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O fim dos centros de certeza no limiar da Modernidade

No documento Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater (páginas 90-97)

2 CERTEZA E SOCIEDADE

2.1 Formas de diferenciação social e os centros de certeza

2.1.3 O fim dos centros de certeza no limiar da Modernidade

A sociedade na qual primeiro surgem as condições para a diferenciação funcional da sociedade e advento da Modernidade é a sociedade estratificada do final da Idade Média europeia.253 Essa sociedade organiza todas as possibilidades do sentido social a partir da visão dos estratos, isto é, da diferença entre os estratos. Os membros pertencentes aos estratos superiores têm um modo de viver e de conceber o mundo que condiciona o sentido. A nobreza é proprietária de terras e seu modo de vida não permite que se envolvam em atividades comerciais, industriais ou o trabalho manual de qualquer tipo. A economia segue, essencialmente, fundada em bens de raiz. A distribuição do poder político – e sua expressão mais evidente, o poder militar – se dá de acordo com as relações de vassalagem, orientadas pelos títulos nobiliários (o mais nobre é suserano do menos nobre).254 O ensino e as ciências se desenvolvem junto a instituições religiosas e a educação é voltada à formação religiosa, à qual, em regra, só os nobres têm acesso.255 Há um direito próprio e uma jurisdição própria para nobres, clérigos e povo.256 Os nobres são proprietários de terras e organizam a produção, têm seu próprio séquito militar, ocupam os cargos de maior prestígio no clero e/ou na administração. É a visão do estrato superior, mais próximo de Deus e da moral generalizante,

253 LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Rafaelle. Teoria della società. 11.ed. Milano: FrancoAngeli, 2003, p.302.

254 Para uma visão geral: ARRUDA,José Jobson.O sistema feudal. História integrada: da Idade Média ao nascimento do

mundo moderno. v. 2, São Paulo: Ática, 1996, p. 31-36.

255 Tratava-se do estudo do trivium (lógica – gramática – retórica) e do quadrivium (aritmética – música – geometria –

astronomia). Disciplinas resgatadas das artes liberais gregas e que não eram voltadas ao exercício de ofícios, mas à contemplação de Deus. Apenas no séc. XII, com as Universidades, que constroem sua própria independência política, essas disciplinas passam a ser vistas como preparatórias para os ensinos superiores de medicina, direito e teologia. Nesse sentido:

COSTA,Ricardo da. Las definiciones de las siete artes liberales y mecânicas em la obra de Ramón Llull. In: Revista Anales

del Seminario de Historia de la Filosofia, Madrid: Publicaciones Universidad Complutense de Madrid (UCM), v.23, 2006,

p. 131-164.

que orienta as questões políticas, jurídicas, religiosas, científicas, artísticas, educacionais, científicas etc.

É nesse contexto que se desenvolve a ideia segundo a qual, nessas sociedades, para ser proprietário de terras, é preciso ser nobre. A propriedade confere iurisdictio: o proprietário, nas suas terras, diz e aplica o direito. Por isso, a capacidade de ser proprietário precisa estar atrelada ao status e a propriedade já não se liga apenas ao domínio visível da terra. Ela é fixada juridicamente e, progressivamente, ganha contornos abstratos que permitem, a partir do séc. XIV, que seu sentido seja “redesenhado do domínio sobre as coisas para a disponibilidade”.257

Quando, a partir do séc. XV, por conta da peste, a mão de obra europeia se torna cada vez mais escassa, o conceito jurídico de propriedade permite aos proprietários arrendar suas terras a camponeses que não possuem a iurisdictio. Para tanto, passam a ser desenvolvidas formas ainda mais abstratas, como a distinção entre propriedade e posse, e que conduzem a uma distinção entre propriedade de bens e disponibilidade de bens.258 Para ser proprietário é preciso ser nobre, mas, para ter dinheiro disponível não é preciso ser nobre, nem basta ser proprietário. Aos poucos, forma-se uma economia baseada não mais em bens, mas em dinheiro. E o dinheiro não pode se vincular à estratificação. A economia monetária gradualmente se torna independente dos contextos dos estratos sociais e sustenta, assim, o surgimento de uma nova classe que reclamará por um poder independente dos estratos: a burguesia.259

