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A certeza da razão

No documento Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater (páginas 110-116)

2 CERTEZA E SOCIEDADE

2.2 Reconstrução semântica do centro de certeza: razão, experiência e probabilidade

2.2.1 A certeza da razão

Segundo John Cottigham, em todo o seu percurso histórico, a noção de razão e racionalidade se mantêm associadas à noção de verdade (e, nesse sentido, pode-se acrescentar, certeza). Seja para Sócrates, Santo Agostinho, Descartes, Hegel ou Popper, falar em racionalidade é falar nas condições de validade de uma pretensão qualquer de verdade.317 Enquanto valor difuso, a verdade amplifica as certezas existentes e, quando especificada, impõe realidades objetivas irrecusáveis, a partir das quais as chances de comunicação e, portanto, estruturação da complexidade do mundo, é potencializada. A verdade transmite certeza.

Para a tradição clássica, o conhecimento verdadeiro depende de uma capacidade intrinsecamente humana, a razão, a partir da qual Platão funda a distinção entre crença e conhecimento. Só o conhecimento pode conduzir a verdades e o conhecimento depende da razão. Existem diferentes classes de conhecimento e o conhecimento perfeito é o conhecimento das formas ideais, absolutas, das coisas em si mesmas. Esse conhecimento não é sensível, mas inteligível. Só a razão pode conduzir ao verdadeiro conhecimento, isto é, conhecimento das coisas imutáveis e eternas, da metafísica que determina as condições da perfeição. Os sentidos podem apenas mostrar as sombras enganosas que são os objetos particulares.318

317 Por isso que, para o autor, “Rechaçar a racionalidade não equivale – nem pode equivaler – a abrir o caminho para uma

verdade ‘superior’ ou ‘mais profunda’. Pelo contrário, não é mais do que abandonar por completo toda pretensão de afirmar

verdades”. (COTTINGHAM,John.El racionalismo. Tradução de Juan-Andrés Iglesias. Barcelona: Ariel, 1987, p.21).

318 COTTINGHAM,John.El racionalismo. Tradução de Juan-Andrés Iglesias. Barcelona: Ariel, 1987, p.33-43. Cumpre

registrar que, para Cottingham, a contribuição de Aristóteles para a noção clássica de razão e racionalidade é menos clara. Não se pode nem chamar a Platão de um racionalista nem a Aristóteles de empirista, embora ambos estejam lidando com racionalidade e observações do mundo. O contexto histórico-filosófico é diverso. Aristóteles se dedica à observação do mundo como fonte de conhecimento e nega as formas universais como portadoras de realidade. A bondade ou a beleza não são transcendentais, mas algo que se realiza praticamente. Verdades, por outro lado, dependem das opiniões existentes, sendo prováveis quando fundadas nas crenças das pessoas respeitáveis ou numerosas. Para Aristóteles (e, depois, no pensamento tomista) o conhecimento depende da formação de imagens mentais, isto é, dos sentidos. O conhecimento pressupõe a percepção. Mas Aristóteles não propõe um conhecimento indutivo, a partir da experiência, e sim demonstrativo, isto é, geometricamente/analiticamente demonstrável. Uma demonstração é uma dedução a partir de premissas necessárias (a

priori). Embora haja certa polêmica sobre a adesão à noção de um conhecimento a priori (e não apenas um método analítico),

Os pensadores medievais viram nas distinções platônicas um arcabouço conceitual a partir do qual poderiam traçar analogias sobre o conhecimento do ser divino, articulando fé e razão, de modo que verdades superiores poderiam vir apenas pela graça ou pela iluminação. Na medida em que a Modernidade se aproxima, uma outra concepção se apresenta: o conhecimento de verdades superiores está ao alcance do próprio intelecto. E aí se apresenta a profundidade da ruptura racionalista: mais do que o conteúdo, as consequências do método racional eram graves, pois dispensavam a revelação/iluminação para conhecimento das verdades. A revolução do método leva a razão a tentar substituir o antigo centro metafísico de certeza.

