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4.2 AS ILUSÕES DO OURO BRANCO

4.2.4 Uma lembrança amarga

Manaus. O idílio venceu. E a vida mundana morreu com a euforia de uma época. Como tudo muda em pouco tempo. Uns anos antes da morte do meu pai, as pessoas só falavam em crescimento. Manaus, a exportação de borracha, o emprego, o comércio, o turismo, tudo crescia. Até a prostituição. Só Estiliano ficava com um pé atrás. Ele estava certo. Nos bares e restaurantes as notícias dos jornais de Belém e Manaus eram repetidas com alarme: Se não plantarmos sementes de seringueira, vamos desaparecer... Tanta ladroagem na política, e ainda aumentam os impostos (HATOUM, 2008a, p.33).

Só Estiliano ficava com um pé atrás, não poderia ser diferente, o seu nome já diz tudo, o seu amor aos gregos diz ainda mais. Estiliano é um resquício de racionalidade em uma cidade enfronhada pelo sonho, é o único que duvidou do otimismo e manteve os pés no chão. Apesar disso, não foi capaz de dissuadir o filho de Amando, toda a sua razão, toda a sua argumentação, nada disso foi capaz de conter Arminto Cordovil. Este se embrenhou pela insensatez, virou as costas para a cidade que o sustentava e continuou a mesma loucura de jovem abastado, entregou-se à paixão em tempos de penúria, tempos que só constavam dos planos de Estiliano. O advogado de Amando é quem mede a linha do progresso, pede cautela, exige o mínimo de ponderação de Arminto, mas o destino dos Cordovil parece selado em direção a uma cidade encantada, uma cidade repleta de ouro, de justiça social, de paz entre os homens, uma cidade que talvez estivesse no horizonte do mito do Eldorado, mas que nem de perto se viu na Manaus do rubber boom, uma cidade cuja modernização se deu às custas da clivagem social. A Paris dos Trópicos de um lado, os migrantes, os seringueiros, as meninas indígenas de outro, bem distantes, longe dos olhos dessa Europa tropical.

4.2.4 Uma lembrança amarga

Na busca enlouquecida por Dinaura, os barqueiros Ulisses Tupi, Joaquim Roso e Denísio Cão são contratados para encontrá-la no intrincado de ilhas e rios do interior amazônico. Os três se perdem nos remansos mais escondidos, abordam índios e ribeirinhos, são os práticos dessa caça patrocinada por Arminto. Nesse mundo de águas, eles não encontram Dinaura, não há nem sombra dela, o que eles carregam de volta é tão somente “mitos e meninas violentadas” (HATOUM, 2008a, p. 65). Ulisses retorna com lendas envolvendo Dinaura, ela vivia em uma cidade no fundo do rio, tinha uma vida de rainha, com todas as riquezas e as regalias, mas era infeliz, cativa de um bicho terrível e encantado. Denísio traz consigo uma cunhantã bem novinha, quase uma criança, por alguns trocados, ele comprou a menina do pai e a estuprou no retorno a Vila Bela. Joaquim traz outra menina, “um anjo triste, o rostinho

moreno, cheio de dor e silêncio” (HATOUM, 2008a, p.63), ela também fora estuprada, desta vez pelo próprio pai.

Dinaura é mesmo um sonho impossível, uma presença que simplesmente sumiu, Arminto gastou o pouco dinheiro que tinha com essa perseguição infrutífera pelos rios, e o resultado foi a aproximação de uma verdade perturbadora, os abusos que marcam as pequenas cunhantãs trazidas pelos barqueiros, “era o destino de muitas filhas pobres da Amazônia” (HATOUM, 2008a, p. 64). Dinaura é uma dessas filhas pobres, uma menina que sobreviveu graças à proteção de Amando, mas não se sabe em que condições, nem mesmo Estiliano foi capaz de explicar o vínculo real entre eles. Esse também é o destino de Florita, caçada feito bicho pelos empregados de Amando e colocada à mercê do patrão, mulher da cozinha e da cama, Florita foi babá, depois amante de Arminto. Ela era, em verdade, apenas mais uma das posses dos Cordovil.

Nessa corrida desenfreada por Dinaura, vão surgindo alguns pontos de ruptura na imagem tão bem higienizada da Capital da Borracha. Os cinemas, os bondes, os teatros, a aparência de cidade europeia não resiste a essas cunhantãs do interior, elas dão rosto à violência sobre a qual se ergueu o esforço civilizatório da economia gomífera. Nos fundos do Colégio do Carmo, Amando Cordovil, um dos principais de Manaus, sustenta em segredo uma índia órfã. No palácio branco, o mesmo Amando tem outra índia em suas mãos. O prestígio do nome, a importância da família, o protagonismo nas grandes exportações, todos esses símbolos carregam em sua face oposta o indelével do abuso, a dominação pela força, pela ameaça e pelo dinheiro.