Do mesmo modo, assim como na economia, outros âmbitos de sentido vão se diferenciando e oferecendo para a comunicação um sentido progressivamente independente da diferença dos estratos. Os principais meios de comunicação simbolicamente generalizados, como o poder, a verdade, o amor e o dinheiro passam a difundir um sentido específico para cada sistema (política, ciência, economia etc.). Com isso, não só o sentido ganha independência daquele antigo centro metafísico, como também, em vez de um único sistema (o estrato superior) monopolizar as possibilidades de sentido, cada sistema determina, com

257 LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.561.

258 LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007.

exclusividade, por critérios não intercambiáveis, o sentido específico das comunicações sobre poder, valor, verdade, direito etc. 260

Conforme explica a teoria dos sistemas, a diferenciação de cada sistema dependerá do avanço de um ambiente favorável que, aos poucos, permita, por exemplo, à ciência, adjudicar a exclusividade no uso da verdade como meio de comunicação. Trata-se de um processo que encontra seu contexto histórico nos acontecimentos que vão do séc. XIV ao início do séc. XVIII. Por isso, pode-se falar no limiar da Modernidade para designar esse período de transição, que indica o início da diferenciação de sistemas funcionais, quando a nova ordem já não pode ser interpretada a partir da velha estratificação. Nesse início de Modernidade observa-se que, em estreita relação com o processo de formação do chamado Estado Moderno, a diferenciação do sistema político e do sistema econômico põe em xeque a velha ordem de coisas.261

No que se refere à política, embora as sociedades pré-modernas sejam marcadas pelo surgimento e primado dos centros políticos (em oposição ao poder privado do

260 Assim, como coloca Luhmann, na diferenciação funcional, “funções específicas e seus meios de comunicação devem

concentrar-se em um sistema parcial com competência universal; é dizer, trata-se de uma combinação nova de universalismo

e especificação”. Ainda, segundo o autor, na medida em que esses âmbitos vão ganhando autonomia – vão diferenciando

sistemas – a sociedade estratificada busca esvaziar esse processo criando diferenças, papéis e respectiva semânticas. “Como a

unidade da sociedade está assegurada com a estratificação, pode-se aceitar no médium da verdade várias formas de verdade (por exemplo: a religiosa, a filosófica, a retórica); ou no médium do dinheiro, diferentes sistemas monetários para o comércio local e para o comércio com o estrangeiro, com distintos tipos de câmbio locais; ou no médium do poder, distintas ilhas de

formação de poder politicamente relevante: império, Igreja, cidades e Estados territoriais”. Mas na medida em que a

complexidade aumenta e, assim, as dificuldades de coordenação daí derivadas, cada sistema vai adjudicando o monopólio de

um meio de comunicação. (LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México:

Herder, 2007.)

261 É interessante anotar, com Luhmann, que embora as diferenciações de cada um dos âmbitos de sentido (econômico,

político, religioso etc.) não se suponham reciprocamente, a ordem em que sucedem não é puro acaso. Como explica Luhmann, já no final da Idade Média, há uma economia monetária e um mercado suficientemente independente da estratificação que escapam do controle político e organizam uma divisão internacional do trabalho. O destino político de certos territórios (como as colônias nas Américas) acaba sendo determinado pela economia e não pela política. Perde-se a unidade imperium/dominium que sustentava a iurisdictio, desvinculando-se o poder político do domínio da terra. Quanto à

