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Legislação, Constituição e positividade

No documento Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater (páginas 145-150)

3 DIREITO E PROCESSO JUDICIAL NA SOCIEDADE COMPLEXA

3.1.2 Legislação, Constituição e positividade

Outro aspecto importante para se compreender a diferenciação do direito na sociedade, a par da diferenciação dos Tribunais enquanto organizações formais (na verdade, o outro lado dessa diferenciação), diz respeito à estabilização da positividade no campo legislativo e ao advento das constituições modernas. O uso da legislação já existia desde a Antiguidade, principalmente em Roma, onde um centro político diferenciado institucionaliza procedimentos decisórios e desenvolve interesse na “administração unificada do direito – daí resultando resumos do direito e autênticas fixações por escrito de questões jurídicas precárias ou controvertidas, novas publicações e codificações ou reformas legislativas”.431 No entanto, a

utilização da legislação na Antiguidade não tinha o objetivo de criar novo direito nem se pautava por um procedimento diferenciado.

Na Antiguidade, a legislação não contava com procedimentos e competências próprias. A competência para julgar e legislar e os respectivos procedimentos eram os mesmos. E o seu papel era o de confirmar ou sacralizar o direito já existente. O direito era posto, mas a validade do seu sentido normativo dependia da aferição de sua compatibilidade com o direito verdadeiro já existente. Mesmo quando, como no caso grego, a experiência jurídica conhece e lida com a positivação do direito como um assunto humano (e não divino),432 o conteúdo permanece sempre sujeito a esse exame de compatibilidade.433

Por isso, o direito legislado da Antiguidade não é um direito que consegue se impor como válido e vigente pelo seu simples encaminhamento processual (promulgação): a juridicidade da legislação segue dependente do “tempo, do costume, da publicidade atingível, ou uma questão de adaptabilidade, ou do poder político, ou da pressão de crises e capacidade

431 LUHMANN,Niklas. Sociologia do Direito v.I.Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p.

228.

432 Nesse sentido: LOPES,José Reinaldo Lima. O direito na história – lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2002,

p.39-40.

433 A tragédia de Antígona ilustra com essa dependência. A Lei das XII tábuas, por exemplo, põe o direito, mas não cria um

direito positivamente válido, isto é, válido porque escolhido diante de várias outras opções. As XII tábuas sacralizam um direito antigo e válido por si (e não porque posto). O direito segue concebido como dado pelo passado. Como bem explica Luhmann, para “o jurista romano, a ideia da positividade das leis populares fundamentais representaria um pensamento inconcebível até a época do principado; as instituições jurídicas, de fato, representavam as instituições que no âmbito da

sociedade não podiam ser postas em dúvida”. (LUHMANN,Niklas. Differenziazione del diritto, contributi ala sociologia e

de persuasão circunstancial”.434 Mesmo na experiência romana, em que se desenvolve uma

teoria das fontes do direito, aceita-se a legislação, mas o direito, como um todo, segue vigendo com base “na implementação sagrada ou na tradição nunca constituindo um direito positivo construído e modificável a qualquer momento”. 435A legislação então captava o direito, mas

não propriamente o criava.436 Os atos legislativos, por sua vez, seguem concebidos como eventos singulares pertencentes ao passado e que por isso se tornavam irrevogáveis.437

Essa concepção de que há um direito dado e imutável e que delimita o espaço do direito que pode ser alterado permanece ao longo da Idade Média. Agora, a normatividade do direito depende da lógica dos estratos, isto é, do status formal da pessoa que ostenta a iurisdictio. Existem leis, mas nem todo direito pode ser estatuído e modificado pela legislação. O direito dado pela tradição, imutável e antigo, baliza a esfera à disposição do direito positivo. Como explica Bloch,

por toda a parte uma mesma autoridade decidia, finalmente, sobre a sorte reservada ao patrimônio jurídico da idade anterior, o costume, única fonte viva do direito de então e que os príncipes, quando legislavam, apenas pretendiam interpretar [...] o sistema jurídico da primeira idade feudal baseava-se, portanto, na ideia de que o que foi tem, por isso mesmo, o direito de ser.438

As divergências, como visto, eram corrigidas pelo centro de certeza metafísico e sua moral generalizante, de modo que, como explica Bloch “Hincmar de Reims declarava que o rei não deverá julgar segundo o costume se este se revelar mais cruel do que a ‘rectidão

434 LUHMANN,Niklas. Sociologia do Direito v.I.Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,

p.229.

435 LUHMANN,Niklas. Sociologia do Direito v.I.Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p.

230.

436 LUHMANN,Niklas. Sociologia do Direito v.I.Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

437 LUHMANN,Niklas. Differenziazione del diritto, contributi ala sociologia e ala teoria del diritto. Tradução de

Raffaelle de Giorgi. Bologna: Il Mulino, 1990, p.115.

