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Diferenciação dos tribunais

No documento Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater (páginas 139-145)

3 DIREITO E PROCESSO JUDICIAL NA SOCIEDADE COMPLEXA

3.1.1 Diferenciação dos tribunais

Conforme dissemos, o processo de diferenciação de um sistema parcial da sociedade pressupõe um processo simultâneo de diferenciação interna desse sistema.408 No caso do sistema jurídico, essa diferença interna para o sentido jurídico tem origem na distinção entre legislação e jurisdição. A distinção entre legislação e jurisdição permite que o direito estabeleça parâmetros exclusivamente jurídicos de autocorreção, que se aplicam reciprocamente na criação e na aplicação do direito. Só quando já está internamente diferenciado – e capaz de, por meio da reflexão, determinar seu próprio sentido – o sistema pode se diferenciar como um sistema na sociedade, ou seja, um sistema que se diferencia de outras ordens normativas como a moral e outros sistemas como a política e a religião.409

A diferenciação interna dos sistemas parciais também implica a constituição de formas internas: internamente, o sistema pode apresentar hierarquias, segmentos, centro- periferia ou mais de uma forma. Na diferenciação do sistema jurídico, há tribunais, que devem se respeitar como iguais (segmentação), mas há também relações assimétricas (hierarquizadas) entre tribunais superiores/inferiores, tribunais/parlamentos, que, com base na desigualdade, “introduzem mais diferenciação e, desse modo, maiores graus de liberdade no sistema [...] diferentes formas de diferenciação não se excluem mutuamente”.410 São os tribunais que,

enquanto sistemas sociais do tipo organizacional,411 se diferenciam dentro do sistema

408 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad

Iberoamericana, 2002, p.359. Como explica o autor, a própria “diferenciação da sociedade – que está constituída por pura

comunicação – só resulta possível (ainda nos inícios mais primitivos e antes de qualquer formação segmentária das famílias)

se se dá a diferença entre interação e sociedade”, ou seja, quando ocorrências entre ausentes passam a, seletivamente, ser

relevantes nas interações entre presentes. (LUHMANN,Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres

Nafarrate. Mexico: Universidad Iberoamericana, 2002).

409 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad

Iberoamericana, 2002.

410 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad

Iberoamericana, 2002, p.360.

411 O conceito de sistema social inclui a sociedade, como um todo, seus sistemas parciais, como o direito, interações concretas

jurídico412 e permitem à evolução aproveitar a distinção legislação/jurisdição como ponto de partida para a reflexão do sistema jurídico.

Embora Aristóteles já tivesse formulado a distinção entre legislar e julgar como forma de garantir a independência e neutralidade do juiz,413 ao longo da Antiguidade romana, e até avançada Modernidade, legislar e julgar são consideradas variações de uma atividade política consistente na administração da justiça. Legislar e aplicar o direito são prerrogativas políticas – às quais corresponde o conceito de iurisdictio – exercidas pelo poder local (pretores, magistrados, senhores feudais), pelo Imperador, pelo monarca ou pela autoridade eclesiástica, conforme explica Marc Bloch:

Nesta sociedade que tinha multiplicado as relações de dependência, qualquer chefe – e Deus sabe como eles eram numerosos – desejava ser juiz. Pois só o direito de julgar permitia conservar eficazmente no dever os subordinados e, enquanto impedia que eles se deixassem submeter às sentenças de tribunais estranhos, fornecia a maneira mais segura de os proteger e de os dominar ao mesmo tempo [...] Não foi de modo algum por acaso que a palavra justiça viu por vezes a sua aceitação alastrar até ao ponto de designar o conjunto dos poderes senhoriais [...] nenhum obstáculo intelectual impedia que qualquer pessoa que dispusesse do poder indispensável, ou tivesse recebido tal incumbência, se arrogasse a qualidade de juiz.414

A diferenciação de tribunais enquanto organizações, isto é, como uma estrutura institucionalizada de cargos, competências, regras de inclusão/exclusão de membros, ocorrerá apenas no limiar da Modernidade. Até então, a jurisdição permanece nas mãos da nobreza ou dos tribunais urbanos.415 Por isso, explica Luhmann, durante todo esse período, “a diferenciação do direito frente à ordem estratificada e às influências das famílias, seguia

LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Rafaelle. Teoria della società. 11.ed. Milano: FrancoAngeli, 2003, p.25 e, sobre sistemas

interacionais e organizacionais. (p.316-325).Também Niklas Luhmann (LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales

lineamientos para una teoría general. Tradução de Silvia Pappe y Brunhilde Erker Rubi. (Barcelona): Anthropos; Mexico: Universidad Iberoamericana; Santafé de Bogotá: CEJA, Pontificia Universidad Javeriana, 1998, p.27; 363).