A obra de René Descartes (1569-1650) tem importância ímpar nesse movimento, mais propriamente o ensaio que introduz os seus estudos científicos, chamado Um discurso sobre o método. Para Descartes, o conhecimento da verdade não depende de uma revelação, mas de um método: o método racional, baseado na dúvida, na possibilidade de questionar, e que não depende da capacidade de intuir as forças e desígnios divinos, nem da revelação obtida pelos santos e sábios ou da tradição dos ensinamentos dos apóstolos.319 Não depende, também, do conhecimento sensível (que é enganoso): o conhecimento racional é obtido pelo sujeito racional, que se orienta pela dúvida, já que os sentidos podem enganar.320

O primeiro passo do método é rejeitar tudo aquilo que é falso, tudo aquilo sobre o que possa duvidar: os centros de certeza metafísicos que alicerçavam a epistemologia

que é necessário, afinal, poderia ser sabido sem a experiência. Para o autor “Aristóteles considera que os sentidos só possuem uma função heurística no estabelecimento dos primeiros princípios. Os sentidos podem nos guiar na direção correta ou nos estimular em linhas fecundas de pensamento. Mas, por si mesmos, não podem estabelecer a verdade das proposições

necessárias”. (COTTINGHAM,John.El racionalismo. Tradução de Juan-Andrés Iglesias. Barcelona: Ariel, 1987, p.44-47).

319 Como esclarece na sua obra clássica, Discurso sobre o método (1637), Descartes não acredita que o conhecimento por

meio da revelação seja útil para conhecer a verdade, já que inacessível aos homens comuns. Sobre a revelação da teologia,

explica que, “tendo aprendido, como algo muito certo, que o seu caminho não está menos franqueado aos mais ignorantes do

que aos mais sábios e que as verdades reveladas que para lá conduzem estão além de nossa inteligência, não me atreveria a submetê-las à debilidade de meus raciocínios, e pensava que, para empreender sua análise e obter êxito, era preciso receber

alguma extraordinária assistência do céu e ser mais do que homem”. (DESCARTES,René. Discurso sobre o método.

Primeira parte. Tradução de Enrico Corvisieri. Digitalização: Acrópolis. Disponível em: www.cfh.ufsc.br/discurso.pdf. Acesso em: 22 mar. 2014). Por esse motivo, explica Cottingham, Descartes é considerado o pensador de transição da filosofia antiga para a moderna. Não pelas suas conclusões em si, mas em razão do modo como concebe o indagar filosófico em busca

da verdade. (COTTINGHAM,John.El racionalismo. Tradução de Juan-Andrés Iglesias. Barcelona: Ariel, 1987, p. 53).

320 Como coloca o autor, o método racional é fundado a partir de quatro leis lógicas que, segundo afirma Descartes, lhe

parecem suficientes: (a) “nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal [...] nada fazer constar de meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito que eu não tivesse motivo algum para duvidar dele”; (b) “repartir cada uma das dificuldades [...] em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias”; (c) ordenar o pensamento, “iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer [...] galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros”; e (d) efetuar “relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir”. (Idem, segunda parte).

medieval são atingidos. O segundo passo é a análise, em tantas partes quantas possíveis e necessárias, que instaura a diversidade de perspectivas para cada assunto. E tudo pode ser então colocado em dúvida, tudo pode ser declarado falso.321 Nesse exercício de duvidar de todas as possibilidades metafísicas de certeza, de “rejeitar como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o intuito de ver se, depois disso, não restaria algo em meu crédito que fosse completamente incontestável” 322 o que resta, como certeza, é só o

raciocinar, o pensar. Penso, logo existo, só essa verdade pode ser afirmada como certeza sólida, pois sem ela sequer se pode duvidar.

O método cartesiano é autológico. E a certeza que o princípio penso, logo existo, permite não está no conteúdo semântico, pois “nada há no eu penso, logo existo, que me dê a certeza de que digo a verdade”. 323 A certeza da razão, do penso, logo existo, está na

distinção que permite ver “muito claramente que, para pensar, é preciso existir”, podendo concluir-se “por regra geral que as coisas que concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras”.324 A certeza tem então uma regra geral, que não é dada pela revelação de

um centro metafísico, mas pela clareza da distinção, por um axioma que manifesta uma ideia