438 BLOCH,Marc.A sociedade feudal. Coimbra: Edições 70, 2009, p.141-143. Um fator importante a se considerar é o fato

de que, nas sociedades feudais, o uso do remanescente direito romano escrito (e suas versões bárbaras) decai sensivelmente, restando um direito costumeiro. Segundo Bloch, “Acabou-se a legislação: em França, a última ‘capitular’, aliás pouco original, é de 884; na Alemanha a própria fonte parece ter secado após o desmembramento do Império, depois de Luís, o Pio. Só alguns príncipes territoriais – um duque da Normandia, um duque da Baviera – promulgam aqui e além uma ou outra medida de alcance um pouco geral [...] Durante o século X, as leis bárbaras, tal como as prescrições carolíngias, cessam pouco a pouco de ser transcritas ou mencionadas, a não ser por fugazes alusões”. Apesar de certa continuidade de direito escrito no direito canônico, em relação ao direito profano isso não ocorre, pois este não era nem sequer objeto de ensino. “a organização jurídica não continha advogados e todos os chefes eram juízes. O que equivale a dizer que a maioria dos juízes não sabia ler, sem dúvida, uma má condição para a conservação de um direito escrito”. No entanto, na Inglaterra e na Itália, a situação era diversa, com manutenção e estudo do direito escrito, tanto romano, quanto canônico quanto bárbaro. (p.140-141).

cristã’”439 e “as leis podiam ser pensadas como partes integrantes da ordem jurídica, cujo

caráter jurídico não era proveniente delas mesmas, mas de bases extrajurídicas”.440

Com a Modernidade e a diferenciação da política, a prevalência do direito antigo sobre o novo – que bloqueava o sentido prático da distinção legislação/jurisdição, já que implica proibição de modificar o direito antigo –, vai aos poucos cedendo e não resiste à evolução. Progressivamente, a unidade da iurisdictio é desfeita. O papel do soberano é separado do papel do legislador. É o papel de legislador (que pode ou não ser delegado pelo soberano) que permite mudar o direito.441

O Estado constitucional (e o constitucionalismo) é uma conquista evolutiva fundamental para que a separação entre política e direito se consolide e reforce uma distinção entre legislação e jurisdição que dê sentido à positividade do direito. Apenas com o desenvolvimento de um direito público, viabilizado pela mediação da relação entre sistema político e jurídico por uma Constituição, é que se pode colocar problemas suficientes à fixação do direito, “tornando-se necessária no século XIX a instauração de processos legislativos através do aparelho de Estado (e não só enquanto um ‘direito’ utilizado pelas monarquias quando fosse necessário)”. 442 Quando o procedimento legislativo se torna uma atividade

estatal rotineira é que o sistema jurídico como um todo pode se orientar no sentido da positividade.

O passo que levará à completa diferenciação funcional do direito na sociedade dependerá da delimitação da separação e vinculação entre política e direito, formulada como Estado de Direito e garantida por uma Constituição.

439 BLOCH,Marc.A sociedade feudal. Coimbra: Edições 70, 2009, p.143 e ss., abordando costumes que, à luz do direito

divino – retidão cristã – eram considerados maus, especialmente os novos.

440 LUHMANN,Niklas. Sociologia do Direito v.I.Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,

p.229. E, por mais que pudesse haver mudança na legislação, inclusive do direito divino, como na Índia, “em todos os casos estabeleciam-se limites estritos para a variabilidade legitimável de normas jurídicas. O limiar de alteração da estrutura jurídica assim, era muito distanciado. Em princípio, a vigência do direito era vista como invariante, ou pelo menos, como baseada em normas de vigência invariante”. Essa noção permanece ao longo da Idade Média, em que o direito canônico viabiliza a integração do direito romano, “sem que tivesse que ser inventado e desenvolvido a partir de suas próprias instituições”, o que aliviou os riscos da inovação e possibilitou a concepção da legislação como forma de constituição de direito (criação de direito novo) legitimada pela tradição do direito antigo. (p.230-231).

441 LUHMANN,Niklas. Sociologia do Direito v.I.Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,

p.233.

442 LUHMANN,Niklas. Sociologia do Direito v.I.Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

Com o fim da antiga ordem, o Estado não mais estabelece vínculos com os estratos, que perdem relevância como estrutura capaz de organizar a comunicação, mas sim com o indivíduo, na figura jurídica do cidadão. Essa concepção leva a uma progressiva construção da imposição de limites ao poder. O direito de resistência ao tirano é estatuído em um texto jurídico de direito positivo, a Constituição, e o sistema jurídico passa a descrever pelos seus próprios critérios as balizas em que opera o poder no sistema político.443

Por meio da Constituição, o sistema jurídico descreve o Estado submetido ao direito e a isso chama de Estado de Direito. De outro lado, o sistema político descreve o sistema jurídico como instrumento para perseguir objetivos políticos e chama a isso de Estado de Direito, ou seja, utiliza o sistema jurídico (heterorreferência) para elaborar uma autodescrição.444 A Constituição permite que política e direito ganhem autonomia recíproca e consolidem seus processos de diferenciação funcional. Daí porque Luhmann diz ser a Constituição uma aquisição evolutiva: trata-se de um improvável resultado da evolução que, uma vez estabilizado, abre o caminho para novos ganhos evolutivos.445