412 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad

Iberoamericana, 2002, p.361.

413 Com a passagem ao direito das altas culturas pré-modernas, o juiz passa a desempenhar um papel que exige

distanciamento dos laços de parentesco e das amizades. A distinção entre legislar e judicar vem ao encontro desse problema: de um lado, o legislador prevê apenas regras gerais, cujas consequências não podem ser antecipadas e, de outro, obrigado a

aplicar a lei, o juiz ficaria impedido de favorecer ou desfavorecer amigos e inimigos pessoais. (LUHMANN,Niklas. El

derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad Iberoamericana, 2002, p.364).

414 BLOCH,Marc.A sociedade feudal. Coimbra: Edições 70, 2009, p.424.

415 Como coloca Peter Ackroyd, sobre a morte de Henrique I, rei da Inglaterra, em 1135, “Com a morte do rei, se perdia o

Direito. Quando o rei morria, a paz morria com ele. Apenas com a a ascensão de um novo rei o Direito retornava. Cavaleiros voavam de volta aos seus castelos com medo de perdê-los. Era uma questão de salvar o que você pudesse durante um período

em que a ordem estava suspensa”. (ACKROYD, Peter.The history of England. v.I, Foundation, Londres: Pan Books, 2012,

dependendo da autonomia ainda precária do sistema político. A questão de se (e ante quem) haveria de prevalecer o direito seguia dependendo de constelações circunstanciais”.416

Assim, apesar da distinção legislação/jurisdição ser bastante antiga, é apenas com a formação do Estado territorial moderno, a partir do séc. XVI, que a figura da iurisdictio como uma prerrogativa e condição do poder político começa a mudar, permitindo vislumbrar uma efetiva diferenciação estrutural entre julgar e legislar. Os esforços de centralização administrativa da realeza absolutista fazem com que a potesta legislatoria – prerrogativa de legislar – seja considerada exclusiva de um soberano, o Estado absolutista. Agora, só o rei – e não o senhor local – pode legislar. A aplicação do direito aos casos continua, ao menos inicialmente, nas mãos dos poderes locais e eclesiásticos.

O conceito de lei ganha eminência e passa a servir como um instrumento do poder absolutista central para controlar os poderes locais. Por meio da lex, o soberano pode anular, revogar e instituir privilégios de não-sujeição à lei e fixar a interpretação da lei a ser aplicada pelos tribunais locais. Progressivamente, a unificação da jurisdição se mostra imprescindível para estabilizar o Estado territorial e vai sendo implementada.417

Progressivamente, são instituídos tribunais ligados ao soberano, com competência para revisar ou anular decisões proferidas por tribunais locais e, gradualmente, se vai unificando a jurisdição. Apenas com essa unificação da jurisdição e reforço do conceito de lei, no séc. XVIII, a distinção entre legislação e jurisdição assume grande importância.418 Como resultado desse processo de centralização e unificação da jurisdição, o conceito de iurisdictio, que integrava as atividades de legislar/julgar à dominação política, é cancelado.419 A distinção entre legislar e julgar passa a se apoiar em distinções de procedimento e de competência, as quais estruturam a diferenciação interna do sistema jurídico.

A diferenciação interna permite ao direito renunciar a sustentáculos externos, como a política e a religião. O juiz, embasado em normas de competência e procedimento

416 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad

Iberoamericana, 2002, p.362.

417 Sobre a importância da legislação para consolidar os Estados territoriais e sua disputa com a jurisprudência dos poderes

locais: TARELLO,Giovani.Storia della cultura giuridica moderna, storia dela cultura giuridica moderna – assolutismo

e codificazione del diritto. Bologna: Società Editrice il Mulino, 1976, p.56.

