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“O importante não é o tempo de vida que temos, mas a qualidade da vida que vivemos”.

(D´Assumpção, 1984)

Pesquisando-se o significado das palavras morrer e morte em dicionários, pode- se optar pela definição contida no Aurélio (1988), que junto com outros compartilha, reduzidamente, que morrer “é perder a vida, falecer” (p.345). E morte “é o fim da vida animal e vegetal” (p.345). Portanto, pode-se dizer que morrer é o processo, pertence ao vivente; enquanto morte é o fato, pertence ao defunto. Esses conceitos, compartilhados pelo senso comum, influenciam na maneira como as pessoas vão representar o morrer e a morte.

Um autor que se destaca nessa temática, afirma que: “Se morrer é um processo, uma preparação, uma caminhada, a morte é a decisão definitiva, a crise (ruptura, juízo) radical, que o homem faz na solidão de seu extremo, derradeiro e pleno diálogo, com aquele (ou aquilo) no qual creu e pelo que viveu” (BESSA, 1984, p.23).

Viu-se no capítulo anterior como o ser humano reage ao morrer e a morte, que as atitudes e conceitos que os indivíduos têm estão intimamente ligados a uma história sócio-cultural de cada época e local. O indivíduo, no decorrer de sua existência, desempenha vários papéis e ocupa lugares sociais, carregados de significados que nos chegam através dos outros. Integramo-nos nas relações sociais através da mediação com esses outros e nelas vamos nos reconhecendo, através de nossas atitudes, como pessoas.

Dentro da perspectiva de subjetividade social de Rey (2003), o mundo social é um espaço de sentidos compartilhados, onde o indivíduo ao mesmo tempo que constitui sua cultura é constituído por ela. Nesse sentido o individuo é sujeito ativo nessa sociedade, sendo capaz de romper com as organizações sociais, mas nem sempre vai dar conta de tudo (apud JOANNELIESE, 2003).

Nessa concepção, “a subjetividade é caracterizada não apenas como qualidade de um indivíduo, mas como uma configuração3 que se constitui na relação com o outro, que mantém suas particularidades. Apesar de possuírem um caráter social, relacional, os sentidos objetivos, mesmo que partilhados são atribuídos e significados por um sujeito, com vontade própria e não está alheio às constituições humanas, e não por um “objeto- cultura” (JOANNELIESE, p.56).

Dessa forma, com relação a morte, Morin (1975) alerta que “Tudo indica que a consciência da morte que emerge no Homo Sapiens é constituída pela interação de uma consciência objetiva que reconhece a mortalidade e de uma consciência subjetiva que afirma se não a imortalidade, pelo menos uma transmortalidade...” (apud Bessa, p.116). Ou seja, de acordo com esse autor, “a morte pode ser entendida como a objetividade da subjetividade da objetividade”. A objetividade é o momento em que o indivíduo recebe a notícia da morte, é o impacto inicial; a subjetividade representa a inaceitabilidade do fato, a sua incompreensão; e a objetividade da subjetividade é a consciência da irreversibilidade da morte, da sua concretude e sua possível aceitação. Encará-la dessa forma é reconhecer a complexidade da percepção da mortalidade para o ser humano, repensando as atitudes que tomamos frente a ela.

As atitudes humanas em relação ao morrer e a morte no ocidente são diferentes das sociedades antigas e orientais, onde a morte é vista como parte importante do processo da vida. O historiador Philippe Ariés (1977) estudou a história da morte no ocidente cristão, desde a Idade Média até o século XX e destacou quatro fases que marcaram a atitude humana perante a morte, apresentadas resumidamente:4

Na primeira fase, a morte domesticada, predominante até o século XII, a morte fazia parte do quotidiano da vida. Uma das principais características dessa fase é o pressentimento que as pessoas tinham com o chegar da morte, daí não tinham medo de

3 González Rey (1999) define configuração subjetiva como uma “constituição subjetiva de relações e

atividades que caracterizam a vida social da pessoa. São categorias complexas, pluridimensionais, que representam a unidade dinâmica sobre a qual se definem os diferentes sentidos subjetivos dos eventos sociais vividos pelo homem (...) se constituem a nível psicológico, mas simultaneamente expressam a qualidade das diferentes atividades e relações sociais desenvolvidas pelo sujeito” (apud Joanneliese, 2003, p.56).