As constituições modernas surgem de uma combinação do pensamento racionalista/codificador com as exigências iluministas decorrentes da diferenciação funcional.446 Ao se estabilizarem como estrutura de referência comum ao direito e à política (acoplamento estrutural), as constituições viabilizam a independência recíproca dos dois sistemas. Seu caráter improvável não está, como poderia parecer, na regulamentação jurídica do poder (que já se via, por exemplo, na Magna Carta inglesa)447 ou na fundamentação jurídica do Estado (que já se via nas teorias contratualistas), o improvável da Constituição é a sua autofundação: a própria Constituição se apresenta como uma norma superior às demais

443 LUHMANN,Niklas. La constituizione come acquisizione evolutiva. In: Il Futuro della Constituizone. Torino: Einaudi,

1996, p.87.

444 LUHMANN,Niklas. La constituizione come acquisizione evolutiva. In: Il Futuro della Constituizone. Torino: Einaudi,

1996, p.84.

445 LUHMANN,Niklas. La constituizione come acquisizione evolutiva. In: Il Futuro della Constituizone. Torino: Einaudi,

1996.

446 TARELLO,Giovani.Storia della cultura giuridica moderna, storia dela cultura giuridica moderna – assolutismo e

codificazione del diritto. Bologna: Società Editrice il Mulino, 1976, p. 22-28.

447 Também aqui, aponta Peter Ackroyd, a Magna Carta (Great Charter), assim chamada pela sua extensão e não pela sua

importância; não era uma nova lei, nem mesmo um resumo de princípios legislativos. “Era essencialmente uma tentativa dos

barões de retornar ao estado de coisas anterior ao domínio dos reis angevinos”. (ACKROYD, Peter.The history of England.

normas, capaz de revogá-las, mas insuscetível de revogação por elas.448 Esse caráter da Constituição permite que ela fundamente a autodeterminação da política e do direito.

Para o direito, a Constituição possibilita a desvinculação da necessidade de uma referência externa, como a natureza, a tradição, as qualidades do soberano que promulga o direito ou as boas razões do direito já vigente, vale dizer, resolve juridicamente o problema da fundamentação do direito. A Constituição se apresenta como lei fundamental, da qual as demais leis extraem sua validade. Amparado na Constituição, o direito pode estabelecer a distinção entre lícito e ilícito a partir de referências exclusivamente jurídicas. A Constituição possibilita ao direito submeter as normas a um teste de validade sujeito apenas a critérios do próprio direito, o que permite o fechamento operacional do sentido jurídico. Assim, o direito consegue autodeterminar seu sentido e diferenciar-se. Para a política, a Constituição viabiliza a fundamentação jurídica da soberania, ocultando a arbitrariedade da fundação do poder político. A Constituição organiza juridicamente o sistema político na forma do Estado e toda a cadeia de poder pode ser legitimada a partir de si mesma.449

Contudo, o preço da autofundação do sentido do direito é a perda da referência de um centro de certeza. A Constituição é um documento jurídico e, mesmo quando expressa o apoio de elementos extrajurídicos ou metafísicos, o faz sob a égide do sentido jurídico. Legislação e positividade se orientam pelos marcos da Constituição. E, apesar das cláusulas que impõem procedimentos mais rígidos para a mudança da Constituição, ainda se trata de direito posto por decisão. Nem natureza, nem razão, nem religião, nem política podem amparar o sentido jurídico.

Constituição, positividade e tribunais diferenciados permitem ao sistema jurídico fazer uso de suas próprias referências (diferenças) para controlar o sentido especificamente jurídico e ganhar autonomia. Esse direito não precisa de apoios externos. Não se valida na tradição do costume nem na superioridade de uma moral religiosa. O direito se autovalida e isso elimina os antigos anteparos de certeza do direito. Diferenciado pela função, o direito opera por meio da diferença de código (que traduz a especificação do sentido jurídico

448 TARELLO,Giovani.Storia della cultura giuridica moderna, storia dela cultura giuridica moderna – assolutismo e

codificazione del diritto. Bologna: Società Editrice il Mulino, 1976, p.84.

449 TARELLO,Giovani.Storia della cultura giuridica moderna, storia dela cultura giuridica moderna – assolutismo e

codificazione del diritto. Bologna: Società Editrice il Mulino, 1976, p.91-109. Por isso, Luhmann afirma que “a Constituição consegue soluções políticas para o problema da autorreferência do direito e soluções jurídicas para o problema da autorreferência política”. (p.110).

lícito/ilícito) e programa (que orienta a aplicação do código e decorre dela), como se passa a analisar.

3.2 Direito como sistema autopoiético

No documento Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater (páginas 145-150)