política, também desde o final da Idade Média pode-se observar o surgimento de diferenciações territoriais, como a formação de novos reinos nas terras reconquistadas, que não são vinculadas à estratificação hierárquica e que vão diminuindo o valor da nobreza. Já no séc. XV, no rastro do conflito entre Imperador e Papa, a política vai ganhando também notável independência da religião. Questões religiosas, debatidas em concílios e querelas, são acompanhadas por enviados políticos que as tratam como um problema de conveniência e oportunidade políticas, ou seja, com autonomia de sentido, sem relação com o pós-vida ou problemas da salvação da alma. Também a ciência, a partir da impressão massificada de livros, no séc. XVI, vai ganhando espaços para a reflexão que a permitem se distanciar da religião e formular um conceito próprio de natureza, movido pela curiosidade e organizado a partir de critérios próprios (científicos), que nem a religião nem a política poderiam fornecer. Esse distanciamento viabiliza protestos por liberdade de investigação e leva a “conflitos espetaculares (Copérnico, Galileu)”. Será, ainda, o caso do direito, que vai sendo ativado para problemas decorrentes desse desenvolvimento. Diante da necessidade de formas jurídicas para garantir a tolerância religiosa, forma-se um direito público, voltado ao controle do próprio Estado e que, assim, vai tornando a produção do sentido jurídico independente tanto da religião quanto da política. Apenas quando “suficientes funções do sistema da sociedade estão cobertas, pode-se interpretar a nova ordem a partir de si mesma”, isto é,

como sociedade moderna. (LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México:

pater), não se pode falar ainda na noção de Estado. Os antigos centros políticos representavam a ordem de toda a sociedade, vale dizer, eles mesmos não eram independentes, seja da ordem religiosa, seja da estratificação. Esses centros não propiciavam um sentido autônomo para a política (por exemplo, para definir objetivos a serem perseguidos), e apenas se mantinham na medida em que realizavam uma ordem cosmológica superior, isto é, defendiam e preservavam a ordem (religiosa, familiar, econômica) existente.262

A dominação política também precisa se legitimar pela realização de uma ordem superior, sob pena de o rex ser considerado como tyrannus. O direito comum medieval – balizado pela doutrina cristã – reconhece que a dominação do tyrannus não é legítima, e garante um correspondente direito de resistência. O direito sustentava, assim, o primado da diferenciação estratificada, da qual o domínio político se via dependente. A dominação tirânica é considerada tanto ilegal quanto reprovável aos olhos de Deus263 e cabe à nobreza e ao clero o juízo de decidir sobre a legitimidade ou não da dominação e do exercício do direito de resistência.264

De outro lado, a vinculação da estratificação com a diferenciação de papéis permitia ao rei dispor do enobrecimento e da cessão de cargos tanto como meio para formar o seu aparato burocrático, como para ganhar controle político nos estratos superiores. Contudo, gradualmente, a nobreza passa a consistir mais de privilégios dependentes da política do que

262Como explica Luhmann, “o senhor é só momento de uma ordem fundamentada em uma cosmologia que – como natureza

ou como moral – impõe limites. O saber que se espera do senhor é, portanto, antes de mais nada, conhecimento da sua própria integridade virtuosa. Na terminologia latina que distingue entre rex e tirannus, só é senhor o senhor legítimo”. (LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p. 565-566).

263 A distinção de São Tomás de Aquino entre modos legítimos e ilegítimos de aquisição do poder (Comentários às Sentenças

de Pedro Lombardo – II, dist. XLIV, q. II, ad.) e a correspondente legitimidade da insurreição contra o governante injusto (Suma Teológica, q. XLII, art. 2). Disponível em: www.permanência.org.br. Em sentido análogo, a concepção de Bartolo da Sassoferrato. Para esse jurista ligado ao Sacro Império, reconhece-se o tirano como aquele que assassina os melhores homens da cidade, chegando a matar seus parentes mais próximos, impedindo os estudos e os sábios, proíbe reuniões, semea espiões entre a cidadania, empobrece os contribuintes, guerreira com vizinhos etc. O tirano, segundo Bartolo, pode ser legalmente responsabilizado diante das leis do Império e punido pelo Imperador ou pelos magistrados locais. (SASSOFERRATO,

Bartolo da. On the tyrant – treatise on city government c. 1330. Publicado no site Medieval Sourcebook, ligado à Fordham

University Center for Medieval Studies.Disponível em: www.fordham.edu/halsall/source/bartolus. Acesso em: 10 fev. 2014).

