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A certeza como probabilidade

No documento Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater (páginas 126-137)

2 CERTEZA E SOCIEDADE

2.2 Reconstrução semântica do centro de certeza: razão, experiência e probabilidade

2.2.3 A certeza como probabilidade

O pensamento racionalista/empirista constrói os problemas da certeza como problemas de causalidade. O mundo é dado por verdades contingentes, mas a contingência dessas verdades é suprimida, pois convertida em lei natural (de repetição de regularidades), a causalidade transforma a contingência em necessidade. Categorias de conhecimento permitem ao sujeito racional compreender essa lei e, a partir dela, fazer cálculos e deduções em que pode amparar suas decisões.378 O pensamento racionalista desenvolve axiomas para a leitura

377 DEGIORGI,Raffaele.Reflexos sobre a semântica da racionalidade e da experiência jurídica. In: Direito, democracia e

risco – vínculos com o futuro. Tradução de Herman Nébias Barreto, Cristiane Branco Macedo e Menelick de Carvalho Netto. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1998, p.93.

378 Trata-se do que Hume chama de crença na existência de uma conexão necessária presente na repetição regular de eventos,

crença essa que é generalizável. Para Hume, a compreensão de um evento qualquer depende da compreensão da sua causa, mas causa seria sempre um problema de probabilidades. A superioridade da probabilidade de determinada causa favoreceria

matemática dessas regularidades e as novas leis da natureza duplicam a realidade: há o mundo do provável e o mundo do improvável, isto é, dos erros normais. Progressivamente, a certeza das coisas já não decorre da coerência lógica com um sistema metafísico exterior, mas da pertinência ao mundo do provável. A incerteza se associa ao improvável, ao risco. A explicação do mundo e da certeza a respeito do mundo por meio da probabilidade (interpretada na forma do risco) é uma marca da Modernidade que revela a persistência dos problemas de superação da perda do centro metafísico de certeza.

É interessante observar, com Leonard Mlodinow, que mesmo culturas pré- modernas, como os gregos, embora conhecessem bem a matemática e a prática de jogos de azar, nunca desenvolveram uma teoria para demonstrar que, jogados dois dados, a probabilidade de ambos caírem no número seis é pequena. A observação do autor é precisa: não há razão para estudar probabilidades quando se acredita que o futuro, posto que desconhecido, é determinado, isto é, se desvela conforme a vontade dos deuses. Qualquer teoria da aleatoriedade seria irrelevante. Para os gregos, as certezas sobre o mundo são fixadas pelo centro metafísico e a matemática era apenas um instrumento para confirmar essas certezas, para demonstrar e comprovar a verdade emanada por esse centro de certeza, razão pela qual insistiam na verdade absoluta, provada pela lógica e pelos axiomas, o que tornava argumentos fundados em probabilidade algo próximo de uma mentira.379

A probabilidade – e, portanto, a aleatoriedade – aparece quando há suficiente incerteza sobre o mundo para que se busque, na contingência, nos erros, no inesperado, um padrão que obedeça a alguma lei, de modo que se possa, mesmo na incerteza, agir e motivar a ação. Para tanto, a própria realidade deve ser concebida como contingente.380

sua ocorrência fortalecendo o aumento na crença da causa. Por meio do conhecimento da probabilidade do evento, o espírito pode se antecipar para desvelar o evento. A probabilidade das causas é como a dos acasos: há aquelas uniformes e constantes, sem irregularidades e que contam com forte crença. Há outras menos certas, irregulares e que cuja falha, normalmente, indica que ainda há causas desconhecidas. Daí porque afirma que, “quando transferimos o passado para o futuro, a fim de que determinemos o efeito que resultará de alguma causa, transferimos todos os diferentes eventos na mesma proporção em que apareceram no passado e consideramos que um se revelou cem vezes, por exemplo, esse outro dez vezes e aquele outro, uma só vez. Como um grande número de inspeções afluem aqui sobre um único evento, elas o fortificam e o confirmam na

imaginação, engendrando esse sentimento que denominamos crença”. (HUME, David. Investigação acerca do

entendimento humano. 2.ed. Tradução de André Campos Mesquita. São Paulo: Escala, 2003, seção VI, §§ 1 e 3, p. 82-84).

379 MLODINOW,Leonard.Oandar do bêbado – como o acaso determina nossas vidas. Tradução de Diego Alfaro. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 35-37.

