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Autopoiese: fechamento operacional, código e programa

No documento Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater (páginas 152-156)

3 DIREITO E PROCESSO JUDICIAL NA SOCIEDADE COMPLEXA

3.2 Direito como sistema autopoiético 1 O direito diferenciado pela função

3.2.2 Autopoiese: fechamento operacional, código e programa

Como visto, a diferenciação interna do sistema jurídico permite ao direito atingir níveis de complexidade compatíveis com a diferenciação funcional. Direito e política coevoluem e conquistam sua autonomia na sociedade por meio da construção de espaços de independência e interdependência mediados pela Constituição. Em vez de direito natural/direito positivo, fala-se em direito constitucional/direito ordinário, o que implica dizer que todo o direito é fruto de decisões, mesmo o direito que fundamenta o direito. A atividade legislativa já não se limita a registrar e compilar um direito dado externamente (pela natureza ou pela razão), mas constitui fundamento de validade jurídica e o direito varia não só em função dos casos, mas também em função do procedimento legislativo que origina os programas de decisão. Essa situação expõe o fato de que o sistema jurídico na modernidade é fundamentalmente alterável e válido em função disso.455

Contudo, como bem aponta Marcelo Neves, isso não significa adotar uma postura decisionista em relação ao direito, isto é, de que o direito é fruto do arbítrio político.456 O que a positividade enfatiza na teoria luhmaniana é que o problema da decidibilidade do direito não está sujeito a determinações externas, mas apenas ao sentido produzido pelo próprio direito. Significa que mesmo uma decisão legislativa que venha a “a alterar

454 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad

Iberoamericana, 2002.

455 A positividade não se limita à competência legislativa, mas ao fato de que “o próprio estabelecimento do direito, ou seja, a

decisão, tornou-se base do direito. E isso só pode ocorrer na medida em que a própria seletividade desse estabelecimento é aproveitada para a estabilização do direito. O direito positivo vige não porque normas superiores permitem, mas porque sua

seletividade preenche a função do estabelecimento de congruência”. (LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito

v.I.Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p.237).

456 NEVES,Marcelo.Entre Themis e Leviatã - uma relação difícil: O Estado democrático de direito a partir e além de

radicalmente o direito, receberá o seu significado normativo do próprio sistema jurídico”,457

isto é, será objeto de decisão judicial que interpretará seu sentido de acordo com a dogmática propriamente jurídica, precedentes judiciais, outras leis etc.

A diferença entre código e programa, como mecanismo central do fechamento operacional que garante a autopoiese do sistema responde à pergunta sobre como o direito pode manter sua autonomia (diferenciação). A estabilização da positividade é possível porque a diferenciação entre a decisão que, no centro do sistema (tribunais), aplica o código lícito/ilícito e os programas de decisão, que são dados pela periferia do sistema (normas jurídicas), permite ao sistema jurídico produzir observações de si mesmo. Essas observações servem de referência para suas próprias operações (uma dogmática jurídica) e observações de si mesmo que produzem autodescrições (uma teoria do direito).

Com observações de segundo grau, o direito define seu próprio sentido, controlando o código lícito/ilícito que lhe permite especificar e universalizar seu operar. Em última redução, toda operação do sistema jurídico (contratos, leis, normas infralegais, decisões judiciais, precedentes judiciais, jurisprudência, dogmática jurídica etc.) realiza uma reprodução do código lícito/ilícito (especificação). Justamente por isso, toda comunicação na sociedade que diga respeito ao código lícito/ilícito é uma comunicação do sistema jurídico (universalização).

O código (lícito/ilícito) garante que não haja comunicação jurídica fora do sistema jurídico. A partir do momento em que dada comunicação faz referência ao código e pode ser reduzida a ele, ela já faz parte do sistema. É por isso que se afirma que a diferenciação do direito como um sistema funcional especificado na sociedade ocorre nas bases do código binário lícito/ilícito que orienta as operações do sistema. É o código binário que possibilita a manutenção do contínuo operar do sistema (sua autopoiese) no sentido da clausura circular das conexões que reproduzem suas operações (clausura operativa). O código sempre remete a ele mesmo, de um valor ao outro do próprio código, e é esse operar

457 NEVES,Marcelo.Entre Themis e Leviatã - uma relação difícil: O Estado democrático de direito a partir e além de

Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

codificado que mantém o sistema diferenciado no ambiente da sociedade.458 O código, em outras palavras, garante a clausura operativa do sistema, condição da sua autopoiese.

O direito da Modernidade, tendo passado pelo processo de diferenciação interna e externa, enquanto sistema parcial da sociedade Moderna é autopoiético. Suas operações são codificadas e só engatam operações com comunicações que se orientem pelo mesmo código. O seu sentido não pode, portanto, ser pensado como fruto de princípios, valores ou de um sentimento de justiça: ele é fruto do operar contingente do direito e é, portanto, incerto. Tentativas de se calcular ou determinar o sentido jurídico (isto é, obter ou produzir certeza) por paralelismos econômicos (análise de custo-benefício de infrações legais) ou políticos (submissão de decisões judiciais à opinião pública) tendem ao insucesso ou a produzir mais incerteza.