321 GONÇALVES, Guilherme Leite. Certezza ed Incertezza, pressuposti operativi del diritto contingente. Tese di

Dottorado, tutore Prof. Raffaele de Giorgi, Università degli Studi di Lecce, Facoltá di Giurisprudenza, 2006. Não publicada, p. 36. É certo que, no texto do Discurso, Descartes tem o cuidado de, politicamente, ressalvar da sua análise “as verdades da fé, que sempre foram as primeiras na minha crença” sendo certo que, “quanto a todo o restante de minhas opiniões, podia livremente procurar desfazer-me delas” (terceira parte). A natureza política – e não científica – dessa preocupação pode ser percebido à luz, por exemplo, de carta de 22 de julho de 1633 que Descartes escreve a Marin Mersenne. Ali, Descartes se mostra impressionado com a notícia da condenação de Galileu pela Inquisição, dizendo que esta o teria espantado a ponto de queimar todos os seus papéis ou, pelo menos, de não deixá-los serem vistos por ninguém. Na quinta parte do Discurso, dedicada à demonstração da existência de Deus, reaparece esse viés de conciliação com a Igreja. Marin Marsenne (1588- 1648) foi um padre e matemático que se correspondia com grandes pensadores da época como Descartes, Galileu, Pascal e

Torricelli, e teve um papel central na divulgação de descobertas científicas na Europa. (DUBRAY,Charles Marin Marsenne.

The Catholic Encyclopedia.v.10, New York: Robert Appleton Company, 1911. Disponível em: www.newadvent.org/cathen/10209b.htm. Acesso em: 20 fev. 2014).

322 A seguinte passagem, bastante conhecida, do Discurso deixa claro esse caminho: Ao considerar que nossos sentidos às

vezes nos enganam, quis presumir que não existia nada que fosse tal como nos fazem imaginar. E, por existirem homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se refere às mais simples noções de geometria, e cometem paralogismos, rejeitei como falsas, achando que estava sujeito a me enganar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações [...]. Decidi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais corretas do que as ilusões de meus sonhos. Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, ao notar que esta verdade: eu penso, logo

existo, era tão sólida e tão correta que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo,

julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da filosofia que eu procurava”. (DESCARTES, René. Discurso sobre o método. Primeira parte. Tradução de Enrico Corvisieri. Digitalização: Acrópolis. Disponível em: www.cfh.ufsc.br/discurso.pdf. Acesso em: 22 mar. 2014 – quarta parte).

323 DESCARTES,René. Discurso sobre o método. Primeira parte. Tradução de Enrico Corvisieri. Digitalização: Acrópolis.

Disponível em: www.cfh.ufsc.br/discurso.pdf. Acesso em: 22 mar. 2014.

324 DESCARTES,René. Discurso sobre o método. Primeira parte. Tradução de Enrico Corvisieri. Digitalização: Acrópolis.

suficientemente clara, que se obtém racionalmente. A partir dessa concepção ideal, o sujeito pode decompor o objeto analisado em partes e então sintetizar as conclusões a seu respeito.

Descartes inverte a lógica clássica, segundo a qual nada pode estar no intelecto sem antes passar pelos sentidos. Agora, o intelecto ganha autoridade sobre os sentidos, que podem ser enganosos, autoridade essa que permite à filosofia racional fundar o conhecimento da própria realidade (metafísica e física). O conhecimento de toda a realidade (não só da natureza) é unificado sob os pressupostos racionais. Pode ser reduzido a conhecimentos matemáticos existentes a priori (inatos) e passíveis de demonstração geométrica. A dedutibilidade geométrica é inata, comum a todos os sujeitos e implica uma certeza tão universalizável que sustenta a própria metafísica. Como explica Cottingham, “Descartes deseja que a sua filosofia revele verdades imutáveis e eternas acerca do universo”.325 Daqui

deriva “uma concepção dedutiva do conhecimento, onde se demonstra que todos os resultados são consequência inevitável e lógica dos primeiros princípios do sistema”.326

Para o racionalismo, explica Charlie Huenemann, trata-se de assumir que algumas afirmações teóricas não dependem de confirmação pela experiência, como é o caso da álgebra e da lógica. Esses conhecimentos existiriam a priori e seriam comuns a todos os homens, isto é, inatos e universalizáveis.327 A razão seria, portanto, um atributo do sujeito e se impõe como qualidade esperada, razão pela qual o pensamento racionalista também produz uma ética própria e uma metafísica. A razão principia no sujeito e se projeta como determinação metafísica dos limites para o sentido, vale dizer, como um sub-rogado do centro de certeza.328

325 COTTINGHAM,John.El racionalismo. Tradução de Juan-Andrés Iglesias. Barcelona: Ariel, 1987, p.62.

326 COTTINGHAM,John.El racionalismo. Tradução de Juan-Andrés Iglesias. Barcelona: Ariel, 1987, p. 65-68.

327 HUENEMANN,Charlie.Racionalismo. Tradução de Jacques A. Wainberg. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p.20.

