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Modernidade e sociedade funcionalmente diferenciada O vácuo de certeza

No documento Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater (páginas 97-107)

2 CERTEZA E SOCIEDADE

2.1 Formas de diferenciação social e os centros de certeza

2.1.4 Modernidade e sociedade funcionalmente diferenciada O vácuo de certeza

Como se viu até o momento, pode-se fazer uma distinção entre forma de diferenciação social (segmentária, centro-periferia e estratificada) – que é a estrutura mais

geral a partir da qual uma sociedade organiza todo o processamento de sentido – e o conjunto semântico de autodescrições sociais, aos quais se chamou de culturas (arcaicas e pré- modernas).277 Na teoria luhmaniana, o conceito de sociedade moderna (ou de Modernidade) comporta certa sobreposição dessas distinções: a modernidade caracteriza a semântica (cultura) da sociedade funcionalmente diferenciada e que chama a si mesma de moderna. Em razão da sua elevada complexidade, a teoria dos sistemas também se refere a essa sociedade como sociedade complexa.278

Diferenciação funcional, explicam Luhmann e De Giorgi, significa que o ponto de vista a partir do qual se “se diferencia uma diferença entre sistema e ambiente, está na função que o sistema que se diferenciou (e, portanto, não o seu ambiente) desempenha para o sistema inteiro”, 279 ou seja, o sistema desempenha uma função referente a um problema da

sociedade (e não do sistema) que só o sistema pode resolver. Quando a sociedade se diferencia por funções – e não mais com referência ao parentesco, território ou estratos –, a reprodução da comunicação passa a se referir a si mesma, produzindo sempre mais de si e atinge “um fechamento a partir do qual, para a política conta só a política, para a arte só a arte, para a educação só a pré-disposição e disponibilidade ao aprendizado, para a economia só o capital e o lucro” (autopoiese).280 Ascendência, parentesco, pertinência, ser ou não ser cidadão, já não

277 No entanto, como explica Luhmann, o conceito de cultura é problemático. Foi construído no século XVIII para colocar,

em um único conceito compreensivo, representações comparativas que permitissem à Europa lidar com regiões recém- conquistadas. Do ponto de vista científico, é um conceito pouco claro, pois, não explica do que a cultura se distingue, se inclui todos os artefatos, textos, arte, costumes etc. Como coloca o autor, “se um conceito não consegue esclarecer que coisa ele exclui, ou seja, qual é o outro lado indicado pela sua forma, não se pode esperar dele contribuições científicas”.

(LUHMANN,Niklas. Causalidad nel Sud. In: CORSI, Giancarlo; DE GIORGI, Raffaele. Ridescrevere la questione

meridionale. Lecce: Pensa Multimedia Editore, 1998, p.92). Mas, ressalvada a crítica, o conceito é útil justamente para

indicar, de uma perspectiva comparativa e compreensiva, o conjunto semântico (incluindo artefatos, representações e

autodescrições) e arranjos estruturais de povos e civilizações. Também nesse sentido: LUHMANN,Niklas. La sociedad de la

sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.698-700.

278 Importante apontar também que a modernidade, mais que um tipo conceitual, é um caso bastante específico, pois a

passagem de uma sociedade estratificada para a uma sociedade funcionalmente diferenciada ocorreu apenas no caso europeu, ao final da Idade Média. O processo de diferenciação funcional da sociedade, que caracteriza a sociedade moderna, encontra uma referência histórica concreta vista no item anterior. Assim, segundo Niklas Luhmann e Raffaele De Giorgi (LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Rafaelle. Teoria della società. 11.ed. Milano: FrancoAngeli, 2003, p.302), a modernidade surge na Europa ocidental e, uma vez estabelecida, se projeta como sociedade mundial. A partir de um modelo inclusão/exclusão e de um conceito de modernização, as regiões e comunidades ao redor do mundo seguem descritas pelo centro como mais ou

menos modernas, ou em processo de modernização. Nesse sentido: LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad.

Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.108; 126-127 e também LUHMANN,Niklas. Observaciones

de la modernidad – racionalidad y contingencia em la sociedad moderna. Barcelona: Paidós Ibérica, 1997, p.26.

279 LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Rafaelle. Teoria della società. 11.ed. Milano: FrancoAngeli, 2003, p.303.