380 Segundo Mlodinow, na Antiguidade, a noção de probabilidade, como suporte para a verdade, aparece no campo da opinião

ou das verdades morais. Aristóteles sugere que a base lógica para demonstração de argumentos/verdades morais, se dá a partir do número de pessoas/autoridades que sustentam dada opinião. Essa lógica é considerada, inclusive, no sistema de provas do direito romano para contagem e valorização da prova testemunhal. Mas o futuro permanece como um evento certo, ainda que desconhecido. Para o autor havia ainda uma questão tecnológica: a matemática dos antigos não lidava bem com números

Daí porque uma importante estudiosa da teoria dos sistemas, Elena Espósito, associa o nascimento da teoria da probabilidade ao surgimento do romance moderno: ambos, romance e probabilidade, são formas de ficção que não têm a pretensão de reproduzir dados do mundo, mas sim criar um segundo mundo, ficcional, que permite a observação do mundo real a partir de outras possibilidades.381 Enquanto teoria, a probabilidade é um efeito colateral do empirismo: experimentos em situações iguais levavam os cientistas a observações e medições diversas, suscitando dúvidas que diminuíam a certeza possível. Essas dúvidas vão aparecendo no pensamento empirista e a teoria da probabilidade surge como resposta.

Trata-se, porém, de uma teoria sobre a distribuição dos erros e não que pretenda a adequada descrição dos eventos e de sua causalidade.382 Daí porque, afirma Espósito, o interesse na probabilidade nasce mais ligado à necessidade de cálculos de

fracionados e teria dificuldades em lidar com o fato de que a probabilidade de que algo ocorra é sempre menor que 1. Apenas no séc. VII os hindus fizeram avanços significativos nesse campo, conhecimento que chega para os matemáticos europeus por volta do séc. XV. Como explica, “se as pessoas não procuravam por ordem na natureza e não desenvolviam descrições numéricas de eventos, então uma teoria sobre o efeito da aleatoriedade em tais eventos estaria fadada a passar despercebida”. Com a revolução científica em curso, a história seria outra. Ao final do séc. XVIII, os trabalhos de Newton e Leibniz sobre cálculo e logaritmos trazem os instrumentos necessários ao cálculo de regularidades e padrões de aproximação.

(MLODINOW,Leonard.Oandar do bêbado – como o acaso determina nossas vidas. Tradução de Diego Alfaro. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 50-69; 103-105).

381 Conforme a autora explica, no pensamento medieval o critério da verdade não era a mera correspondência ao mundo, mas

a correspondência a um significado mais elevado. Nem toda ficção era uma mentira, a não ser que fingisse algo sem significado. Se a ficção representava algo, poderia representar uma figura do verdadeiro. Conforme, com a Modernidade, essa referência é perdida, a ficção assume outro tipo de função. Não é casual que a estatística e a probabilidade nasçam no séc. XVII junto com o romance moderno, sem pretensão de reproduzir dados do mundo, e sim criar um segundo mundo, que

permita a observação do mundo real a partir de possibilidades. (ESPOSITO,Elena.Probabilità Improbabili – la realtà dela

finzione nella società moderna. Roma: Meltemi, 2008, p.12-15).

382 Como aponta Mlodinow, ainda no final do séc. XVIII, quando era necessário estabelecer com precisão medidas e

contagens (por exemplo, na observação do movimento dos planetas ou da lua) os matemáticos e físicos recorriam a um número áureo, isto é, que se supunha mais adequado por razões lógicas, estéticas ou metafísicas e não a uma média, a partir de diversas medições. Para o pensamento científico de então, as diferenças, a variação entre uma observação e outra era fruto do fracasso, e não um subproduto natural da atividade empírica. Era preciso uma nova teoria matemática mais apta à descrição de observações da natureza em que medições são imperfeitas. Outra razão para essa adaptação eram as conquistas da física experimental, que lidava com magnetismo, luz, calor e eletricidade e que também não podiam reproduzir medições

sempre idênticas. Como explica o autor, “as demandas geradas pela astronomia e pela física experimental fizeram com que

boa parte do trabalho dos matemáticos do fim do século XVIII e início do XIX consistisse em compreender e quantificar os erros aleatórios. Tais esforços levaram a uma nova área, a estatística matemática, que gerou uma série de ferramentas para a

interpretação dos dados surgidos da observação e da experimentação”. (MLODINOW,Leonard.Oandar do bêbado – como