328 É o caso de Espinosa e é o caso de Leibniz. Sobre este último, como explica Huenemann, Leibniz propõe que todas a

verdades têm a mesma natureza, quer seja uma verdade lógico-analítica, quer seja fática (por exemplo, a afirmação de um estado de fato). Toda a verdade é tão necessária e inevitável como as verdades geométricas. Ou seja, existe uma qualidade metafísica daquilo que é verdadeiro. Existem afirmativas que são contingentes, mas as afirmações de natureza matemática/geométricas são necessárias. Afirmações de fato, no entanto, são contingentes, isto é, não são, necessariamente verdadeiras. Verdades necessárias podem ser provadas decisivamente em uma série de passos que as demonstram. A infinita complexidade impede que as verdades contingentes sejam provadas. Elas precisam ser comparadas a todos outros mundos possíveis, o que implica “converter uma distinção (necessário versus contingente) noutra (provável versus não provável)”. E, aqui, Leibniz busca uma resposta na metafísica: “as verdades contingentes dependem de sua verdade na escolha de Deus para tornar real este mundo em oposição a qualquer outro mundo possível”. O mundo real precisa ser o melhor dos mundos possíveis (teodiceia). Dessa construção metafísica Leibniz extrai a ligação entre contingência e improbabilidade: “Toda verdade contingente é aquela que é verdadeira em alguns, mas não em todos os mundos possíveis. As verdades necessárias são verdades em todos os mundos possíveis, uma vez que não é possível que eles sejam falsos. A fim de oferecer uma prova nítida e lógica para a verdade contingente, uma pessoa teria que demonstrar que a verdade é parte e parcela do melhor dos

Nesse sentido, como observa Huenemann, no pensamento racionalista há “certa variedade de transcendentalismo”: uma razão transcendental, extramundana.329 A razão está

além dos sentidos e da experiência, sendo “um tipo de oráculo, uma maneira na qual nós podemos testemunhar o que é verdadeiro [...] revelar o que verdadeiramente é”.330 Para o

pensamento racionalista, o mundo da razão é como a Cidade de Deus para o pensamento medieval: uma realidade necessária. Não mais de origem religiosa, mas de origem lógica (cuja certeza, ao menos em Descartes, é confirmada, ainda pela bondade de Deus). A realidade conteria apenas verdades e, por meio da dedução, poderia ser demonstrada e, mais do que isso, sistematizada. A partir das bases cartesianas, o racionalismo constrói uma noção integrada de realidade, em que a verdade, aos poucos, se valida metodologicamente pela coerência com esse todo (um novo centro de certeza).331

Trata-se de um pensamento central para o racionalismo, pois, coloca no próprio sujeito as condições para desvendar toda a realidade e chegar à verdade (e impor a verdade como uma exigência ao sujeito racional). Nada está além do conhecimento racional: o que pode ser (racionalmente) concebido, pode existir. Logo, tudo o que existe corresponde a uma formulação mental da razão. A razão, por sua vez, como o antigo centro metafísico religioso, emanaria uma verdade apta a englobar toda a realidade.332 A certeza, para o pensamento

mundos possíveis”. (HUENEMANN,Charlie.Racionalismo. Tradução de Jacques A. Wainberg. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012,

p.173-178).

329 HUENEMANN,Charlie.Racionalismo. Tradução de Jacques A. Wainberg. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p.20.

330 HUENEMANN,Charlie.Racionalismo. Tradução de Jacques A. Wainberg. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

331 É o caso de Espinosa, ao propor uma unidade ontológica para toda a realidade, unindo inclusive matéria e espírito. Esse

filósofo desenvolve o conceito de verdade não como correspondência com a realidade, mas como coerência de uma proposição com um sistema de afirmações a que pertence. No caso do pensamento racionalista, um sistema orgânico real a conter tudo o que existe. Assim, a verdade não é passível de verificação pontual de regularidades, mas sim a partir de uma noção, racionalmente obtida, de coerência com o todo, uma explicação holística em que “cada parte da natureza concorda com o conjunto”. Para Espinosa, o conhecimento se explica pela coerência do fenômeno com o universo em seu conjunto.