4

Para um maior aprofundamento sobre as fases que marcaram as atitudes humanas perante a morte, ler a tese de doutorado de Regina Corbucci, p.90-106.

morrer, não procuravam a morte, mas também não fugiam dela. Apesar do sofrimento, não havia exaltações e revoltas.

Na segunda, a morte de si próprio, em uso do século XIII até o século XVII, o homem passa a exercer a sua individualidade enquanto morto, e isso vai gerar um fator social, em que a origem socioeconômica determinava o tipo de funeral que o defunto iria receber, marcando diferença entre os funerais dos pobres e dos ricos, mas continuava a ter um sentimento de familiaridade com a morte.

Na terceira fase, a morte do outro, que vigorou do século XVIII até o século XIX, o medo da morte desvia-se de si para o outro, torna-se dramática e os rituais são marcados por grandes comoções. As relações dos familiares com o moribundo passam a ser mais afetivas e o luto exagerado mostra como a morte passa a ser difícil de aceitar.

Enfim, a quarta fase, a morte interditada, iníco do século XX, é a fase da ocultação da morte, as atitudes estão vinculadas a urbanização crescente e industrialização da época, a morte é vista como algo feio e desagradável e o morrer passa a ser indesejável, portanto deveriam ser escondidos e isolados das famílias, passando o moribundo a ser tratado nos hospitais.

Na nossa sociedade atual, as atitudes diante do morrer e da morte tornam-se, cada vez mais distantes, a morte incomoda e desafia a onipotência humana. A medicalização é uma maneira de afastar a morte e prolongar a vida. De acordo com Brêtas et all, “Nenhum outro evento vital é capaz de suscitar nos seres humanos, mais pensamentos dirigidos pela emoção e reações emocionais que ela, seja no indivíduo que está morrendo, seja naqueles à sua volta” (2006, p.478) 5.

Brêtas, Oliveira e Yamaguti (2006), ao realizarem uma pesquisa6 acerca do assunto morrer e morte, categorizaram algumas atitudes diante do tema, através das seguintes falas:

“Nunca estamos preparados para enfrentar a morte, é importante expressarmos tudo o que sentimos e dizer o que sentimos pelo outro”.

5 Lunardi Filho WD. Sulzbach RC. Nunes AC. Lunardi VL. Percepções e condutas dos profissionais de

enfermagem frente ao processo de morte e morrer. Texto Contexto Enferm. 2001:10 (3) :60-81.

6

Pesquisa feita com estudantes de primeiro ano do curso de graduação em Enfermagem da UNIFESP, 2006.

“Sinto muito a morte dos outros. Tenho dificuldade em lidar com o assunto”. “Quanto mais velho a morte é mais aceitável”.

“É um acontecimento inevitável”.

“É difícil lidar com a separação e a perda”.

“O tempo é a melhor forma de se conformar e começar a pensar em momentos bons”. “Os que ficam sofrem mais do que os que vão, a maioria não lida muito bem com a morte, com a dor da saudade, com o inconformismo. Poucos percebem a naturalidade desse processo”.

“Até que ponto a Universidade prepara o profissional para lidar com a morte?” (p.480)

Essas citações suscitam as dificuldades internas que as pessoas sentem em lidar com o morrer e a morte. Mesmo profissionais que lidam de forma mais constante com o processo de morrer e a morte, como é o caso dos enfermeiros, relatam que a proximidade com a morte de um paciente, pode despertar sentimentos como “impotência e culpa” (BRÊTAS et all, 2006, p.481).

Essa dificuldade dos profissionais não só da saúde, como também da educação e outros setores está ligada, dentre outros fatores, à falta de discussão desse tema nas Universidades, como formadoras de profissionais, devendo criar espaços para uma sensibilização e reflexão sobre o assunto morrer e morte, possibilitando uma nova mudança de atitudes em relação ao fato. Atitude que perceba o sujeito em suas particularidades e em diversas circunstâncias de vida, não se limitando a uma relação linear, como professor-aluno, médico-paciente, e sim ampliando essas relações para um contexto maior de significados.