Essa clausura operativa, no entanto, não implica isolamento ou indiferença ao ambiente. A clausura permite ao sistema, por meio da autorreferência, atribuir sentido a eventos percebidos no ambiente (heterorreferência),459 porém, esse sentido não é importado do ambiente como uma informação pronta, e sim, construído internamente e decorre, portanto, do operar do código binário. Em outras palavras, a abertura cognitiva permite ao sistema jurídico tomar conhecimento de fatos (comunicações), eventos (comunicações) e ações (comunicações) em outros sistemas, mas o fechamento operacional permite que tudo seja demarcado pelo sistema com a distinção lícito/ilícito, conforme os programas do sistema jurídico.460

Essa capacidade de percepção do exterior é fundamental para que o direito possa se adaptar a um ambiente (sociedade) de crescente complexidade. Mas, na medida em

458 LUHMANN,Niklas. Coding of the legal system. In: (Org.) TEUBNER, Gunther; FEBBRAJO, Alberto. State, law, and

economy as autopoietic systems. Milano: Giuffrè, 1992, p.145-146.

459 Trata-se, aliás, de uma condição necessária. A clausura operativa permite que o sistema jurídico não confunda o sentido

específico das suas operações (que não podem enlaçar operações de outros sistemas no ambiente) com o sentido de operações no seu ambiente, vale dizer, a clausura impede que o sistema jurídico se confunda com o seu ambiente. A possibilidade de distinguir suas próprias operações das operações no ambiente é condição lógica fundamental para que o sistema possa usar as operações que ele percebe no ambiente como referência para alterar o sentido das suas próprias operações, isto é, para aprender. Por isso, o fechamento operacional é condição da abertura cognitiva ao ambiente. Por isso, o direito moderno

constitui um sistema normativamente fechado – não importa normatividade do ambiente – mas cognitivamente aberto – pode

alterar internamente o sentido da normatividade usando o ambiente como referência.

460 LUHMANN,Niklas. Coding of the legal system. In: (Org.) TEUBNER, Gunther; FEBBRAJO, Alberto. State, law, and

que constrói internamente o sentido do que ocorre no ambiente, não há necessidades nem impossibilidades, não há determinações externas a priori, há apenas contingência.461

Isso significa que o sistema se faz imprevisível, incalculável a si mesmo e aos demais sistemas do ambiente social. Toda informação externa é reelaborada internamente. Toda informação interna (da memória de operações passadas) é reelaborada de acordo com o estado presente do sistema. Nem mesmo a fixação normativa de sentido jurídico pode reprimir essa incerteza – ao contrário, como se verá, do que pretende o movimento de reforma do processo. Leis, contratos, precedentes judiciais, súmulas, vinculantes ou não, etc. são comunicações que têm lugar na periferia do sistema jurídico e que funcionam como programas para aplicação do código.

Programas são elementos do sistema (comunicação jurídica) que funcionam como regras que determinam se uma específica alocação do valor do código (no caso, lícito/ilícito) é correta para o sistema. Os programas definem o que é corretamente lícito e corretamente ilícito, mas os programas não estão garantidos por uma programação externa. Vale dizer, os programas também estão sujeitos ao código e a outros programas (uma lei pode ser considerada inconstitucional) e, por isso, programa nenhum (Constituição, leis, contratos, súmulas vinculantes, dogmática jurídica etc.) pode estabelecer certeza e calculabilidade quanto ao operar do direito. Os próprios programas podem ser alterados.462

O sistema jurídico organiza essa sua variabilidade com ajuda da validade, “símbolo circulante e em contínua mudança de conteúdo”.463 Ao passo em que os programas

indicam o valor do código que uma operação do sistema deverá aplicar, a validade é um símbolo operacional que indica o resultado dessa aplicação. Ela não tem, portanto, fundamento em princípios, em uma norma fundamental (Kelsen) ou de reconhecimento (Hart), mas sim no tempo: a validade se fundamenta em uma distinção temporal: ora as normas são válidas, ora inválidas. Assim a circulação do símbolo da validade garante a variabilidade do sistema e essa variabilidade é que define a identidade do sistema.464

461 LUHMANN,Niklas. Coding of the legal system. In: (Org.) TEUBNER, Gunther; FEBBRAJO, Alberto. State, law, and

economy as autopoietic systems. Milano: Giuffrè, 1992.

462 LUHMANN,Niklas. Coding of the legal system. In: (Org.) TEUBNER, Gunther; FEBBRAJO, Alberto. State, law, and

economy as autopoietic systems. Milano: Giuffrè, 1992, p.174.

463 CAMPILONGO,Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002, p.77.

464 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad

A diferença entre código e programa se articula com a diferença entre clausura operativa e abertura cognitiva. No nível dos programas há uma grande abertura cognitiva a estímulos do abiente, que são reelaborados e processados como informação na forma de projeções de expectativas normativas. No nível da decisão, em que o código é aplicado, a abertura cognitiva é sensivelmente menor, mas a aplicação do código, em si, é orientada pelos programas. Articulam-se assim autorreferência e heterorreferência, mantendo sempre em andamento o operar autopoiético.

No documento Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater (páginas 152-156)