e empilhadeiras não param de descarregar caixas com produtos eletrônicos. É a Manaus dos novos tempos, a índia se incomoda com tanto barulho e agitação. Embora pobres, vivendo nos fundos de um pátio, mãe e filho barganham esse breve tempo de lazer. Diante dos olhos de Nael e Domingas, há pessoas em condições ainda piores. Índios e migrantes esmolam na escadaria da igreja, famílias inteiras dormem na calçada da rua dos Barés, Calisto, um dos vizinhos do cortiço, trabalha em pleno domingo, sem camisa e descalço. Nos termos de Yaqub, à vontade com os rumos tomados pela cidade, “Manaus está pronta para crescer” (HATOUM, 2006a, p.147).

Na esteira dos argumentos de Benjamin (2013), a modernidade não se mostra, o seu sentido permanece velado. No vaivém do porto, cargueiros e produtos eletrônicos são os sinais do progresso. A cidade ingressa no mesmo ritmo de São Paulo, os ecos da metrópole, enfim, chegam ao mormaço amazônico. Há tanto barulho no Manaus Harbour que Domingas não escuta a própria voz, ela quer contar histórias, lembrar de quando o filho nasceu, mas o ambiente não permite que haja calma. Não há tempo, nem condições para o gesto da memória. Apesar disso, os olhos de Nael estão atentos, os miseráveis do porto não saem do seu radar. Índios, migrantes do interior, famílias inteiras, o vizinho Calisto, todos eles são o reverso da modernidade, o seu rumor interno. Em uma justa observação, Nael mimetiza esse aspecto dúbio e traiçoeiro na imagem de Yaqub, o qual "se sofisticava, preparando-se para dar o bote: minhoca que se quer serpente" (HATOUM, 2006a, p.45). O filho preterido retorna a Manaus sob os auspícios dos militares, ele volta em busca da herança que não lhe foi dada.

Manaus se torna uma cidade ocupada. Escolas e cinemas são fechados, lanchas da Marinha patrulham a baía do Negro, estações de rádio transmitem comunicados militares. Veículos verdes cercam as praças, homens fardados tomam conta das avenidas e do aeroporto. Todos têm medo, Rânia fecha a loja, Nael não quer sair de casa. Todos, menos Yaqub. Ele não se intimida com essa movimentação, pelo contrário, o engenheiro está orgulhoso, demonstra satisfação e coragem, a sua confiança é um espanto para o narrador. Nos primeiros dias da quartelada, Yaqub chega a trabalho em Manaus. Com suas folhas quadriculadas, repletas de números e desenhos, o gêmeo mais velho toma posse de uma câmera fotográfica e escrutina os prédios e terrenos do centro:

Na tarde em que saímos para fotografar edifícios e monumentos da área central, nós paramos na praça da Matriz e eu me lembrei da missa em memória de Laval, a missa proibida. Enquanto Yaqub fotografava e fazia anotações eu percorri os caminhos da praça, sentei num banco de pedra enredado pelas raízes grossas de um apuizeiro. O calor da tarde me deu tontura, senti a boca seca, os lábios grudados. Não jorrava água da boca dos anjos de bronze da fonte. Perto da igreja, parei para descansar e admirar os pássaros do aviário. Percebi que estavam assustados, voavam enlouquecidos para todo lado, mas logo um zunido de varejeiras me incomodou, um som grave e monótono que foi aumentando, e quando desviei os olhos para a rua, fiquei gelado ao ver um jipe apinhado de baionetas (HATOUM, 2006a, p.149-150).

Nesse trecho da narração de Nael, a modernidade manauara se revela em seu sentido especulativo. Trata-se de uma situação de várias faces, em que é difícil se situar e encontrar uma referência segura. O filho de Domingas está confuso, sente um mal-estar. Pode ser o calor da tarde amazônica, a morte recente de Antenor Laval, a presença ostensiva de jipes ou a atitude de Yaqub, trabalhando calmamente, enquanto o Exército aponta suas baionetas para a

população. Os presentes de São Paulo, as melhorias na casa e na loja dos libaneses, esses ares da metrópole prometiam um futuro moderno e arejado a Manaus. A sua chegada, no entanto, assume uma feição assustadora, a força que o imprime se mostra em demasia. Em Benjamin (2013), a metáfora da modernidade são os gases venenosos, em Wisnik (2018), são as nuvens e o mercado de futuros, em Dois Irmãos, é o mormaço. A temperatura quente e úmida causa desorientação em Nael, ele fica tonto e busca refúgio na praça. Mas já não sai água da boca dos anjos, e os pássaros fugiram assustados do aviário. Por todos os lados, há tão somente militares e suas armas, são eles quem criam o ambiente ideal para o trabalho de Yaqub. Tranquilamente, o engenheiro e oficial da reserva fotografa, mede e calcula a modernização de Manaus.