Ultimamente, fala-se muito numa “Universidade para o amanhã”, buscando uma evolução transdisciplinar na Universidade, na qual a sua finalidade é a compreensão do mundo atual, e um dos imperativos é a unidade do conhecimento. Um aprendizado que deve começar desde a infância e continuar por toda a vida, pois uma “atitude transcultural, transreligiosa, transpolítica e transnacional, permitirá, então, aprofundar mais a própria cultura, defender melhor os interesses nacionais, respeitar mais as próprias

convicções religiosas e políticas” (Nicolescu et all, p.5) 7. E por que não dizer também, possibilitar uma melhor visão sobre os assuntos psicológicos da nossa vida.

Para Nicolescu (1999), a educação transdisciplinar deve ser permanente e efetiva, não restringindo-se apenas no âmbito escolar, mas a todos os lugares em que vivemos e para toda a vida. O autor aponta quatro pilares de sustentação para um novo tipo de educação, fundamentados pelo Relatório Delors, elaborado pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, ligada à Unesco e presidida por Jaques Delors8. Os pilares mencionados são:

1. Aprender a conhecer – exprime o saber diferenciar o que é real do que é ilusório, como também estabelecer pontes entre os diferentes saberes e suas significações na nossa vida diária.

2. Aprender a fazer – significa fazer algo novo, criativo. Abrir um leque de possibilidades para as próprias potencialidades criativas do ser humano.

3. Aprender a conviver – designa o respeito às normas que regulamentam as relações sociais que compõem um grupo, e para que elas sejam respeitadas devem ser validadas pela experiência interior de cada um.

4. Aprender a ser – denota aprender a nos conhecer, descobrir os nossos condicionamentos, harmonias e desarmonias entre nossa vida individual e social, para a descoberta das nossas convicções.

Cunha (2003) faz uma reflexão sobre esses quatro pontos abordados e afirma que a educação integral do homem, baseada na trans-relação que serve como ponto aos pilares acima, é algo a ser buscada pelo homem numa verdadeira interação entre corpo, inteligência, sensibilidade, arte, esporte, ciência, aprendizagens transpolítica, transnacional, transreligiosa e transcultural.

Com relação a uma educação voltada para o morrer e a morte, que prefere-se utilizar, uma educação para a vida, Bessa (1984) defende que:

7 Projeto CIRET-UNESCO, 1997. 8

DELORS, Jacques (org.). Educação: um tesouro a descobrir – Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. 10ed. São Paulo:Cortez, Brasília, DF: MEC: UNESCO, 2006

“uma educação (desde criança) para o morrer se impõe a fim de aliviar o homem de seu medo e o apavoramento diante da morte. Este deve preparar-se para o processo tanático do morrer e da morte (sua e dos outros). Isso paradoxalmente, para que viva melhor, curtindo a existência no saborear de cada dia, na realidade do hoje, na concretude do aqui e agora, sem sentimento de perda do ontem ou a desesperança do amanhã. Enfim, que o homem se concilie com a morte que nele vive permanentemente” (p.16).

Pensar em atitudes transdisciplinares diante do morrer e da morte não só é entender a relevância desse fato para o homem, como também reconhecer a complexidade do assunto. A morte não é apenas um fato distante, alheio e improvável para nós, mas é uma ocorrência profundamente humana, sofrida e concreta.

O termo Transdisciplinaridade foi adotado em 1970 por Piaget, num colóquio em Nice, que foi usado para designar “para além das disciplinas” (BRITO, 2005, p.1). Segundo Nicolescu (1996) a transdisciplinaridade diz respeito “ao que se encontra entre as disciplinas, através das disciplinas e para além de toda a disciplina” (apud BRITO, 2005, p.1). Daí, o termo transdisciplinaridade não significa a negação às disciplinas, e sim um olhar que vai através e além delas, permitindo uma nova visão da realidade. Dessa forma, o que seria uma atitude transdisciplinar?

Para Santos (2005) o termo pode ser novo, mas a atitude transdisciplinar acompanha o homem desde a sua origem. Como o homem é produto da natureza biofísica e cósmica, essa mesma natureza que sempre se comportou de forma transdisciplinar, faz com que o homem traga na sua estrutura esse modo de se inserir e evoluir no ambiente social.

A atitude transdisciplinar, assim como a prática e a pesquisa transdisciplinares defendidas por Nicolescu (2001), fundamentam-se em três pontos (apud CUNHA, 2003, p.4) :

1. Rigor – que é um aprofundamento do rigor científico uma vez que leva em consideração a comunicação efetiva entre os seres, valorizando “a procura do lugar certo em mim e no outro” (aspas da autora).