o acaso determina nossas vidas. Tradução de Diego Alfaro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 136-138). A sua base essencial, no entanto, é a regularidade da distribuição dos erros, não a adequada descrição de fatos ou da causalidade. Como explica o autor, “a ideia de que a distribuição dos erros segue alguma lei universal, por vezes chamada Lei dos Erros, é o preceito central no qual se basea a teoria da medição. Sua implicação mágica é que, desde que satisfeitas certas condições muito comuns, qualquer determinação de um valor real baseada em valores medidos poderá ser resolvida empregando-se um único tipo de análise matemática. Quando essa lei universal é empregada, o problema de determinar a posição real de um corpo celeste com base em medições feitas por astrônomos equivale ao de determinar a posição do centro do alvo tendo apenas os buracos das setas, ou a ‘qualidade’ de um vinho com base numa série de notas”. A coerência da estatística decorre da distribuição dos erros. (p.145). Daí a tese do autor de que a compreensão da estatística e da sua relação com o erro (mais do que com a realidade) é fundamental para compreender os limites da sua aplicação aos eventos da vida quotidiana (como a

eficácia de remédios e popularidade de políticos – e, seria de se acrescentar, chances de reversão/manutenção de uma decisão

razoabilidade para decisões arriscadas (quando não há certeza nem dúvida total) do que à descrição da realidade. A probabilidade, assim como a ficção, não é uma mentira quando não se confirma. O erro, ou a não correspondência com a realidade, simplesmente revela um espaço para questionamentos e observações de regularidades que pode justificar a ação em um ou outro sentido.383

Não obstante, a probabilidade e a estatística se difundem sensivelmente ao longo dos séculos XIX e XX, tanto como referência para o agir (escolhas/tomada de decisão), quanto para fornecer modelos de descrição qualitativa da realidade. A superioridade probabilística passa a servir de modelo descritivo não só do futuro previsível, mas também do presente e do passado avaliados estatisticamente.384

Até a Modernidade, segundo Espósito, a expressão “probabilidade” tinha um sentido próximo ao de “verossimilhança” que, então, indicava a correspondência com significados moralmente elevados (como a “bondade”). Esse conceito moral de probabilidade dizia respeito a uma qualidade de crenças e opiniões que não podiam ser demonstradas logicamente. Sua legitimidade derivava da aprovação de outras pessoas com status e, em especial, da autoridade das escrituras e textos antigos. Probabilidade indicava, assim, a validação moral de uma opinião. 385

A difusão moderna das teorias da probabilidade mantém algo dessa concepção: a probabilidade, a despeito da incerteza, que lhe é inerente, e da margem de erros, torna-se critério de validação moral da verdade. Mais do que isso, valida moralmente a ação e as escolhas como razoáveis, passando a ser uma espécie de categoria ética, pois, as probabilidades (e as possibilidades de crença na regularidade) são sempre iguais para todos.

383 ESPOSITO,Elena.Probabilità Improbabili – la realtà dela finzione nella società moderna. Roma: Meltemi, 2008, p.17.

Como explica a autora, “a ruptura fundamental realizada pela teoria da probabilidade, dessa perspectiva, é com a divisão-

continuidade entre lógica e retórica que tinha guiado toda a tradição clássica – em que uma se ocupava da verdade e da

realidade e a outra do âmbito subordinado da opinião, que podia ser real só nos casos em que ocasionalmente coincidente com a verdade”. A probabilidade, desse modo, fica no meio do caminho entre o conhecimento autoevidente e a mera persuasão, delimitando um âmbito em que se pode estar errado sem ser irracional.

384 É possível pensar aqui nas complexas teorias da física quântica que definem a existência como um arranjo de

probabilidades. É interessante também o jocoso exemplo sobre o uso da estatística para medir a distribuição de alimentos: se em dada população, metade das pessoas come um frango por dia e outra metade nada come, estatisticamente, cada um come meio frango por dia. Ou seja, ao passo em que a probabilidade busca descrever o futuro a partir da aleatoriedade, a estatística busca descrever o presente e o passado.