418 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad

Iberoamericana, 2002, p.362-363.

419 E, segundo Luhmann, é cancelado sem ser substituído. (LUHMANN,Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de

institucionalizadas, aplica a lei, criada pelo legislador com base em outras normas de competência e procedimento. O juiz deve aplicar a lei criada pelo legislador e o legislador deve elaborar a lei considerando sua aplicação pelos tribunais. Segundo explica Luhmann, “isso permite representar a diferença como uma espécie de círculo cibernético no qual o direito se observa a si mesmo com uma observação de segunda ordem. O juiz deve tratar de entender o que é que o legislador quis, vale dizer, como observou o mundo”. 420 São

desenvolvidos métodos correspondentes de interpretação (como a vontade do legislador) que, por sua vez, “deve imaginar como seriam acolhidos e trabalhados os casos no tribunal”.421

Essa distinção permite ao direito autodeterminar seu sentido. Os tribunais, diferenciados, não julgam apenas a controvérsia fática, julgam também o direito estatuído na legislação. A plena positivação do direito, ou seja, a afirmação do direito como direito positivo, posto por decisões e, portanto, mutável por decisões, depende dessa possibilidade de autocorreção do sistema.

Apesar disso, como explica Luhmann, no limiar da Modernidade, a sociedade ainda está impregnada pela cosmologia do velho mundo hierarquizado e controlado por centros de certeza. Os tribunais se desvinculam do domínio político da nobreza, mas não do domínio político do monarca legislador. Alinhada com a velha cosmologia hierárquica, a relação circular entre competência legislativa e judicial, sobre a qual se funda a positividade do direito e sua diferenciação funcional, é construída estruturalmente como hierarquia, subordinando a jurisdição à legislação.422

Correspondentemente, a interpretação judicial do direito é concebida como método puramente lógico, fundado na estrutura da hierarquia entre legislação (premissa maior) e jurisdição (premissa menor), o que reprime contingência. O Tribunal

se concebe como órgão executivo da competência legislativa e o método jurídico como simples dedução. O nexo deve ser garantido mediante a lógica, ergo axiomatizando as relações normativas. Por isso, ressalta-se que o método é uma

420 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad

Iberoamericana, 2002.

421 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad

Iberoamericana, 2002.

422 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad

dedução que não tolera desvios. Por isso, exige-se o référé legislatif, como recurso para aqueles casos que apresentam problemas de interpretação.423

Nesse contexto, Montesquieu propõe, em uma República, que os juízes não sejam jurisconsultos, de modo que o julgamento verse apenas sobre os fatos, aplicando-se o direito sobre os fatos de forma automática, seguindo a letra da lei.424 O poder Poder Judiciário, para Montesquieu, é uma atividade do poder executivo, relativa às controvérsias entre cidadãos. Trata-se de um desmembramento da iurisdictio. Mas a atividade de julgar continua a pressupor os outros dois poderes como antecedentes. É uma atividade de mera aplicação e não realmente produtora de direito novo, razão pela qual Montesquieu diz que “o poder de judicar é, de qualquer modo, um poder nulo”.425

Trata-se de uma estratégia de repressão de contingência. A introdução dos procedimentos decisórios nas altas culturas pré-modernas já tornava claro que o direito é fruto de decisões, mas a moral generalizante bloqueava a contingência daí decorrente ao construir essa decisão como privada de alternativas: o procedimento simplesmente revelava o direito verdadeiro.426 A diferenciação interna do direito eleva essa contingência na medida em que o direito verdadeiro revelado por um procedimento jurídico é também condicionado a uma confirmação por outro procedimento jurídico. Vai ganhando destaque a noção de que o direito, como um todo, acaba sendo fruto de decisões. Trata-se de um aumento de complexidade interna e nível de contingência que busca corresponder à complexidade da sociedade. No entanto, a sociedade ainda não está diferenciada e sua semântica e visão de mundo ainda estão vinculadas à noção de uma ordem hierárquica, que garante a certeza por meio da referência a sustentáculos externos.427

Nesse contexto, assim como a religião cristã serviu de apoio à dominação política ao longo da Idade Média, a razão universal, como centro de certeza, funciona como

423 E, por isso, continua Luhmann, “não era nenhum problema conceituar o sistema do direito paralelo (ou identicamente) à

ordem política”. (LUHMANN,Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad

Iberoamericana, 2002). Ou seja, o controle legislativo da interpretação do direito na decisão judicial mantém um paralelismo entre ordem jurídica e ordem política que pode ser danoso à autonomia de ambos.