A quebradeira, enfim, toma conta da cidade encantada dos manauaras, a Paris dos Trópicos não suporta os baques de uma realidade que se aproximava em ritmo cada vez maior. É Estiliano quem conta o óbvio para Arminto, “a exportação de borracha despencou” (HATOUM, 2008a, p.48). Apesar disso, o último dos Cordovil já estava com a cabeça virada, não há mais dinheiro para pagar os funcionários, a empresa herdada do pai está fechando as portas, mas é só Dinaura que interessa, o delírio dessa mulher se sobrepõe a qualquer aviso enviado por Estiliano, "os telegramas enviados de Manaus, quatro ou cinco, que eu rasguei com raiva, sem ler, sem nem mesmo abrir" (HATOUM, 2008a, p.47). Arminto faz a opção pela fantasia, deixa de lado os problemas reais e se dedica a um amor que é todo ele idílico, envolto pelo seu caráter ilusório. Dinaura é múltipla, pode ser tantas coisas, irmã, madrasta, amante, Dinaura serviu ao pai e agora escapa do filho, Dinaura é a fuga de um homem que vê seu futuro afundar em um cargueiro.

Após tantos jogos de cena, tantas sombras, tantos avanços e recuos, vem a consumação do amor, porém com ele também se anuncia o dilúvio. Os rios se enfurecem, Vila Bela é alagada e chega o pior dos destinos ao Eldorado, é o fim de um sonho, o encerramento de uma época de luxo e ostentação. Enquanto se desmantelam os principais negócios de Manaus, entre eles os da família Cordovil, a vida de Arminto ingressa no registro da lenda, ele só tem olhos, corpo e alma para a cidade banhada de ouro, a cidade no fundo do rio, a cidade onde Dinaura se tornou uma rainha, onde Dinaura é cativa de um bicho encantado, um boto sedutor. Nem mesmo a imagem de uma Manaus engolida pela miséria é capaz de mover para longe o delírio de Arminto, ele se refugia nas imagens espectrais dessa mulher que é toda ela mistério e ilusão:

Andei de bonde pela cidade, vi palafitas e casebres no subúrbio e na beira dos igarapés do centro, e acampamentos onde dormiam ex-seringueiros; vi crianças ser enxotadas quando tentavam catar comida ou esmolar na calçada do botequim Alegre, da Fábrica de Alimentos Italiana e dos restaurantes. A cadeia da Sete de Setembro estava lotada, vários sobrados e lojas à venda. Tudo isso só aumentou a saudade que eu sentia de Dinaura (HATOUM, 2008a, p.57).

Muito anos depois, quando Arminto Cordovil não passa de um velho esquecido em uma tapera, a sua narração equaciona os extremos desse passado que é seu, mas sobretudo de Manaus. Por conta da elaboração feita por esse narrador com fama de louco e mentiroso, ganham realce os contrastes do progresso manauara, o reverso do porto movimentado, os migrantes dormindo sobre jornais, os ex-seringueiros voltando em miséria, as filhas pobres da Amazônia. Trata-se da perspectiva de um homem que perdeu tudo, talvez até a sanidade, a perspectiva de um homem que se entregou a uma imagem de fantasmagoria, um horizonte que se confunde entre o mito e a realidade, o rio e a cidade, a cultura amazônica e a europeia, um horizonte em que as coisas perdem seu contorno, assumem formas indiscerníveis, um horizonte em que as esperanças se frustram, e as promessas não se cumprem.

A busca por Dinaura é uma busca impossível, um caminho sem volta em direção a uma sombra que logo se esvai, a busca por Dinaura é a busca pela Paris dos Trópicos, a pretensiosa corrida atrás do ouro branco. No final das contas, a narração de Arminto é a narração de um homem que se empenhou na viagem até o Eldorado, um homem que deu tudo o que tinha para chegar a esse lugar encantado. É a narração sobre uma época, sobre homens que acreditaram em um mito e depositaram toda a sua força e energia para encontrá-lo, para domá-lo e para fazê-lo coisa sua. O Manaus Harbour, o Teatro Amazonas, as avenidas, os cafés, as óperas, as lojas com artigos europeus, o sonho de agarrar a riqueza gomífera e fazer de Manaus uma

metrópole amazônica, "todo o luxo de uma época acabou numa lembrança amarga" (HATOUM, 2008a, p.89).

5 RELATO DE UM CERTO ORIENTE