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Bachelard e Popper: o conhecimento como aproximação

3.1 Conhecimento, noção basilar

3.1.1 Bachelard e Popper: o conhecimento como aproximação

Entre os autores que se preocuparam com a compreensão do conhecimento e desafiaram a noção tradicional da filosofia, o francês Gaston Bachelard (1884- 1962) tem uma série de contribuições para nossa reflexão, em especial com a parte de sua obra dedicada à epistemologia histórica. Embora o foco de sua produção seja mais detidamente o conhecimento científico, muitas de suas ideias ajudam a pensar o conhecimento em termos mais ampliados. Se hoje a tipificação dos diferentes “conhecimentos” parece mais clara, com ciência, senso comum, filosofia, religião e ideologia em territórios delimitados (FONSECA, 2000), até o fim do século XIX, segundo Bachelard (2002), acreditava-se que o conhecimento do real era algo empiricamente unificado. Na visão do autor, no início do século XX o pensamento científico encontrava-se em situação de estagnação, e o conhecimento era então entendido como algo uniforme, homogêneo, resultante da sensação em relação ao real; era “[...] a ciência do nosso próprio mundo, no contato com a experiência cotidiana, organizado por uma razão universal e estável, com a sanção final de nosso interesse comum” (BACHELARD, 2002, p. 11).29 Essencialmente empírica, a ciência focava na observação imediata, pesos, medidas, contagens; “[...] desconfiem da regra, apliquem os jovens espíritos ao concreto, ao fato. Ver para compreender, esse é o ideal dessa estranha pedagogia” (BACHELARD, 2002, p. 12).30 Bachelard identifica três períodos do pensamento científico: um “estado pré-científico”, da antiguidade clássica até o Renascimento e abrangendo os séculos XVI a XVIII; o “estado científico”, que inicia no final do século XVIII, se estende por todo o XIX e atinge o princípio do século XX; e a era do “novo espírito científico”, a partir de 1905, quando

29 No original: “[...] la science de notre propre monde, au contact de l’expérience quotidienne, organisée par une raison universelle et stable, avec la sanction finale de notre intérêt commun. » 30 No original: “[...] pesez, mesurez, comptez ; méfiez-vous de l’abstrait, de la règle ; attachez les jeunes esprits au concret, au fait. Voir pour comprendre, tel est l’idéal de cette étrange pédagogie. »

a relatividade einsteiniana “[...] deformará os conceitos primordiais que acreditávamos estar consolidados” (BACHELARD, 2011, p. 9).31

O rompimento entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, ou entre a experiência comum e a técnica científica, é precisamente o que caracteriza esse “novo espírito científico”, fundamentado em um “racionalismo aplicado” – um tipo de racionalismo integral32 e dialético33 que não se dissocia do empirismo, mas pressupõe a aplicação das teorias e experiências na realidade (BACHELARD, 1986; 2004a). Recorrendo a sua formação inicial em estudos de ciências, o filósofo usa exemplos da Física e os avanços teóricos observados nessa disciplina, na época, para desenvolver um pensamento que confronta a validade da epistemologia cartesiana, questionando se esta, “[...] toda apoiada na referência às ideias simples, pode bastar para caracterizar o pensamento científico atual” (BACHELARD, 1986, p. 19). Embora seja um método eficaz de explicação do mundo, o pensamento cartesiano, para Bachelard, é ineficaz no trabalho de “[...] complicar a experiência, o que é a verdadeira função da investigação objetiva” (BACHELARD, 1986, p. 99). A explicação da realidade por meio da lei simples não tinha, para o autor, valor descritivo, pois, em sua análise, a descrição por meio da simplificação representava apenas um ponto de referência. A simplificação é o inverso da explicação e implica a exclusão de elementos importantes para a compreensão do todo. Sucintamente, “simplificar é sacrificar” (BACHELARD, 2004b, p. 97). Ou seja, o autor considera válida a ação de isolar um objeto de observação, desde que isso seja feito de forma consciente, sob vigilância epistemológica, e sem perder de vista o todo.

Com que direito se supõe a separação inicial das naturezas simples? [...] De uma maneira geral, o simples é sempre o simplificado; só poderá ser pensado corretamente na medida em que se apresentar como o produto de um processo de simplificação. Se não se quiser fazer esta difícil transposição epistemológica, menosprezar-se-á a direção exata da matematização da experiência.34 [...] Ao falar de uma epistemologia não cartesiana, não é na

31 No original: “[...] va déformer des concepts primordiaux que l’on croyat à jamais immobiles”.

32 O racionalismo integral ou integrante pode ser compreendido como uma cultura científica comum a todos os domínios disciplinares, estes chamados de “racionalismos regionais” (BACHELARD, 2004a). 33 A concepção de dialética de Bachelard é distinta das tradicionais, tais como a hegeliana ou a marxista. Na obra do autor, o termo está relacionado à ideia de retificação dos conceitos, representando o movimento indutivo que reorganiza o saber. A revisão de antigos axiomas, reformulação das hipóteses, depuração das experiências e controle dos instrumentos metodológicos ocorrem sempre por meio de processos dialéticos. A dialética, para Bachelard, “[...] é o processo de ajustamento recíproco da Teoria e da Experiência, não enquanto adequação formal, mas enquanto démarche [movimento] progressiva de retificação das teorias pela integração das críticas que tendem a destruir os obstáculos” (JAPIASSÚ, 1976, p. 169).