424 MONTESQUIEU,Charles de.O espírito das leis (XI, VI) São Paulo: Martins Fontes, 2000, L. VI, cap. 3.

425 MONTESQUIEU,Charles de.O espírito das leis (XI, VI) São Paulo: Martins Fontes, 2000, L. XI, cap. 6, p. 169.

426 Nesse sentido é a tese de Guilherme Leite Gonçalves: GONÇALVES, Guilherme Leite. Certezza ed Incertezza,

pressuposti operativi del diritto contingente. Tese di Dottorado, tutore Prof. Raffaele de Giorgi, Università degli Studi di

Lecce, Facoltá di Giurisprudenza, 2006. Não publicada.

427 GONÇALVES, Guilherme Leite. Certezza ed Incertezza, pressuposti operativi del diritto contingente. Tese di

Dottorado, tutore Prof. Raffaele de Giorgi, Università degli Studi di Lecce, Facoltá di Giurisprudenza, 2006. Não publicada, p.34.

apoio semântico para a dominação do Estado absolutista.428 O direito medieval, aplicado por meio da interpretatio dos tribunais locais, é considerado irracional. O direito novo, compilado em grandes códigos instituídos pelo Estado é considerado racional, verdadeiro e considera-se que é ele que deve ser revelado pelos tribunais. Só a partir do séc. XIX, na medida em que os tribunais consolidam sua ascendência sobre as antigas jurisdições locais e vão ganhando independência do domínio político central, essa concepção hierárquica pode ser abandonada. Os tribunais cada vez mais interpretam o sentido da sua vinculação à lei. Soluções legislativas se apresentam muitas vezes insuficientes e os tribunais devem decidir em que medida podem resolver o caso por meio da interpretação e em qual medida devem demandar mudanças na lei.429

As mudanças decorrentes da diferenciação funcional da sociedade trazem cada vez mais novas questões para o direito, que demandam o crescente recurso à legislação. Tão logo são promulgados, os grandes códigos vão caducando e, cada vez mais, novos métodos de interpretação são discutidos. Os tribunais se vêem diante da exigência de aplicar a igualdade aos casos particulares, ou seja, aplicar as mesmas leis e fazê-lo de maneira justa, ou seja, adaptada ao caso concreto e, assim, a interpretação judicial da lei desenvolve suas próprias regras. “A necessidade de que se decida e a liberdade que surge precisamente ao buscar razões (questionáveis) para chegar a um decisão, resultam restritas pelos pontos de vista da justiça. E é essa tríade de necessidade, liberdade e restrição que produz o direito”.430

Paralelamente e em estrita vinculação com esse processo, mudanças desencadeadas pela diferenciação funcional vão liberando o legislador (e as partes contratantes) de um sentido metafísico condicionante. Forma-se uma dogmática propriamente jurídica que vai doando ao sistema jurídico o controle sobre a reestabilização do seu próprio sentido e abrindo caminho para a diferenciação funcional.

428 GONÇALVES, Guilherme Leite. Certezza ed Incertezza, pressuposti operativi del diritto contingente. Tese di

Dottorado, tutore Prof. Raffaele de Giorgi, Università degli Studi di Lecce, Facoltá di Giurisprudenza, 2006. Não publicada, p.34.

429 E, segundo Luhmann, “só essa concepção da tarefa judiciária é o que possibilita chegar a proibir a denegação de justiça e a

exigir que os tribunais devam decidir sobre todos os casos que a eles se apresentem”. (LUHMANN,Niklas. El derecho de la

sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad Iberoamericana, 2002, p.365).

430 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Mexico: Universidad

No documento Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater (páginas 139-145)