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2 O SISTEMA LITERÁRIO POLONÊS DURANTE O REGIME COMUNISTA

2.2 A LITERATURA EM FUNÇÃO DA IDEOLOGIA

2.2.3 Autocrítica e censura

A crítica literária e a autocrítica dos literatos, como também as intervenções da censura constituem os instrumentos de controle da vida literária na Polônia.

A autocrítica é uma prática que passou da vida política para a literatura. Segundo a doutrina marxista, a crítica e a autocrítica servem para o controle da disciplina do partido comunista. A autocrítica entendia-se como um meio de crescimento ideológico e uma maneira de passar para um grau mais alto da consciência política. Na literatura, a crítica literária faz o papel de acusador, apontando os erros e os desvios do escritor. Reconhecendo os erros apontados pela crítica, o escritor apresenta uma autocrítica, abnegando os desvios nas páginas das revistas literárias. O ato da autocrítica, no conceito marxista, não é uma expressão de humilhação e de degradação do escritor, mas um meio para garantir o crescimento do autor e da sua obra. O exercício da autocrítica obrigava o autor à prática da autocensura e, deste modo, garantia um caráter único a toda produção literária.

A censura na Polônia segue o modelo soviético97. Já no ano de 1944, na cidade

de Lublin, assessorando os comunistas poloneses, os censores soviéticos elaboram o projeto da censura. No mês de janeiro de 1945 é criado o Bureau Central de Controle da Imprensa98, que em 1946 muda o nome para a Agência Central de Controle de

Imprensa, da Publicação e do Espetáculo99 (ACCIPE). A nova Agência tem como tarefa

a supervisão da imprensa, das publicações e dos espetáculos, como também o controle sobre a divulgação de todo tipo de obras publicadas por meio da tipografia, da imagem, ou da palavra viva. No exercício dessa tarefa, a Agência tem como finalidade a prevenção contra “a destruição do regime político, a transgressão das relações internacionais do Estado polonês, a revelação dos segredos de estado, a violação da lei e dos bons costumes, a indução ao erro da opinião pública por meio da divulgação das informações incompatíveis com a realidade” (NAŁĘCZ, 1994, p. 28). A formulação genérica das competências da Agência significou, na prática, que cada manifestação cultural podia ser impedida pela censura, por motivo qualquer. No exercício da censura preventiva na RPP, todo o texto, toda a informação, todo o espetáculo, todo o filme, todo o anúncio no jornal precisava obter, antes de publicado, a autorização de um funcionário da censura. No decorrer do ano de 1949 aguça-se o curso da censura. Na reunião com seus colegas, diretores do órgão censor responsáveis pela Agência no nível territorial, o chefe da ACCIPE recomenda a ingerência nos textos, especificando os possíveis erros ideológicos:

Camaradas e colegas! Nossa repartição faz o papel do órgão controlador da palavra escrita e falada na República Popular da Polônia, num estado onde continua acirrada a luta de classes, a luta contra a reação, contra as agências internacionais aliadas à reação, contra sua ofensiva ideológica, contra o cosmopolitismo, contra a idealização do ocidente e da chamada cultura, arte, ciência, civilização e democracia ocidentais. As diversas formas da subversão ideológica, organizada pelos agentes reacionários, pagos pelo imperialismo americano e pela hierarquia vaticana, acontecem às nossas vistas, nas nossas máquinas de imprensa e no nosso papel. (NAŁĘCZ, 1994, p. 83).

97 O fato se percebe tanto na organização da Agência - a censura pertence aos órgãos de segurança do

estado, como também na rapidez com que foi introduzida. Na URSS, Lênin introduz a censura já no terceiro dia após a vitória da revolução bolchevista (PIPES, 1994, p. 412).

98 Em polonês: Centralne Biuro Kontroli Prasy.

Desde o ano de 1950, até a queda do bloco soviético, a censura tutela de modo especial toda a informação a respeito da URSS. A existência, no texto, de temas politicamente polêmicos elimina qualquer publicação corrente. O mesmo motivo leva à edição da lista dos livros que devem ser retirados das bibliotecas100. Desta maneira,

censurando as publicações atuais e retirando os textos anteriores de circulação, a censura configura um sistema literário livre de qualquer informação indesejada. Nos ditames da ideologia do socrealismo, o censor admite até a publicação de uma obra fraca, se o autor dela mostrar-se um escritor progressivo, engajado, útil e combativo. Entretanto, a censura proíbe a edição das obras sem valor ideológico, que possam tirar a atenção do leitor da problemática da construção do socialismo101.

Com suas intervenções, riscando e muitas vezes acrescentando itens ao texto, ou influenciando o autor para fazer as correções, o censor torna-se o co-autor do texto, numa tarefa de criação coletiva. A atuação da censura no contexto do regime totalitário - onde os agentes de um único partido político controlam a mídia, os estabelecimentos educacionais e culturais e a distribuição dos meios técnicos para a produção cultural - visa à formação de cidadãos condicionados ideologicamente e preparados para o exercício da autocensura. O hábito de pensar junto com o censor, que formula as idéias de maneira aceitável para o regime e evita tudo o que poderia ser removido pela censura, faz do escritor e do tradutor um co-censor.

A exigência da suspensão da censura forma um motivo constante das reivindicações em todos os movimentos operários e em todas as contestações dos intelectuais poloneses desde o ano de 1956, até a queda do comunismo na Polônia no ano de 1989. O acordo de Gdańsk, assinado entre o sindicato Solidarność e o governo comunista, levantou também a questão da censura. A terceira exigência dos sindicalistas102 retoma a questão da liberdade de opinião e de expressão asseguradas

na Constituição, e “proíbe represálias contra as publicações independentes e garante a livre circulação de publicações abertas aos representantes de todas as denominações religiosas” (CASTILHO; WAACK, 1982, p. 193).

100 Acesso aos livros da, assim chamada, ‘lista dos proibidos’ foi somente possível com a recomendação

de alto funcionário do POUP.

101 Por este motivo foi proibida a reedição do romance de Lucy Maud Montgomery, Anne of Green Gables, em polonês: Ania z zielonego wzgórza, editado na Polônia desde 1912.

No combate contra a ACCIPE, no decorrer do ano de 1981, o Solidarność conseguiu negociar o direito de leitor ser informado sobre as ingerências da censura operadas num texto103. A censura trabalhou a serviço da construção do socialismo

polonês até o fim do sistema comunista. A nova lei, criada no dia 11 de abril de 1990, regulamentando a imprensa na Polônia, aboliu definitivamente a censura prévia no país (PAWLICKI, 2001, p. 14).

A atuação da censura está ligada ao fenômeno de variação textual. Devido à relação entre política e literatura no sistema literário polonês, a variação textual expressa o cuidado do regime, em ajustar a expressão ideológica da obra. É difícil indicar até que ponto as modificações expressam a iniciativa do próprio autor e até que ponto elas são estimuladas pelas instituições do sistema. Fora das ingerências da censura, as edições modificadas, na maioria das vezes, foram influenciadas pelos textos da crítica literária a respeito da primeira edição da obra. A censura institucionalizada não foi a única formação com a tarefa de censurar. Existia uma variedade de conselhos nos ministérios, nas redações dos jornais e nas editoras, com a atribuição de qualificar e verificar os textos, para que a produção cultural não contrariasse a ideologia comunista. Esse fato reforça a constatação de que, no sistema literário polonês, o texto nunca é uma obra particular do autor, mas constitui uma tarefa coletiva formada pelas ingerências da crítica literária, da censura oficial e da criptocensura dos redatores e dos editores.