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6.4 Poder Constituinte Originário

6.4.4 Exercício do Poder Constituinte Originário

6.4.4.2 Ato de revolução

Outra forma de exercício do Poder Constituinte se dá por meio de um ato de revolução, que causa um processo de mudanças radicais na sociedade e em sua estrutura política. Como será demonstrado, há dois tipos de revolução: a criadora, responsável por romper com o ordenamento jurídico vigente, instituindo uma nova ordem, e a restauradora, que busca o restabelecimento da ordem jurídica justa872.

Poderia até se afirmar que o Poder Constituinte é revolucionário em suas raízes históricas, pois se manifesta num momento pré-jurídico, quando da elaboração da primeira Constituição, ou num momento especial de aglutinação e civismo do povo de determinado Estado873.

Contudo, a experiência indica que existiria um Poder Constituinte Revolucionário, que, prescindido do tema de sua legitimidade, possui obviamente o caráter de Poder Constituinte, porque atua profundamente na estrutura dos órgãos do Poder ou nas relações entre o poder e a sociedade874.

Constata-se, destarte, que na maioria das vezes, a revolução é confundida com o exercício do Poder Constituinte875, pois, logicamente, depois de uma revolução é que se modifica a sociedade e se lhe confere uma nova Constituição. Trata-se, na verdade, de um veículo para a atuação do Poder Constituinte876, mas nem sempre o exercício desse poder precisa se alcançar pelo árduo caminho da revolução877.

872 BONIFÁCIO, Artur Cortez. Limitações Materiais ao Poder Constituinte Originário. Revista de Direito

Constitucional e Internacional. Ano 11 – n. 42 – janeiro-março de 2003, p. 128.

873 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. Fundamentos de uma Dogmática

Constitucional Transformadora. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 110-111.

874 VANOSSI, Jorge Reinaldo. Uma visão atualizada do Poder Constituinte. Entrevista concedida a Celso Ribeiro

Bastos e Gastão Alves de Toledo. Trad. de Susana Maria Pereira dos Santos de Nóbrega. Revista de Direito

Constitucional e Ciência Política. Ano I – n. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 13.

875 “A revolução é a fonte formal de convocação de uma Assembléia Constituinte.” (LOPES, Maurício

Antonio Ribeiro. Poder Constituinte Reformador. Limites e possibilidades da revisão constitucional brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 64)

876 “Através desta, o grupo constituinte consegue impor ou restaurar a idéia de Direito, derrubando a antiga

Constituição.” (BARRUFINI, José Carlos Toseti. Revolução e Poder Constituinte. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 51)

877 “A revolução é fato social que envolve a ruptura e a cessação do ordenamento jurídico vigente e poderá

ocorrer também pelo exercício do Poder Reformador, quando este extravaze (sic) as limitações dos seus poderes ou competência.” (GARCIA, Maria. Exercício do Poder Constituinte Derivado. Cadernos de Direito

Do ponto de vista filosófico, a revolução é uma mudança súbita na continuidade de um processo. Do ponto de vista sociológico, ela é a adequação das condições básicas da sociedade que implica numa rápida mudança, de forma súbita e violenta. E, do ponto de vista político, é uma modificação violenta dos fundamentos jurídicos do Estado878.

A revolução pode ser compreendida como um fenômeno, porém, é preciso diferenciar o fenômeno social do fenômeno jurídico.

Como fenômeno social, ela apresenta-se como resultado de uma evolução natural da sociedade, razão pela qual é reconhecida como uma realidade específica, irredutível e fundamental para a natureza dessa sociedade879. Como fenômeno jurídico, acarreta a modificação ou a substituição da Constituição vigente, sem observar os processos legítimos para essa atuação880.

Burdeau compreende a revolução como a criação de uma nova ordem jurídica, transformando o fato em direito881.

De acordo com Hans Kelsen, a revolução ocorre quando a ordem jurídica vigente é modificada (anulada ou substituída) de forma ilegítima, ou seja, não segue os procedimentos previstos na ordem vigente para sua modificação, instituindo, assim, uma nova ordem jurídica882. Numa revolução é possível identificar claramente a importância da norma fundamental, imprescindível à validação da nova ordem jurídica imposta pelos revolucionários883.

Destaca-se que a imposição da Constituição por meio da revolução, que “quebra” o ordenamento jurídico anterior, não pode ser considerada legítima do ponto de vista de um fenômeno jurídico, pois modifica o texto constitucional sem observar as condições para tanto.

878 TEIXEIRA, José Horácio Meireles. Curso de Direito Constitucional. Texto Revisto e Atualizado por Maria

Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 225.

879 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Poder Constituinte Reformador. Limites e possibilidades da revisão

constitucional brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 65.

880 Ibidem, p. 67.

881 BURDEAU, Georges. Manuel de Droit Constitutionnel et Institution Politiques. Paris: Librairie Générale de

droit et de jurisprudence, 1984, p. 87.

882 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. por Luís Carlos Borges. 4. ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2005, p. 171.

Trata-se, na verdade, do exercício do poder para a modificação da sua titularidade884.

O povo possui o direito de acesso à revolução, ou seja, o direito de mudar a organização constitucional estabelecida, que deve repousar na vontade de todos885. Esse direito é exercido tal como o de resistência, na condição de autorizar seu Poder Constituinte a agir para exprimir sua vontade de mudar a organização política, insurgindo- se contra a Constituição vigente para elaborar uma nova886.

Trata-se de um direito objetivo, na medida em que todo poder emana do povo, que, na qualidade de poder supremo e inalienável, tem o direito de rever e modificar sua Constituição manifestando sua vontade, ainda que pela via revolucionária. É também um direito subjetivo, como faculdade concedida ao povo para postular a desejada mudança da sua Constituição. E é, ainda, um direito de caráter ético e moral, que deve ser exercido com a finalidade de alcançar o bem comum e defender os direitos fundamentais da pessoa humana887.