280 LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Rafaelle. Teoria della società. 11.ed. Milano: FrancoAngeli, 2003, p.291. A esse

contínuo produzir a si mesmo por meio de autorreferência (sem importar elementos e sentido do exterior) a teoria dos

sistemas chama de autopoiese. Nesse sentido: LUHMANN,Niklas. Sistemas sociales – lineamientos para una teoría general.

Tradução de Silvia Pappe y Brunhilde Erker Rubi. (Barcelona): Anthropos; Mexico: Universidad Iberoamericana; Santafé de Bogotá: CEJA, Pontificia Universidad Javeriana, 1998, p.56-59.

podem interferir, de modo decisivo, na produção do sentido específico de cada sistema. Esse sentido será fruto da autopoiese de cada sistema pois, vale lembrar, sistemas sociais são também sistemas de sentido e, portanto, para esses sistemas, controlar a produção e organização do seu próprio sentido significa controlar as condições da sua contínua autoprodução.

O processo de diferenciação funcional da sociedade, que leva à formação desses sistemas, como visto no item anterior, é um processo lento e gradual, em que, um após o outro, âmbitos de sentido socialmente relevante se tornam independentes da visão de mundo estratificada. Nesses âmbitos, o sentido determina a si mesmo orientando-se à resolução de um problema na sociedade (e não ao ethos de um estrato), ou seja, ao desempenho de uma função, diferenciando-se como sistemas autopoiéticos. Esse processo desmonta as estruturas que amparavam o centro de certeza metafísico, o qual garantia a redundância de um sentido válido para todos os âmbitos sociais e conduz a um correlativo desenvolvimento de âmbitos específicos para a formação de sentido para a sociedade, livres de vínculos com a estratificação social e sua moral generalizante.

De acordo com a teoria luhmaniana, na sociedade funcionalmente diferenciada – que é a sociedade contemporânea –, esses âmbitos se apropriam de meios de comunicação simbolicamente generalizados (poder, verdade, amor, dinheiro etc.) e especificam um sentido para a comunicação que se desenvolve neles. Ao especificarem um sentido para a comunicação que produzem, esses âmbitos se fecham em suas próprias operações, de modo que o sentido de suas operações não comporta determinação exterior. Por exemplo, a economia não comporta que o valor das coisas seja determinado por qualquer outra coisa que não o mercado, que nada mais é do que uma expressão das operações econômicas de troca.281 A ciência não comporta que a verdade seja validada por qualquer outra coisa que não o método científico.282 A política já não comporta que o exercício do poder seja determinado por qualquer outra coisa que não o resultado de procedimentos politicamente estabelecidos. A essa sociedade, já plenamente diferenciada, a teoria dos sistemas também se refere como sociedade complexa.

281 Assim quando, para tentar controlar a inflação, a política tenta determinar, normativamente, o preço de certos bens e

serviços e o resultado vem na forma de mercados clandestinos.

282 Orientações religiosas, políticas ou econômicas podem ser determinantes para o financiamento de pesquisas, mas não

Nesse cenário, a ideia de função indica o vínculo que cada sistema estabelece com a sociedade. O sentido se diferencia dos demais sentidos possíveis no ambiente e nos outros sistemas à medida que se autodescreve como voltado à resolução de um problema na sociedade que só ele pode resolver. O sistema “monopoliza para si mesmo a função e conta com um ambiente que, nesse aspecto, é inadequado ou incompetente”.283 Assim, o sistema

engata suas operações com base no pressuposto de que sua função é exclusiva e nenhum sentido externo pode engatar operações no sistema. A consequência é que os sistemas se colocam em um estado de “indeterminação autoproduzida”.284

Para explicar esse modo de operar, os autores recorrem ao conceito de máquina não-trivial, extraído da cibernética de Heinz Von Foerster. Quando operada, a máquina não- trivial – em oposição à máquina trivial – não corresponde às instruções do operador, ela responde (ou não responde) tendo por referência exclusiva sua própria memória. A cada operação ela é uma nova máquina.285 Sistemas sociais operam como máquinas não-triviais.286