264 Pense-se, por exemplo, nas Revoluções Inglesas no século XVII (Puritana e Gloriosa) – o domínio de Jaime II é

considerado tirânico, o que legitima a resistência e a guerra civil que levam à restauração gloriosa e à ascensão de Guilherme III ao trono inglês. Do mesmo modo, na independência dos países baixos, em que seus nobres se unem contra o domínio tirânico do Duque de Alba e protestam por liberdade do domínio espanhol. Nesse sentido: LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Rafaelle. Teoria della società. 11.ed. Milano: FrancoAngeli, 2003, p.293. Ao problema da resistência, soma-se o antigo problema da rivalidade política (que muito tempo depois seria absorvido pelo sistema democrático como oposição política). A qualquer momento, o senhor (ainda que legítimo) pode ser substituído por alguém da mesma família e a manutenção do poder aparece como problema que se confunde com os problemas do Estado. Direito de resistência e rivalidade tendem a

colocar em posições antagônicas a nobreza e o poder político central. (LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad.

da condição de nascença.265 Em outras palavras, vai se formando um espaço para o sentido político que já não se vincula mais à visão de mundo dos estratos sociais. É construído um espaço político independente da nobreza, de suas terras, exército e riqueza. O resultado desse processo se formula na ideia de um Estado soberano, que “se caracteriza apenas pelos limites territoriais – mas esses absolutamente. Caem todas as demais limitações ainda que isso só queira dizer: se politizam de forma situacional e se integram no cálculo político da razão de Estado”. O novo princípio territorial acaba por transpor e encobrir a ordem estratificada, que cada vez mais se subordina e se torna dependente de um Estado.266

Outro sistema cuja diferenciação leva à ruptura da ordem estratificada é o sistema econômico. Com a monetarização, a economia rapidamente ganha independência tanto da política quanto da religião, ou seja, da ordem estratificada. A propriedade, que fundamenta o dominium, agora pode suplantar as fronteiras político-territoriais do reino. O comércio, por sua vez, não se limita a qualquer fronteira e a dinâmica da economia monetária é desenvolvida alheia ao controle político e religioso.267 Além disso, o ethos da nobreza impõe um consumo de prestígio, de artigos de luxo. Quando novas tecnologias financeiras e dinheiro excedente no mercado viabilizam financiamentos por bancos, instituições religiosas e pelo Estado, o resultado leva a nobreza a uma crise de endividamento,268 colocando-a, no processo de diferenciação da economia, no lado dos devedores.269

265 Em reação, aponta Luhmann, afirma-se uma distinção entre a nobreza de origem e a nobreza adquirida politicamente e

renuncia-se à ideia de que a virtude ética – aquela virtude própria da nobreza – encontre expressão no agir político. Em

termos semânticos, isso leva à concepção de que as razões políticas (razões de Estado) são independentes dos valores éticos

da virtude da nobreza. (LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México:

Herder, 2007, p.567-571).

266 LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.571.

267 Como coloca Luhmann, “a economia de doação e das fundações da Idade Média alta se estanca – apesar de todos os

esforços para expressar agora em dinheiro os motivos da salvação das almas”. (LUHMANN,Niklas. La sociedad de la

sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.573).

268 Sobre o caso português, aponta Nuno Gonçalo Monteiro que parte significativa do endividamento das casas da nobreza, no

séc. XVIII, é herdada dos séculos passados, pouco se sabendo sobre elas. No entanto, segundo o autor, sabe-se que, já na primeira metade do séc. XVIII, as hipotecas de rendimentos de bens tornam-se cada vez mais frequentes e um número significativo de casas de nobres foi objeto de administração judicial para fixar alimentos aos seus membros e reservar aos credores apenas o remanescente. Ainda segundo o autor, dentre os motivos para a contração dos empréstimos estão, frequentemente, despesas com casamento e serviços prestados à coroa (militar, diplomático e até nos tribunais).

(MONTEIRO,Nuno Gonçalo.O endividamento aristocrático (1750-1832): alguns aspectos. In: Análise social v. XXVII

(116-117), 1992, p.263-283). Sobre o endividamento e a administração judicial de casas de nobres: JAGO,Charles. The

influence of debt on the relations between Crown and aristocracy in seventeenth century Castile. In: The Economic History

Review, 26: 218-236. Doi 10.111/j.1468-0289.1973.tb01935.x. Disponível em: www.onlinelibrary.wiley.com. Acesso em: 10

ago.2013.

