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Autonomia dogmática não corresponde a autonomia do mecanismo processual para a sua destruição

A PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO DECORRENTE DA VIOLAÇÃO DAS FORMALIDADES RELATIVAS À CONSTITUIÇÃO COMO ARGUIDO

8. A falsidade do auto de constituição e interrogatório como arguido

3.2. Autonomia dogmática não corresponde a autonomia do mecanismo processual para a sua destruição

As situações em que o legislador autonomizou o mecanismo processual relativo à violação das proibições de produção e de valoração de prova são, todavia, proporcionalmente, muito raras. A independência terminológica é, como acabamos de ver, apenas esporádica. Em muitos casos, indiferente à confusão que essa estranha opção normativa provoca, o legislador continua a utilizar o termo nulidade para significar uma verdadeira proibição de produção ou de valoração de prova. O sentido do vocábulo não corresponde aqui ao seu significado corrente ou natural, querendo dizer simbolicamente que essas provas não têm qualquer validade processual.

É o que acontece, desde logo, na própria Constituição da República Portuguesa, que prescreveu que «são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da

15 A conjugação deste regime geral com o regime especial, consagrado no art. 6.º da Lei 5/2002, de 11 de

janeiro, continua envolto em polémicas, demonstrando que aquele (e outros, como, por exemplo, a prova digital) regime especial deveria estar incluído no CPP. É ai que deve constar o regime de recolha de som e imagem.

16 O mesmo acontece na legislação processual avulsa, v.g. no artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de

setembro (apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante) que remete para o regime da apreensão de correspondência constante do CPP, assim incorporado (por remissão) aquela proibição de valoração expressa.

17 A introdução de novos casos de autonomização técnica de proibições de produção ou de valoração de prova não

parece obedecer a nenhum propósito amadurecido e coerente do legislador, demonstrando ser apenas fruto do mero acaso: os artigos 92.º, n.º 5 e 156.º, n.º 6, do CPP foram introduzidos pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, numa altura em que a discussão dogmática sobre as proibições de prova já estava bem consolidada), mas, mesmo assim, não tiveram reflexos sobre outras constelações, onde o termo «nulidade» era incorreto, nem impediram a sua utilização posterior (v.g. na lei n.º 109/2009, de 15 de setembro).

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A proibição de valoração decorrente da violação das formalidades relativas à constituição como arguido

integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações» (art. 32.º, n.º 8) no intuito de inviabilizar qualquer possibilidade prática de aproveitamento18. A Lei Fundamental não define a

solução processual concreta (nulidade civil, processual, etc.), prescrevendo apenas a impossibilidade de utilizar aquelas provas e de assim demonstrar um determinado facto pretérito19.

Depois no Código de Processo Penal dizendo no artigo 126.º, n.º 1 (que corresponde ao art. 32.º, n.º 8, 1ª parte, da CRP) que são nulos não podendo ser utilizadas as provas aí referidas e no artigo 126.º, n.º 3 (clonado do art. 32.º, n.º 8, 2ª parte da CRP) que são igualmente nulos, não podendo ser utilizados as provas ai, também, referidas. Em ambos os casos, o que está em causa são verdadeiras proibições de produção ou de valoração de prova, como resulta da própria epígrafe do artigo «métodos proibidos de prova», da circunstância de só poderem ser utilizadas para a perseguição criminal do seu autor (art. 126.º, n.º 4, do CPP) e, ainda, do artigo 449.º, n.º 1, alª e), do Código de Processo Penal. Estas provas são proibidas (não podendo ser utilizadas): não consubstanciam uma qualquer manifestação das nulidades, não estado sujeitas aos artigos 118.º e ss. do Código de Processo Penal. Neste cenário, apesar da linguagem utilizada, a consequência processual para a violação daqueles preceitos é uma proibição de produção/valoração e não – como quer Paulo Pinto de Albuquerque – uma qualquer nulidade processual. As declarações assim obtidas não podem ser usadas, seja durante o inquérito, seja depois em sede de julgamento. Esta consequência – impossibilidade de utilizar aquelas declarações – é unitária, não havendo aqui uma qualquer gradação de mais ou de menos, consoante esteja em causa a primeira ou a segundo parte do artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa ou o número um ou o número três do artigo 126.º do Código de Processo Penal. A consequência (inutilizabilidade) é a mesma em ambos as hipóteses, podendo apenas dizer-se que num caso a proibição é absoluta (não admite qualquer derrogação) e noutros é relativa (só se verifica quando as provas forem abusivas)20.

Fazer derivar desta diferença óbvia um regime processual diverso é manifestamente abusivo. O instituto é o mesmo; o que varia é o seu caráter absoluto ou relativo.

4. Critérios distintivos entre as proibições de produção ou de valoração e as nulidades

18 Esta norma parece mergulhar as suas raízes no art. 39.º, n.º 5, do Projeto de Constituição do Partido Popular

Democrático, segundo o qual «serão proibidas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção grave, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, na correspondência, nas comunicações telefónicas ou no domicílio». Curiosamente também o P rojeto de Constituição do Partido Socialista dizia que «são proibidas as escutas e gravações que violem a vida íntima, às quais é recusado qualquer valor probatório». Neste sentido, cfr. MORÃO, Helena, O efeito à distância…, p. 584.