Além disso, na sociedade funcionalmente diferenciada, como cada sistema se relaciona com o ambiente (sociedade) a partir de uma função diversa, para cada sistema há “um ambiente interno da sociedade integrado de distinta maneira [...] o sistema total renuncia a estabelecer uma ordem de relações (por exemplo, o ranque) entre os sistemas de função”. 287

Como consequência, não há nada que permita a essa sociedade regular as relações entre os sistemas, elegendo um que sirva como vértice ou centro. Tampouco o ambiente pode exercer uma posição desse tipo: para os sistemas, o ambiente é complexidade desestruturada e que, por si, não comunica com os sistemas lhes outorgando funções. A função, como vínculo com o ambiente, é construída pelo próprio sistema como mecanismo que lhe possibilita a

283 LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.591.

284 LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.590.

285 FOERSTER,Heinz von.Sistemi che osservano. Roma: Astrolabio, 1987, p.128-131. Na colocação de Ciro Marcondes

Filho, “A máquina não trivial é uma máquina que se altera quando opero com ela, tornando-se, depois disso, outra máquina.

Quando eu lhe pergunto quanto é 2 vezes 2, ela diz verde. Se eu contesto e digo, não, é azul, daí ela responde: é quatro!”

(MARCONDESFILHO,Ciro. Só conseguimos enxergar aquilo que podemos explicar – Heinz von Foerster e os dilemas da

comunicação. In: Caligrama. Revista de estudos e pesquisas em linguagem e mídia. v.2. nº1., jan-abril, 2006, p.7).

286 Nas palavras de Luhmann, “com a passagem à diferenciação funcional, a sociedade renuncia a impor aos sistemas parciais

um esquema comum de diferenciação. Enquanto que no caso da estratificação cada sistema parcial deve definir-se a si mesmo frente aos outros mediante uma diferença de ranque para só assim chegar à identidade própria; no caso da diferenciação

funcional cada sistema de função determina sua própria identidade – e isso sem exceção [...] através de uma semântica

elaborada de reflexão, de autonomia, de dar-se um sentido a si mesmo”. (LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad.

Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.591).

287 E “a metáfora do equilíbrio tampouco é útil já que só dissimula o fato de que a sociedade já não é capaz de regular as

relações entre os sistemas parciais e que deve confiá-las à evolução”. (LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad.

autorreferência do sentido, e não uma imposição externa.288A diferenciação funcional implica, para o sistema, que a sua função é a mais relevante. O sistema orienta suas operações sempre pela sua própria função e não pela de outros sistemas. Por exemplo, “para o sistema político, o êxito político (como quer que se operacionalize) é o mais importante de todo o resto e uma economia exitosa é unicamente importante, nesse caso, como condição dos êxitos políticos”. Seja do ponto de vista do ambiente, seja do ponto de vista do próprio sistema, não há hierarquia entre os sistemas.289

Outra característica da sociedade funcionalmente diferenciada é que, operando em torno da própria função (autorreferência), os sistemas, para construir um sentido específico, exclusivamente seu, desenvolvem códigos binários. O código permite ao sistema distinguir com nitidez as suas próprias operações sem precisar fazer referências externas. O código binário ou confirma ou nega o sentido do sistema. Ele manifesta as distinções por meio das quais os sistemas formam as estruturas de sentido que viabilizam a comunicação, vale dizer, as expectativas como lícito/ilícito, ter/não-ter, comandante/comandado, verdade/falsidade etc. É o código que permite ao sistema atuar reduzindo a complexidade do ambiente a uma distinção binária. 290 Por meio da aplicação do código o sistema atribui sentido ao ruído captado no ambiente, reduzindo complexidade. O código é exclusivo de cada sistema e, por isso, permite clausura operativa (operações do sistema só podem se enlaçar com operações do sistema).291Assim, por exemplo, “o que se fixa como juridicamente válido pode servir em uma ulterior comunicação para estabelecer de novo a pergunta de se juridicamente

288 Segundo explica Luhmann, livre do controle dos estratos, o sentido especifica operações autorreferentes (observações

sobre si mesmo) e, por meio dessas operações, delimita uma barreira de sentido: o sentido dessas operações não se confunde com outros sentidos possíveis e disponíveis. A função é a barreira de sentido que permite que o sistema monopolize um sentido próprio. Como essa barreira é resultado das operações do próprio sistema, a função não se volta à preservação da sociedade, mas à preservação do próprio sistema, razão pela qual não existe um catálogo de funções socialmente necessárias.

(LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.592).

289 LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.592. A

função serve como ponto de referência da autorreferência dos sistemas (o sentido se especifica descrevendo a si mesmo como voltado a uma função), o que viabiliza a clausura operativa (as operações do sistema não engatam operações com operações de outros sistemas), da qual decorre a formação de “sistemas autopoiéticos no interior do sistema autopoiético da sociedade.

(LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007). O conceito

de autopoiese indica essa capacidade de o sistema se manter autoproduzindo a si mesmo sem importar elementos.

290 Como o sentido só pode se referir a si mesmo, toda operação pode ser reconduzida a uma diferença entre confirmação ou

negação do sentido. (LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder,

2007, p.592).

291Ao passo em que, “ao se orientar pela função, o sistema defende a preponderância de suas próprias opções – prover o

futuro com dinheiro e não confiando em Deus, formando em escolas e não apenas mediante socialização –, mediante o valor

negativo do código reflete sobre a necessidade de impor critérios a todas suas operações”. (LUHMANN,Niklas. La sociedad

isso é válido ou inválido e exigir, por exemplo, uma mudança na lei”.292 O direito não tem por

objetivo aplicar o valor positivo (lícito) ou negativo (ilícito) do código. As leis não determinam critérios para aplicação de um dos lados da distinção, mas critérios que viabilizem a aplicação de ambos os lados, ou seja, qualificação do sentido produzido socialmente tanto como conforme-o-direito quanto como não-conforme-o-direito. E, por isso, em um sistema jurídico funcionalmente diferenciado a certeza não pode residir em um dos valores do código.

Contudo, embora não exista uma determinação externa a priori que programe a aplicação do código, a sua recorrência ao longo da história do sistema faz com que o próprio sistema estabeleça regras, qualificando aplicações como corretas ou incorretas e que podem ser chamadas de programas. As leis são, no sistema jurídico, exatamente, programas de aplicação do código. A distinção “entre código e programa estrutura – agora podemos dizer – a autopoiese dos sistemas funcionais”.293 A autopoiese orienta a aplicação do código binário,

estabelecendo um valor de rejeição a todos os demais códigos. Os códigos ter/não-ter, comandante/comandado, verdade/falsidade; lícito/ilícito, rejeitam-se mutuamente e rejeitam outros códigos, como a moral.294 Em termos cibernéticos, os sistemas funcionais são dependentes em relação à energia (ruído, captado no ambiente) e independentes em relação à informação.295 Eles não poderiam existir sem o ambiente, mas não há importação de sentido nem determinação externa quanto à sua organização. De modo similar, com dependência e independência, os sistemas organizam suas relações recíprocas. Como com a diferenciação funcional, cada sistema trata a sua função como preponderante e pressupõe que outras funções são cumpridas em outro lugar, não existe “possibilidade de direção recíproca, já que isso implicaria em certa medida usurpar funções”.296

292 LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.594.

293 LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.594-595.

294 Os valores negativos dos códigos binários (pobreza, subordinação, falsidade, ilegalidade) não são bons ou ruins: o código

sistêmico se coloca em um plano de amoralidade. A moral só entra quando a aplicação do código é corrompida, conduzida a erro, como coloca Luhmann, “dúvidas éticas não podem por certo transformar a verdade em falsidade, embora possam

impedir que se destinem financiamentos a uma determinada investigação”. (LUHMANN,Niklas. La sociedad de la

sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.596).

295 Nesse sentido, Luhmann afirma que a “autopoiese consiste na reprodução (produção a partir de produtos produzidos) de

operações elementares do sistema: por exemplo, pagamentos, afirmações jurídicas, qualificações escolares, decisões coletivamente vinculantes etc. A qualidade distintiva dessas operações elementares – sua inconfundibilidade com relação aos

elementos de outros sistemas – reside em estarem constituídas no âmbito de contingência de um código específico”. O código

é reproduzido a toda e cada operação do sistema. (LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier

Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.596).