Portanto, o povo deve ter assegurado seu direito de recorrer à revolução, pois não pode ser obrigado a permanecer sob um ordenamento como o qual discorda. O reconhecimento desse direito é defendido com base na teoria jusnaturalista, pois a sociedade usufrui da faculdade de modificar sua organização jurídica. De acordo com a tese jusnaturalista, a revolução deve atender a três condições: (i) somente pode ser desencadeada quando não houver outros recursos; (ii) deve ser um meio econômico para se alcançar a finalidade; e (iii) será admitida apenas quando tiver chances de trazer êxito e sucesso e não apenas de causar destruição888.

884 “Importa dizer, a despeito de abalizados pensamentos, é que a revolução realmente marca o rompimento

de um regime político e o início de outro, com ou sem o uso da violência. É inevitável, nesse processo, um Governo de transição, digamos, um Governo de fato, e, uma conseqüente Assembléia Nacional Constituinte, que reflita os valores do movimento revolucionário, pena de se incorrer em ilegitimidade e, via de extensão, paulatina derrocada da nova ordem.” (BONIFÁCIO, Artur Cortez. Limitações Materiais ao Poder Constituinte Originário. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Ano 11 – n. 42 – janeiro-março de 2003, p. 129)

885 BARRUFINI, José Carlos Toseti. Revolução e Poder Constituinte. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p.

51.

886 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.

26.

887 TEIXEIRA, José Horácio Meireles. Curso de Direito Constitucional. Texto Revisto e Atualizado por Maria

Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 240-241.

888 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Poder Constituinte. 3. ed. rev. amp. São Paulo: Saraiva, 1999, p.

A revolução pode passar por três fases. A primeira é caracterizada pela identificação de certa moderação, onde havendo quem pleiteie a modificação política e social de determinada sociedade sem, contudo, destruir a estrutura política e social. A segunda pode ser identificada pela radicalização, onde os moderados acabam sendo superados pelos radicais, que visam à ruptura na sociedade pela revolução. A terceira fase é identificada por três alternativas: a contrarevolução, com a reconquista do poder por aqueles contra quem se reagia; o prosseguimento da revolução, estendendo-se o terror estendido à sociedade; e a tomada do poder pelas forças armadas da própria sociedade889.

O resultado da revolução eficaz será a instituição de uma nova Constituição, que impõe outra ordem jurídica, a ser respeitada pela sociedade. É por esse motivo que as revoluções são consideradas obra de Poder Constituinte, que cria e elabora a Constituição por meio de um ato revolucionário. Ao ser aceita e respeitada pela sociedade, ela se investe de eficácia perante o novo ordenamento jurídico.

“O Ato Constituinte representa a formalização do triunfo do grupo revolucionário. É o ato pelo qual se efetiva e se formaliza o ato de Constituição. O Ato Constituinte tem a pretensão de fundar uma ordem ou uma nova ordem jurídica; importa,sempre, na renovação do fundamento da ordem jurídica. O Ato Constituinte contém simplesmente uma pretensão, isto é, esse ato não se aperfeiçoa enquanto não se implementa uma condição, que é uma condição resolutiva.”890

Como se observa, para que a revolução identifique-se com a figura do Poder Constituinte, fruto de um ato revolucionário, é indispensável que sua obra – a Constituição – seja dotada de eficácia perante a sociedade. Caso contrário, ela revelará um perfil social desalinhado do mundo jurídico. Portanto, a normatividade promulgada pela revolução legitima-se pela eficácia, com aceitação do Ato Constituinte pelo povo, o qual se transforma em Constituição891.

889 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Poder Constituinte. 3. ed. rev. amp. São Paulo: Saraiva, 1999, p.

41.

890 BARRUFINI, José Carlos Toseti. Revolução e Poder Constituinte. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p.

67.

Pode-se afirmar que a elaboração da nova Constituição por meio do movimento revolucionário é um ato legítimo, por representar a vontade de um determinado grupo revolucionário aceita pelos governados, porém é ilegal, por estar em desacordo com o Direito Positivo vigente derrubado. Por esse motivo, após a tomada do poder, os revolucionários legalizam seu ato por meio da edição da nova Constituição, exercendo, assim, a atividade do Poder Constituinte892 através do ato revolucionário.

O exercício do Poder Constituinte Revolucionário é comparado à prática do Poder Constituinte Originário, pelo fato de não se ajustar à legalidade pré-existente. Contudo, enquanto o Poder Constituinte Originário não reconhecer tal legalidade, porque ela nunca existiu, o Poder Constituinte Revolucionário não a acolhe porque a derrubou e a destruiu, atuando em instância de fato ou revolucionária, golpista, exercida apenas em caráter provisório e emergencial893.

De qualquer forma, é de se ver que os efeitos da revolução atingem a identidade do Estado, que é substituído pelo Estado novo, mas sem perder sua substância, já que se mantém no mesmo território e atua sobre a mesma sociedade. Alcançam, ainda, a Constituição então vigente, que é destruída para a elaboração de uma nova, que modificará a forma de Estado, a forma de Governo e os seus órgãos de Estado. No tocante à legislação ordinária, a revolução poderá revogá-la expressamente ou somente naquilo que com ela for incompatível implicitamente. Com relação aos direitos fundamentais, impõem-se a obrigação de respeito aos direitos adquiridos, exceto se contrários às finalidades da revolução e ao interesse público. Por fim, o Estado, no que tange às suas obrigações internacionais, continuará respondendo por elas, tendo em vista que, na prática, sua personalidade jurídica não desapareceu internacionalmente894.