385ESPOSITO,Elena. Probabilità Improbabili – la realtà dela finzione nella società moderna. Roma: Meltemi, 2008,

Descrições a partir das categorias da probabilidade, explica Espósito, tornavam possível a distribuição equitativa das incertezas, como em um jogo ou um contrato, em que as partes iniciam em posições iguais perante as probabilidades.386 A uniformidade da natureza – incluindo aí a natureza humana e das condições do sujeito para perceber e atuar nessa uniformidade – distribui as probabilidades de modo equitativo e, assim, a eleva à categoria de uma ética utilitarista da ação, isto é, como premissa do próprio comportamento e expectativa do comportamento alheio seria obrigatória. Daí sua transposição para o âmbito das decisões políticas, isto é, que afetam terceiros: transmissão das premissas de decisões arriscadas, relativas ao futuro. 387

Vale lembrar que o futuro, no pensamento pré-moderno, era desconhecido, mas não incerto. Estava definido pela vontade dos deuses (pelo centro de certeza metafísico). Não dependia do presente ou de decisões tomadas no presente: aconteceria o que tinha que acontecer. Com a Modernidade e a demolição do antigo centro de certeza, dimensões temporal, social e material do sentido se desvinculam e o futuro se abre.388 Não é mais possível garantir expectativas sobre o futuro por meio do consenso com valores no presente.389

386 ESPOSITO,Elena.Probabilità Improbabili – la realtà dela finzione nella società moderna. Roma: Meltemi, 2008.

387 Nesse sentido, aponta Cassirer, em 1717, o holandês S’Gravessande (16881742) observava que, “quando, tomando por

base certas observações, prevemos fatos que ainda não observamos diretamente, apoiamo-nos no axioma de uniformidade da natureza. Sem esse axioma, sem a hipótese de que as leis que descobrimos hoje na natureza vão manter-se e perdurar mais tarde, toda conclusão inferida do passado para o futuro cairia manifestamente no vazio”. (Willem’s Gravesande. Discurso

inaugural De Matheseos in omnibus scientiis praecipue in Physicis usu (1717) apud CASSIRER,Ernst.A filosofia do

Iluminismo. 3.ed. Campinas: Unicamp, 1997, p.94). Ainda segundo s’ Gravesande, embora o raciocínio fundado no axioma da regularidade empírica não seja um raciocínio lógico, “por analogia, é perfeitamente válido e até indispensável. O saber que temos das coisas físicas, o que sabemos da natureza empírica das coisas, não transpõe o limite desse conhecimento por analogia. Temos, entretanto, o direito e a obrigação de confiar nele, visto que nos é imprescindível aceitar por verdadeiro tudo cuja refutação implicaria a supressão para o homem de todo e qualquer meio de existência empírica, de todo e qualquer tipo de vida social”. (Willem’s Gravesande. Discurso inaugural De Matheseos in omnibus scientiis praecipue in Physicis usu

(1717) apud CASSIRER,Ernst.A filosofia do Iluminismo. 3.ed. Campinas: Unicamp, 1997, p.94).

388 Como explica Niklas Luhmann, na Modernidade, a semântica sobre o tempo, isto é, as observações e a experiência

temporal é controlada pela diferença entre o passado e o futuro. Isso significa que, de todas as possíveis distinções temporais, a distinção entre passado e futuro (melhor do que imanência/transcendência, ou passado/presente) é a que se ajusta melhor para harmonizar a noção de tempo com a de simultâneas e constantes transformações nas estruturas sociais. Enquanto antes da invenção da imprensa havia sentido concentrar esforços na preservação do conhecimento existente, agora trata-se de produzir novos conhecimentos para serem impressos e divulgados. Além disso, a sociedade moderna trabalha com programas temporais diversos, quer se olhe para o comerciante, o monge ou político. “O velho cosmos europeu de essências se

desintegra, tudo começa a se mover e apenas as leis da natureza que controlam esse movimento – especialmente as leis

newtonianas – foram consideradas, por um período de tempo, como invariáveis”. De mais a mais, como a aleatoriedade

demonstra, ao passo em que o passado lida com fatos específicos, o futuro não pode se antecipar, pois, “toda tentativa de especificar causalidades leva a dificuldades ainda maiores. O que vai acontecer nunca depende de um único evento. Há sempre uma concatenação de circunstâncias, de modo que as incertezas se multiplicam na proporção do rigor da análise”.

(LUHMANN,Niklas. Risk – a sociological theory. Tradução de Rhodes Barrett. New York: de Gruyter, 2006, p. 38-41).

Como resultado, a unidade entre dimensão temporal e social que caracterizou o pensamento dos sécs XVIII e XIX, como na ideia de progresso, deixa de existir.