269 LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.574.

Segundo o autor, a produção e o comércio de bens já não se orientam à demanda do estrato superior para guerras, cruzadas, exploração marítima etc., mas para o consumo. A produção se orienta à demanda de consumo do mercado, ou seja, a

Mais importante do que a crescente dependência da nobreza em relação ao dinheiro é a independência do dinheiro em relação à nobreza e à ordem estratificada. O valor das transações é, agora, medido pelo mercado, conceito que passa “a designar a própria lógica daquelas transações que não dependem de nenhuma das outras características sociais”.270

A esse processo, correspondem formas jurídicas, como a permissão para cobrança de juros. O trabalho deixa de ser consequência do pecado original e passa a ser condição e produto de processos econômicos: a distinção esforço/ócio dá lugar à distinção trabalho/desemprego. A economia vai assim se constituindo em um âmbito em que só a comunicação com sentido econômico (pagamentos) pode enlaçar com outras comunicações com sentido econômico. O dinheiro gasto deve ser ganho novamente para manter a capacidade de pagamento. Quando os rendimentos da terra cultivada de modo tradicional já podem ser calculados de modo a garantir rentabilidade: “a economia então permite uma única alternativa à produção rentável e ao comércio, i.e., trabalhar por remuneração. O que não entra em consideração para a nobreza”.271 A diferenciação da economia mantém a nobreza à sua

margem. A velha ordem de coisas, isto é, o estrato superior e sua visão de mundo centrada nele e na sua moral generalizante, não pode resistir ao processo de diferenciação do sistema político e do sistema econômico. 272

de bens – a economia se abre à população. Todos podem assumir os papéis de fornecedor e de consumidor – dependendo do

poder de compra – e, assim, ascender e participar do mercado independentemente de estirpe ou virtude. O influxo de metais e materiais vindos das Américas a partir do séc. XVI faz com que a captação de recursos pela economia já não dependa da riqueza dos estratos superiores. Novas formas de ganhar dinheiro com juros, concessão de empréstimos e investimentos não são processadas teoricamente de imediato, mas também reformulam a economia. Há agora todo um mercado para o investimento em meios de produção, cuja rentabilidade se basea em um cálculo puramente econômico. Mesmo sendo os proprietários supremos das coisas, a nobreza, os senhores feudais, a realeza e o Papa já não podem controlar uma economia

fundada em cálculos de rentabilidade. (LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres

Nafarrate. México: Herder, 2007, p.575-576).

270 LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007.

271 LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.576.

272 Nesse cenário, explica Luhmann, tem um papel especial no processo de diferenciação funcional da sociedade o mercado

de livros. A impressão massificada de livros e sua comercialização catalisam uma tecnologia fundamental, que é a de saber ler. Difundida a alfabetização, restrições temáticas tendem a ser inócuas, pois “quem sabe ler a Bíblia sabe ler também panfletos da polêmica religiosa, diários, novelas”. Como o controle sobre os produtos que serão impressos e comercializados

se orienta pela economia – lei do mercado – outros âmbitos (religião, moral de estratos superiores) perdem o controle sobre a

comunicação. Os mais afetados são a religião e a política, que tentam sem sucesso controlar o processo. (LUHMANN,Niklas.

La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.578). A diferenciação da

economia também retira do âmbito da família o controle da produção de bens – para satisfação de necessidades ou comércio – o que leva a uma separação entre vida familiar e vida no mercado de trabalho. A vida pública se desloca para o mercado, modificando assim os costumes, que já não seguem e não se acomodam no padrão estabelecido pela visão de mundo da nobreza. Ainda, tem-se que o trabalho individual remunerado facilita a aceitação do casamento tardio, da solteirice ou mesmo da ideia de que cada geração deve, principalmente em termos econômicos, formar uma nova unidade familiar. Como consequência, é favorecida a simpatia pessoal para o casamento. O princípio do casamento por afinidade põe em xeque a endogamia, que é base da estratificação. (p.579-580).

No documento Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater (páginas 90-97)