34 Bachelard refere-se à figura do “matemático” para definir genericamente o que chamaríamos de “teórico”, ou seja, um racionalista que procura a organização lógica dos fenômenos. A ele se opõe o

condenação das teses da física cartesiana, ou mesmo na condenação do mecanismo cujo espírito se mantinha cartesiano, que pretendemos insistir, mas sim numa condenação da doutrina das naturezas simples e absolutas (BACHELARD, 1986, p. 99-101).

Na perspectiva da epistemologia histórica, o objeto de estudo é o conhecimento em seu movimento, sempre em construção; ele nunca é acabado e investiga todo um domínio de problemas reais. Aproximação e retificação são duas palavras centrais na epistemologia bachelardiana, que lança a ideia de conhecimento aproximado em oposição à possibilidade de um conhecimento acabado, verdadeiro, absoluto. A finalidade da ciência, para o autor, é a descrição sistemática e exaustiva do objeto de estudo, como sintetiza na primeira frase de sua tese de doutoramento, “Ensaio sobre o conhecimento aproximado”, publicada em 1928: “Conhecer é descrever para re-conhecer” (BACHELARD, 2004b, p. 14). O processo de conhecimento ocorre em ciclos, pois sempre se parte da descrição e se volta a ela, em um duplo sentido de construção do real, que vai da generalização à verificação, sendo que ambas não são completas. “Assim que ocorre a verificação, que de fato nunca é total, ela segmenta a generalização e traz novos problemas. O progresso científico segue portanto uma via dupla” (BACHELARD, 2004b, p. 14). O conhecimento nunca pode ser inteiro e fechado a acréscimos, como supõem os idealistas, já que a ciência postula uma realidade que comporte a possibilidade de uma pesquisa sem fim. “A essência da realidade reside na resistência ao conhecimento. Vamos pois adotar como postulado da epistemologia o caráter sempre inacabado do conhecimento” (BACHELARD, 2004b, p. 17). Além de inacabado, o conhecimento deve ser considerado também em fluxo, mesclado intimamente ao processo de reflexão e longe de sua origem sensível: “Só então ele tem um sentido pleno. A fonte é um mero ponto geográfico e não contém a força viva do rio” (BACHELARD, 2004b, p. 18).

O conhecimento aproximado que se mantém sempre em movimento evolui por meio de constantes retificações do pensamento: o que se conhece hoje é a sequência de algo que já era conhecido, com correções, ampliações e superações. “O conhecimento em movimento é um modo de criação contínua; o antigo explica o novo e o assimila; e, vice-versa, o novo reforça o antigo e o reorganiza” (BACHELARD, 2004b, p. 19). Um elemento essencial na construção do

“experimentador”, que seria o empirista que trabalha com experiências aplicáveis e construídas (JAPIASSÚ, 1976).

conhecimento científico é o conceito, que Bachelard define como um “decreto pelo qual se enumeram as características que são dadas como suficientes para reconhecer um objeto” (BACHELARD, 2004b, p. 27). Para o conhecimento científico, o conceito deve ser explicitado de forma adequada para as circunstâncias do objeto estudado, segundo a finalidade e de acordo com o juízo do pesquisador. Além disso, o conceito só tem sentido pleno, para Bachelard, como integrante de uma proposição, ou seja, dentro de uma construção de pensamento. A conceituação é um esforço de objetividade que exige que os conceitos sejam colocados em movimento, combinados, ressignificados e analisados, no que o autor considera “um verdadeiro movimento epistemológico” (BACHELARD, 2004b, p. 24).

Outra noção importante no pensamento de Bachelard quando se considera o conhecimento é a de obstáculo epistemológico, que pode ser compreendida como todo tipo de entrave, retardo ou perturbação no ato de conhecer que interfere negativamente na relação entre o sujeito observador e o processo de conhecimento. Trata-se, por assim dizer, de uma resistência do pensamento ao próprio pensamento. Os obstáculos, para o autor, são causas de estagnação do conhecimento científico, interferências que podem comprometer a objetividade do pesquisador na observação da realidade: entre eles, podem estar a opinião, o senso comum e a experiência imediata. A opinião, especificamente, é vista por Bachelard como o oposto do conhecimento:

O espírito científico nos proíbe de ter opinião sobre questões que não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular claramente. O que quer que se diga, na vida científica, os problemas não se colocam por eles mesmos. É precisamente esse sentido de problema que dá a marca do verdadeiro espírito científico. Para um espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não houve pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é dado. Tudo é construído (BACHELARD, 2011, p. 14, grifo do autor).35