Nesse contexto, enquanto proposta para uma ética utilitarista, a probabilidade aparece como instrumento de pesquisa para dar tratamento à incerteza social e temporal.390 A probabilidade permite tratar o futuro por meio de decisões que possam ser transmitidas aos demais como decisões razoáveis ou, ao menos, compreensíveis. Não é possível conhecer o futuro, mas é possível ter o futuro como referência do presente, condicionando observações e tomadas de decisão ao se apresentar na forma ficcional provável/improvável, com a qual se transmite premissas de decisões sobre o que não é ainda conhecido.391

A probabilidade se apresenta então como um medium para a produção de sentido, em que a comunicação pode atuar por meio de formas, como o risco. Na tomada de decisão, a probabilidade corresponde à orientação ao futuro presente, isto é, a um futuro que, no presente, é determinado como resultado de uma decisão que está sendo tomada. A probabilidade se apresenta como uma subdivisão da certeza em que se pressupõe “que haja uma hipótese justa ante facto e que o cálculo da probabilidade seja necessário apenas porque nós não sabemos qual é” essa hipótese.392 Haveria uma resposta certa sobre o futuro (ele seria

determinado) e a probabilidade ajudaria a prever essa resposta.

A ficção da previsibilidade permite tratar o futuro, que é desconhecido, como se ele fosse certo e determinado. Para Espósito, existe uma vantagem nessa estratégia de comunicação sobre a incerteza (futuro), que é a possibilidade de transmitir, por meio da ficção, transparência sobre a decisão. Nas palavras da autora, com o cálculo de probabilidade, “por mais que o futuro seja e continue inseguro, se dispõe de fundamentos decisionais seguros, sobre os quais se pode supor encontrar também o consenso dos demais: com uma única manobra se tornam gerenciáveis as contingências temporal e social”.393

390 No entanto, a filosofia positivista do séc. XIX rejeita a probabilidade como fonte de qualquer verdade, justamente porque,

ao calcular o acaso na realidade, nega a existência de leis causais reais. Nesse sentido, segundo Augusto Comte, o estabelecimento de leis naturais em relação aos fenômenos (inclusive sociais) seria indispensável para o progresso das ciências e seria ameaçada “por causa da ignorância ainda habitual das leis sociológicas, o princípio da invariabilidade das relações físicas permanece algumas vezes sujeito a graves alterações, até mesmo nos estudos puramente matemáticos, quando os vemos, por exemplo, preconizar cotidianamente um pretenso cálculo do acaso, que supõe implicitamente a ausência de toda lei real a respeito de certos acontecimentos, sobretudo quando o homem neles intervém”. (Discurso sobre o espírito positivo, primeira parte. In: Curso de filosofia positiva; Discurso sobre o espírito positivo; Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo; Catecismo positivista; COMTE, Auguste. Seleção de textos de José Arthur Giannotti. Tradução de José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.50-51).

391 ESPOSITO,Elena.Probabilità Improbabili – la realtà dela finzione nella società moderna. Roma: Meltemi, 2008, p.21-

25.

392 ESPOSITO,Elena.Probabilità Improbabili – la realtà dela finzione nella società moderna. Roma: Meltemi, 2008, p. 26.

Contudo, ao longo dos séculos XIX e XX, a semântica da probabilidade e seus artefatos vai se alterando. Com a formalização teórica da matemática da probabilidade e seus desdobramentos, em especial no âmbito da economia, a autoridade dos números parece conferir ao cálculo probabilístico a capacidade de se converter em lei da natureza, isto é, de refletir com precisão a própria realidade. 394

Vai sendo difundida a ideia de que estatística e probabilidade, números agregados, possam servir para estudar as características invariáveis de certos objetos. A probabilidade vai sendo desenvolvida como “disciplina certa para estudar objetos incertos, e não como disciplina da incerteza (como era originariamente)”.395

Fala-se em lei estatística e, enquanto técnica de controle da incerteza, a probabilidade já não se refere apenas ao futuro, mas a todos os campos do conhecimento. A estatística passa a ser vista como uma leitura não-subjetiva da realidade, capaz de neutralizar a subjetividade do observador. O mediano assume a qualidade de normal, previsível e ganha qualidade moral. A curva de Gauss, elaborada para demonstrar erros, passa a sinalizar uma qualidade moral, como a do homem médio: um estado de equilíbrio e harmonia, longe de

No documento Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater (páginas 126-137)