19 MESQUITA, Paulo Dá, A prova do crime …, p. 269, nota 65; MOURA, José Souto de, Inexistência e nulidades

absolutas em processo penal, AA.VV. Textos, Lisboa, CEJ (1990-1), p. 126; ANDRADE, Manuel da Costa, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra, Coimbra Editora (1992), p. 313.

20 Alguma jurisprudência e, também alguma doutrina, continuam a separar (mesmo após as alterações introduzidas

no art. 126.º, n.º 3, do CPP, pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto) entre a nulidade do número um e a nulidade do número três, dizendo que a primeira é absoluta e a segunda é relativa. No mesmo sentido, com outras indicações, cfr. CORREIA, João Conde, A distinção ..., p. 176 ou MORÃO, Helena, O efeito à distância..., p. 594/5.

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Se o legislador utiliza o vocábulo nulidade para falar de proibições de produção ou de valoração de prova e o regime processual destes dois mecanismos destrutivos dos efeitos precários do ato processual penal inválido é diferente (art. 118.º, n.º 3, do CPP) importa então encontrar um critério distintivo seguro entre estas duas realidades, por forma a tratar como nulidade aquilo que é nulidade e como proibição de produção ou de valoração de prova aquilo também verdadeiramente o é.

O primeiro critério poderia ser meramente linguístico ou terminológico21: quando o

legislador fala de nulidade estaria a falar de nulidade e quando fala de proibição de produção ou de valoração de prova estaria a falar de proibição de produção ou de valoração de prova. A mera consideração do vocábulo escolhido pelo legislador seria suficiente para separar entre estas duas realidades teóricas. Só que, como já referimos, numa escolha técnica muito criticável, o legislador utiliza, muitas vezes, o vocábulo nulidade para cominar verdadeiras proibições de produção ou de valoração de prova. É, como acabamos de ver22, o

caso paradigmático do artigo 126.º do Código de Processo Penal que sob a epígrafe «métodos proibidos de prova», interdita uma série de provas, mas aparentemente comina essa proibição com uma mera nulidade («são nulas, não podendo ser utilizadas» [art. 126.º, n.º 1] e «são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas» [art. 126.º, n.º 3]), assim gerando um espaço fértil para a discussão e para a polémica. Em vez de considerar a verdadeira natureza do instituto (agora confessada no art. 449.º, n.º 1, alª e], do CPP) e de retirar daí as devidas consequências práticas, alguma doutrina, presa à letra da lei, continua a defender que se trata de uma verdadeira nulidade.23 Aliás, a própria existência de dois mecanismos

processuais só faz sentido se as consequências forem diversas. Um legislador razoável não multiplicaria, desnecessariamente, os mecanismos de destruição dos actos processuais penais inválidos.

Outro critério teórico que poderia ser utilizado para fazer a separação entre estes dois mecanismos seria considerar que os vícios formais originam uma mera nulidade processual penal e que, em contrapartida, os vícios materiais desencadeiam uma proibição de produção ou de valoração da prova. Também aí seria, afinal, muito fácil distinguir, entre uma coisa e outra. A violação da mera forma ou da substância daria lugar a consequências jurídico-processuais diferentes. No entanto, a verdade é que o próprio legislador ignorou esta possibilidade, dizendo que a violação das formalidades inerentes à constituição como arguido origina a proibição de valoração das declarações assim obtidas (arts. 58.º, n.º 5 e 59.º, n.º 3, do CPP)24, dessa forma inviabilizando também a possibilidade

de utilizar este padrão distintivo.

21 CORREIA, João Conde, A distinção ..., p. 185 e ss. 22 Supra 3.2.

23 É o caso paradigmático de ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário … p. 326, que continua a confundir o

caráter absoluto ou relativo da proibição com o caráter absoluto ou relativo do mecanismo de destruição destes atos. E não se diga que esta tese viola a jurisprudência do TEDH. Por um lado, o TEDH limitou-se a constatar que naqueles casos, seguindo a terminologia nacional, as provas não seriam abusivas. Por outro lado porque, estabelecendo a CEDH um padrão mínimo, nada impede que o Estado português estabeleça um grau de tutela dos direitos fundamentais mais ambiciosos: o que ele não pode fazer é criar um regime menor.

24 CORREIA, João Conde, A distinção ..., p. 187.

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A proibição de valoração decorrente da violação das formalidades relativas à constituição como arguido

Um terceiro critério de separação resultaria da disponibilidade ou da indisponibilidade do interesse tutelado pela norma jurídica violada. Nas nulidades estariam em causa interesses disponíveis e nas proibições de produção ou de valoração da prova interesses indisponíveis. Mais uma vez, teoricamente, uma bússola segura para estabelecer a necessária separação das águas. Só que, a verdade é que existem nulidades disponíveis (art. 120.º, do CPP) e indisponíveis (art. 119.º do CPP) e proibições de prova indisponíveis (tortura) e disponíveis (art. 34.º, n.º 2, da CRP): em certos casos o interessado pode consentir na diligência, legitimando a intervenção estadual25.

Nenhum destes critérios é, portanto, fiável para estabelecer a necessária linha de fronteira entre uma coisa e outra. Todos eles têm limitações. A resposta, decorrente das opções técnicas do legislador, não é assim tão fácil.

A solução só poderá, por isso, encontrar-se no direito constitucional. A generalidade das proibições de produção e de valoração de prova tem a sua génese nas opções constitucionais sobre o processo penal. Há provas proibidas (art. 32.º, n.º 8, primeira parte, da CRP) e

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