A experiência imediata, por sua vez, constitui-se obstáculo epistemológico por antecipar-se à crítica, elemento que necessariamente deve integrar o espírito científico. Ao observar a realidade, o cientista deve afastar-se de seu objeto e

35 No original: “L’esprit scientifique nous interdit d’avoir une opinion sur des questions que nous ne comprenons pas, sur des questions que nous ne savons pas formuler clairement. Avant tout, il faut savoir poser des problèmes. Et quoi qu’on dise, dans la vie scientifique, les problèmes ne se posent pas d’eux-mêmes. C’est précisément ce sens du problème qui donne la marque du véritable esprit scientifique. Pour un esprit scientifique, toute connaissance est une réponse à une question. S’il n’y a pas eu de question, il ne peut y avoir connaissance scientifique. Rien ne va de soi. Rien n’est donné. Tout est construit. »

construí-lo teoricamente, pensando-o em função de uma problemática teórica e submetendo-o a interrogações relacionadas à realidade da qual faz parte. Da mesma forma, a vigilância em relação ao senso comum como obstáculo epistemológico deve evitar a contaminação do pesquisador por ideias generalizantes e ultrapassadas durante o trabalho de construção do conhecimento (BACHELARD, 2011). A vigilância epistemológica é a atitude de atenção crítica que o pesquisador deve manter em relação ao processo de construção da ciência e delimitação do objeto de estudo necessários ao pensamento preciso; trata-se da “[...] clara consciência da aplicação rigorosa de um método” (BACHELARD, 2004a, p. 79).36

Considerado polêmico em sua época, o pensamento de Bachelard com sua crítica ao empirismo e às sínteses simplificadoras representa uma proposição original e influente na história do pensamento científico que encontrou aspectos paralelos em autores como o austríaco Karl Popper (1902-1994) e o norte-americano Thomas Kuhn, este último autor da noção de paradigma já abordada no Capítulo 2. Popper, antiempirista e racionalista como Bachelard, também considera que o conhecimento é sempre o aprimoramento de algum conhecimento existente ou a modificação de algum conhecimento anterior, e que essa construção tem o objetivo de chegar sempre mais perto da verdade. No entanto, sua visão a respeito do senso comum é distinta da de Bachelard: enquanto este afirma que o pensamento científico precisa romper com o senso comum para desenvolver-se, em Popper o ponto de partida para o conhecimento é justamente o senso comum. O autor considera recomendável que a ciência parta de ideias do senso comum, por mais que estas possam parecer vagas, pois o conhecimento progride por meio do pensamento crítico operacionalizado no método científico. “A ciência, a filosofia, o pensamento racional, todos devem partir do senso comum. [...] Toda ciência e toda filosofia são senso comum esclarecido” (POPPER, 1999, p. 42). Popper entende o senso comum como o conjunto de opiniões ou saberes instintivos compartilhados por muitas pessoas, que podem ou não ser adequados ou verdadeiros, e que, se se revelam inadequados ou falsos, são colocados de lado, fazendo progredir o conhecimento. O autor afirma a irrefutabilidade do realismo em oposição ao idealismo e defende que a principal preocupação da filosofia e da ciência deve ser a busca da verdade. A verdade, aqui, é entendida como a correspondência com os fatos (ou com a realidade), mas na prática o conhecimento nunca chega a atingi-la de modo absoluto: está sempre perseguindo um aumento em

seu conteúdo de verdade. Um novo conhecimento é sempre a superação crítica de um conhecimento anterior e uma nova teoria é sempre uma maior aproximação da verdade em relação à teoria que ela complementa ou substitui (POPPER, 1999).

Embora o senso comum deva ser sempre o ponto de partida para o conhecimento, isso não quer dizer, para Popper, que ele não deva ser visto criticamente. Nesse sentido, o autor problematiza a ideia de que o conhecimento é adquirido por meio do acúmulo de informações e experiências processadas por meio dos sentidos – que ele chama de “teoria do balde mental” ou “teoria de senso comum do conhecimento”. Segundo essa teoria, a existência de um sujeito conhecedor é imprescindível para que haja conhecimento, portanto o único tipo de conhecimento possível seria o que Popper nomina como conhecimento subjetivo, cuja teorização foi explicitada por Descartes: a atividade de conhecer pressupõe a existência de um sujeito conhecedor, e é o ser subjetivo quem conhece. Popper afirma que a visão do conhecimento subjetivo, que condiciona o conhecimento à existência de um sujeito, ignora a possibilidade do conhecimento em seu sentido objetivo, ou seja, do conhecimento objetivado no conteúdo lógico de teorias, conjecturas e suposições, como em livros, publicações científicas, materiais técnicos e bancos de dados, ou em discussões dessas teorias das mais variadas maneiras. Esse acervo do conhecimento objetivo, que Popper define como integrante do “mundo 3”, guarda certa autonomia em relação aos sujeitos produtores do conhecimento. Sua “teoria dos três mundos” define como “mundo 1” o mundo físico e como “mundo 2”, o mundo de nossas experiências conscientes (POPPER, 1999).

3.1.2 Abordagens sociológicas: construção da realidade, representações