Decorre, igualmente, uma noção de necessariedade das causas e efeitos. O mundo é necessário. (HUENEMANN,Charlie.

Racionalismo. Tradução de Jacques A. Wainberg. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p.75-77).

332 Segundo Charlie Huenemann, de um modo bastante amplo, o racionalismo pode ser visto como uma visão de mundo em

que “o arcabouço mais íntimo do universo e o arcabouço mais íntimo da mente humana são um só e o mesmo”. A razão, e só a razão, é capaz de descrever o que existe e o que pode ser pensado, de onde, segundo o autor, decorre: (a) “se uma coisa pode ser concebida, então ela é genuinamente possível [...]; (b) “nada no universo está (pelo menos em princípio) além do nosso conhecimento” e (c) “uma vez que a mente humana discirna uma relação lógica entre duas ideias, o mundo precisa também exibir uma relação similar entre as coisas que correspondem àquelas ideias”. Trata-se, em última análise, da assunção de que

a mente humana basta em si para desvendar e compreender as últimas estruturas da realidade. (HUENEMANN,Charlie.

Racionalismo. Tradução de Jacques A. Wainberg. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p.11). Também segundo Cottingham, a

epistemologia proposta por Descartes é uma. Tudo tem início no que se pode pensar e conceber (filosofia => metafísica => física) e, por isso, o universo físico ganha descrição matemática (filosofia) e nascem as teorias da gravitação, óptica, magnetismo etc, em um trabalho que será completado por Newton. Abandona-se o mundo medieval baseado em qualidades (bom, mau, puro, perfeito) que podiam se difundir em uma ontologia moral generalizante por quantidades mensuráveis

matematicamente. (HUENEMANN,Charlie.Racionalismo. Tradução de Jacques A. Wainberg. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012,

racionalista, equivale à possibilidade de obter conhecimento racional pelo sujeito racional, a partir de certas características que lhe são imanentes e impõem determinados métodos de pensamento: axiomas racionais.

Em termos semânticos, o conteúdo do antigo centro metafísico de certeza é substituído pelos axiomas da razão, que inauguram as novas bases do conhecimento do mundo, que continua a se apresentar como pleno de verdades necessárias a serem deduzidas. A estrutura permanece uma estrutura que emana uma moral generalizante, com a pretensão de conformar todos os âmbitos possíveis do sentido na sociedade. Não é por outra razão que o racionalismo se coloca com pretensão universal: suas construções não se limitam a uma epistemologia, mas se estendem para uma moral, ética, política e metafísica coligadas às premissas racionais. A razão se apresenta como sua própria fundação, como verdade autoevidente que se impõe sobre qualquer outra possibilidade de conhecimento. Essas premissas limitam a contingência, funcionam como instância repressora do sentido e, embora seus artefatos sejam duradores, não conseguem restabelecer um centro de certeza.

O direito concebido a partir dessa visão de mundo (e constrito por esse centro de certeza) será o direito da razão ou o direito jusnatural moderno. É um direito que, apesar de posto por decisões, não se valida por esse motivo e sim porque corresponde a uma verdade maior. A sua verdade depende da coerência com um sistema ontológico, exige coerência com a metafísica e com a filosofia. A sua validade, portanto, é condicionada ao método por meio do qual o direito se revela e, por esse motivo, segundo De Giorgi, “o direito da razão era autoevidente e válido” na medida em que fruto do método racional.333 O método revela o

único direito possível, deduzido do grande sistema filosófico/metafísico.

Trata-se, no entanto, de um projeto de certeza e de mundo que não chega a se estabelecer, a não ser para demarcar a transição do pensamento antigo para o moderno. Suas possibilidades e limitações são enriquecidas pela contraproposta do pensamento empirista, analisado a seguir.

333 DEGIORGI,Raffaele.Reflexos sobre a semântica da racionalidade e da experiência jurídica. In: Direito, democracia e

risco – vínculos com o futuro. Tradução de Herman Nébias Barreto, Cristiane Branco Macedo e Menelick de Carvalho Netto.

Porto Alegre: Sergio Fabris, 1998, p. 90. Como explica o autor, “a razão manifesta uma circularidade que a vincula a si

mesma: ela se autofundamenta. Com a forma do direito natural e do direito da razão, ela não havia tido problemas; na natureza existem naturezas que têm consciência de si mesmas. Sobre essa congruência do pensamento com o ser regia-se a

No documento Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater (páginas 110-116)