Aqui se produz uma certeza importante para a sociedade funcionalmente diferenciada: a certeza de que não há uma certeza alheia à lógica interna de cada sistema (ficando em aberto qual é a certeza dessa lógica interna). Um sistema não pode determinar a lógica de outro sistema. O sistema total da sociedade não é capaz de determinar a lógica dos seus sistemas parciais. Isso não significa que os sistemas não estabeleçam relações entre si. Embora os sistemas sejam operacionalmente fechados, existem eventos e operações que acontecem simultaneamente em mais de um sistema. Um pagamento (sistema econômico) é também o cumprimento de um contrato (sistema jurídico). Manejando a distinção entre autorreferência e heterorreferência, os sistemas podem, nesses eventos simultâneos, atribuir o sentido das suas operações ao ambiente (isto é, a outro sistema).297 A recursividade desses eventos simultâneos tende a formar estruturas comuns de referência para o sentido nos dois sistemas, que são os chamados acoplamentos estruturais.298 É o caso, por exemplo, dos contratos, que acoplam sistema jurídico e sistema econômico. O sistema pode então fazer uso da operação percebida em outro sistema (como irritação e não como informação) para orientar suas operações. Os sistemas atribuem, assim, à função desempenhada por outro sistema, o sentido de uma prestação que pressupõem para desempenhar sua própria função.299

O sistema jurídico, por exemplo, estabiliza de modo generalizado expectativas normativas, contando com o fato de que o poder (que viabiliza o cumprimento compulsório da decisão) está organizado pelo sistema político. A economia calcula rentabilidade futura tendo como garantida a expectativa normativa referente ao cumprimento dos contratos. No entanto, essas operações permanecem vinculadas às redes recursivas dos respectivos sistemas, isto é, dependendo do sistema de referência, têm uma pré-história e um futuro completamente distintos.300 Por isso, não se pode supor que um sistema possa direcionar ou acionar em seu

297 LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.597-

598.

298 LUHMANN,Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder, 2007, p.597).

Como explica Luhmann em outra obra, a formação de estruturas não é possível no vazio, mas pressupõe matéria/energia/ruído, enfim, complexidade ainda não estruturada. Mediante um enlace, um sistema pode utilizar as estruturas de outro sistema para fixar o sentido de possibilidades que ainda lhe estão em aberto, oferecendo suas estruturas para que o outro sistema faça o mesmo. (LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Rafaelle. Teoria della società. 11.ed. Milano: FrancoAngeli, 2003, p.33). Sobre os acoplamentos estruturais do sistema jurídico: (Operational closure and structural coupling: the differentiation of the legal system. In: Cardozo Law Review, nº 5, v. 13, p. 1.419.1441. Como explica o autor, “o acoplamento estrutural entre sistema e ambiente não contribui com operações (ou outros componentes) para a reprodução do sistema. Trata-se simplesmente da forma específica por meio da qual o sistema pressupõe estados ou mudanças no seu ambiente e confia neles”, (p. 1.432).

299 A isso se chama abertura cognitiva dos sistemas autopoiéticos.

favor as operações de outro sistema. As prestações indicam apenas que os sistemas aproveitam, de modo autorreferencial, aquilo que conseguem perceber nas operações dos outros sistemas. Não há, contudo, relações ponto-a-ponto entre os sistemas, não há compreensão mútua, muito menos direcionamentos recíprocos.

O resultado desse arranjo estrutural é que a sociedade funcionalmente diferenciada não conta com a segurança de que determinado âmbito da sociedade (estrato superior, centro, parentela) se responsabilize pela organização do sentido social. Não há um sistema mulifuncional, como a política e a religião puderam ser em sociedades pré-modernas. O sentido das operações sistêmicas é determinado pelo próprio sistema, mas se orienta também pela percepção da atividade sentida em outros sistemas como prestações. Isso implica um aumento considerável de complexidade, pois os sistemas se irritam mutuamente sem poder controlar ou calcular os efeitos dessas irritações.

Diante dessa complexidade, “oscilações de escassa relevância na capacidade ou disponibilidade de prestação dos sistemas – por exemplo, a disponibilidade política a impor o direito – podem provocar nos outros sistemas irritações desproporcionais”.301 Ainda, a

complexidade também se agrava porque cada sistema pode desempenhar apenas a sua função. “Nenhum sistema pode intervir no lugar de outro em caso de emergência ou sequer complementá-lo no caso de continuidade”.302 A complexidade segue crescendo e a sociedade

No documento Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater (páginas 97-107)