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Costura do relato e apocatástase

5.1 LENÇOS COM BORDADOS ABSTRATOS

5.1.3 Costura do relato e apocatástase

nome aprende a bordar. A partir dos retalhos de um lençol velho, ela costura alguns lenços, os quais serviriam de presente para as outras internas. De um farrapo, de um emaranhado caótico de tecidos, a mulher produz algo novo, atribuindo valor àquilo que tinha perdido o seu significado. Nesse gesto, narração e costura se encontram, ambas se apresentam como um artifício de sobrevivência. Costurando, Penélope retardou um novo casamento. Contando histórias, Sherazade driblou a própria morte. A metáfora do bordado ilumina o romance, pois esses lenços feitos de sobras são a insígnia do trabalho a que se dedica a narradora. A morte de Emilie impõe a costura das vozes de Hakim, Dorner e Hindié, pedaços de memória, farrapos de um passado que recua no tempo.

Em “Posição do narrador no romance contemporâneo”, Adorno (2003, p.56) faz uma ressalva que se mostra adequada para este ponto do debate: "antes de qualquer mensagem de conteúdo ideológico já é ideológica a própria pretensão do narrador (...)". Nesse breve alerta, o autor chama atenção para o intento mais elementar do procedimento de narração: "(...) contar algo significa ter algo especial a dizer (...)" (ADORNO, 2003, p.56). Ora, em seu fundamento mais essencial, narrar é um atestado de notoriedade, a narração só se empenha por aquilo que é digno do seu esforço. No entanto, esse ensaio apresenta um ponto de vista negativo, por conta do qual se compreende que o relato é um corpo estranho na modernidade capitalista, uma vez que ele é “impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela mesmice" (ADORNO, 2003, p.56). O narrador quer contar, o romance exige isso em sua forma, mas o mundo se tornou avesso a esses apelos, a reificação das relações humanas e a alienação do indivíduo emperram a ascensão de um evento surpreendente, já não há, no final das contas, “algo especial a dizer”. Nesses termos, o narrador parece um dinossauro na autoestrada10.

A partir desses argumentos, a narração se torna uma aporia. Por isso mesmo, mais adiante em seu texto, Adorno (2003) defende a forma de um romance capaz de romper a fachada hermética do processo social. Nesse sentido, ingressa a metáfora da costura em Relato de um certo Oriente, em virtude da qual a narradora assume para si, como ardilosa tecelã, a tarefa de nomeação das outras mulheres da clínica. Os bordados retiram as internas do esquecimento, elas passam a ser dignas de alguma notoriedade, o seu caminho é iluminado pelo gesto de uma mulher cujo nome também é um mistério. Habitante do limiar, vinda da desordem da metrópole para a assepsia da clínica, a filha adotiva de Emilie faz da costura dos lenços e da escrita do relato uma busca pela identidade, a sua e a das companheiras. Assim, essa mulher fora de sincronia, feito um Hamlet que já não encontra o seu lugar no mundo, sobrevive graças aos

ardis da sua arte:

O quarto era o lugar privilegiado da solidão. Ali, aprendi a bordar. Retalhei um lençol esfarrapado para fazer alguns lenços, onde bordei as iniciais dos nomes e apelidos, e teci formas abstratas nos pedaços de pano que desejava presentear às que não tinham nome ou não eram conhecidas através dos nomes: pessoas que nunca me olhavam, nunca se olhavam: corpos sem fala, excluídos do diálogo, e que pareciam caminhar num deserto sem Deus e sem oásis, deixando atrás de si um rastro apagado pelo vento, pelo sopro da morte (HATOUM, 2008b, p.145).

Em “Teologia e Messianismo no pensamento de W. Benjamin”, Gagnebin (1999b, p.194) afirma que Benjamin, ao recorrer ao Gênesis em alguns de seus textos da juventude, “nos faz recordar a outra função da linguagem humana, função verdadeiramente essencial, a de nomear, que não se pode explicitar nem em termos de comunicação nem em termos de arbitrariedade”. Segundo a autora, trata-se de uma função esquecida e mesmo repelida pelas hipóteses científicas da linguística. Não haveria de ser outro filósofo, senão Benjamin, para reanimar esse debate deixado de lado. Por essa via, há de se observar que, com o bordado dos lenços, o gesto de nomeação recupera essa mesma compreensão da linguagem; as internas, antes anônimas, ganham um nome, um símbolo, uma marca que as arranca do silêncio e do desconhecido. Não há nada de arbitrário nesse uso da linguagem, o que há, em verdade, é um esforço primordial pelas mãos da costureira: fazer a luz, retirar da escuridão, impor a palavra que nomeia e identifica. Sendo assim, os lenços feitos por essa mulher, ela mesma a insígnia do mistério, configuram um sentido de recolha e de preservação. Para a costura desses bordados, cujo ânimo é o mesmo da narração, todas as histórias são relevantes, todos os testemunhos devem ser ouvidos, todos os indivíduos precisam de um nome.

A partir dessa junção de narrativa e bordado em Relato de um certo Oriente, chega-se a um conceito que se mostra essencial para compreender em profundidade a força que motiva a narração desse romance. Em um dos breves textos de Profanações, intitulado “O Dia do Juízo”, Agamben (2007, p.23) faz menção ao "célebre daguerreótipo do boulevard du Temple, considerado a primeira fotografia em que aparece uma figura humana"11. Ao se deter na imagem do homem engraxando os sapatos, o filósofo italiano vai se aproximando da noção de apocatástase, um termo que se funda nas especulações religiosas de Orígenes de Alexandria. Esse conceito tem a ver com o Juízo Final, é o oposto do Apocalipse e preconiza a salvação de todas as almas, até mesmo das que habitam o inferno. Ao se referir à apocatástase, Agamben (2007) se interessa em mostrar o poder da fotografia de captar o gesto único e essencial do

sujeito fotografado, cuja principal exigência, segundo o filósofo, é ser lembrado, esse sujeito quer que seu nome não seja esquecido. Nesse atributo da fotografia, Agamben (2007) reconhece o plano da salvação, uma vez que se apreende a atitude mais irrelevante do homem, a qual resume o sentido de toda uma existência. Conforme a argumentação do autor, essa é a chave da apocatástase; a ressurreição no Juízo Final tem a ver com essa recapitulação infinita de uma recordação.

Os argumentos de Agamben (2007) se coadunam a um debate iniciado por Benjamin em 1936, no ensaio "O narrador - Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov". No passo 17 desse texto, o filósofo alemão vincula o espírito das narrativas de Leskov aos dogmas da Igreja Ortodoxa grega. Segundo Benjamin (1987a, p.216), “nesses dogmas, como se sabe, a especulação de Orígenes, rejeitada pela Igreja de Roma, sobre a apocatastasis, a admissão de todas as almas ao Paraíso, desempenha um papel significativo". Esse é um conceito fundamental para compreender a feição do narrador de Leskov, essa figura empenhada em salvar, no seu relato, as criaturas pertencentes ao estrato mais baixo da hierarquia social, aquelas para quem o mundo e seus homens parecem ter virado de costas. Nesse contexto, a narração da mulher sem nome é imbuída de um espírito semelhante, ao agregar para a sua “mistura do papel com o tecido, das cores com o preto da tinta e com o branco do papel” (HATOUM, 2008b, p.145), o desejo de nomeação das anônimas que, ao contrário dela, estão presas até a morte nos limites assépticos da clínica. Dessa maneira, a filha adotiva de Emilie assume para si a tarefa salvadora da memória; a herança se apodera dela e transmite os imperativos de nomear, lembrar e contar.