2. Abertura – que contempla o constante nascimento/morte do desconhecido, do inesperado e do imprevisível.

3. Tolerância – que admite a existência de idéias e verdades de caráter oposicionista à transdisciplinaridade.

Nesse sentido, Santos (cit.), confirma que a tolerância e a abertura são imprescindíveis no diálogo entre os diferentes saberes, diferentes culturas, diferentes teorias e diferentes modos individuais de ser, pois a vida só adquire sentido quando contextualizada, por meio de todos os saberes acumulados, aceitando o direito de todo ser humano, qualquer que seja a sua religião, sexo, cultura e raça, para que se possa conviver e contribuir, respeitando e sendo respeitado pelas diferenças individuais e grupais.

Atitude transdisciplinar implica em reconhecer a existência de diferentes níveis de realidade, regida por diferentes lógicas, é uma disposição a manter uma direção constante na travessia dos diferentes níveis de Realidade (social) e dos diferentes níveis de percepção (individual), diante de qualquer complexidade de situação ou dos acasos da vida (NICOLESCU et al, 2000). Afetividade e efetividade, atributos da atitude transdisciplinar, garantem a nossa competência de ação no mundo e na vida coletiva, enquanto povo, nação e humanidade (ALIATTI e BELTRÃO, 2005).

De acordo com Catalão (2005) “a atitude transdisciplinar demanda um olhar sem viseiras e uma escuta sensível capaz de fazer emergir a natureza encoberta do corpo que sente” (p.6). Ter um olhar aberto e uma escuta “sensível” diante dos processos de morrer e morte é dar significado e relevância a momentos decisivos da vida do outro e da nossa. É mostrar que ser humano é fazer a diferença na vida do outro, é entender que:

“O homem não acaba em seu passado, nem com ele, mas, ao invés, este se adentra em seu porvir; ele vive também em suas obras, de seus amores, na memória dos que o amam. E até por seu futurível, isto é, naquilo que planejou com convicção e que não pôde realizar” (EVALDO, 1984, p.18).

Possuir uma escuta sensível exige do professor um aprendizado novo, nada fácil, mas essencial nos dias atuais. Barbier (2004) afirma que conceber uma escuta sensível constitui a plena consciência do momento atual, seja em um gesto, seja em uma atividade diária, requer um distanciamento da teoria e conceitualização, no entanto exige uma representação imaginária sobre o mundo, como também um desejo de realizar algo. Dessa forma, a escuta atinge um estado de máxima atenção para o que está sendo exposto.

Falar de uma escuta sensível diante do morrer e da morte na educação, significa uma mudança de postura dos educadores, uma atitude madura e aberta aos novos conhecimentos. A aceitação na complementaridade dos conhecimentos, fora do seu campo de domínio e a busca e criação de novas maneiras de agir, respeitando as diferenças em sua totalidade, ou seja, cultura, tradição e religião, reconhecendo e buscando a harmonia entre os diferentes níveis de realidade e de percepção, regido por diferentes lógicas.

Ao escutar o aluno, com seus medos, indagações sobre o morrer e a morte, o professor vai além da disciplinaridade, liberando o aluno a romper com a dicotomia entre o cognitivo e o afetivo. Refletir sobre a realidade vivida dos alunos, valoriza-se cada um, em particular, e possibilita um diálogo aberto e plural das necessidades que esses alunos apresentam.

Repensar uma mudança educacional que se valorize uma atitude transdisciplinar diante do morrer e da morte deve ter como fundamental essa valorização da escuta sensível do professor aos desejos dos alunos, os quais aprenderão a conviver com as fatalidades da vida, a conviver melhor com o outro, a respeitar a interioridade sua e do próximo, respondendo ao chamado da sua subjetividade, por meio da afetividade, a intuição e a espiritualidade.

Na parte a seguir, aborda-se o tema luto, pois da mesma forma das atitudes diante do morrer e da morte, o luto foi sendo encarado de diversas maneiras no decorrer da história. Atualmente, em geral, os enlutados vivenciam a dor da perda sozinhos, já que os conhecidos preferem se afastar do acontecimento da morte, recalcando a dor da perda ao invés de manifestá-la. Para Mannoni (1995), o luto, da forma que é concebido nos dias atuais, não é mais, somente, uma homenagem aos que se foram, mas sim uma maneira de proteção aos que ficam, confrontando-se com a morte dos seus.