• Nenhum resultado encontrado

2.1 O caminho do Método

2.1.1 O paradigma do Ocidente

O paradigma genericamente chamado de cartesiano, portanto, formulado por Descartes e consolidado a partir do século XVII, separa não só sujeito e objeto, mas também coloca em oposição, de um lado, a filosofia e a pesquisa reflexiva, e de outro, a ciência e a pesquisa objetiva. Esses princípios de organização da ciência, na análise de Morin, ampliaram seu alcance para outros setores da sociedade, como a economia e os Estados-nação, e as dissociações se prolongam: alma/corpo, espírito/matéria, qualidade/quantidade, finalidade/causalidade, sentimento/razão, liberdade/determinismo, existência/essência. O chamado “grande paradigma do Ocidente” tem a disjunção como relação lógica e determina os conceitos soberanos. A

desobediência às disjunções é desviante ou marginal. Os traços comuns entre a organização da ciência e os demais setores aparecem no tratamento do real, na separação sujeito/objeto, na redução à ordem, na valorização do cálculo, na prática da hierarquização, na valorização da especialização, no empirismo, na dissociação entre o humano e o natural, na racionalização e no estabelecimento da conexão ciência-técnica. “Assim, o paradigma da ciência clássica articula-se no grande paradigma do Ocidente” (MORIN, 2011a, p. 273).

Na lógica do paradigma do Ocidente, a complexidade do mundo dos fenômenos é resolvível a partir de princípios simples e leis gerais; trata-se de um paradigma de simplificação, que se caracteriza por princípios de generalidade, redução e disjunção que comandam a inteligibilidade do conhecimento científico clássico. Operando por esses princípios, o conhecimento científico alcançou avanços notáveis, mas revelou-se limitado exatamente no enfrentamento da complexidade do real (MORIN, 2010b). O conhecimento opera por meio da especialização, do isolamento e da desarticulação; questões fundamentais relacionadas à existência são repassadas à filosofia e à religião, numa cisão entre cultura humanista, antropocentrada e reflexiva, e cultura científica, cujo conhecimento organiza-se crescentemente.

É graças ao método que isola, separa, desune, reduz à unidade, mede, que a ciência descobriu a célula, a molécula, o átomo, a partícula, as galáxias, os quasares, os pulsares, a gravitação, o eletromagnetismo, o quantum de energia, que ela aprendeu a interpretar as pedras, os sedimentos, os fósseis, os ossos, as escrituras incógnitas, inclusive a escritura inscrita no DNA. Entretanto, as estruturas desses conhecimentos são dissociadas umas das outras. Física e biologia só se comunicam hoje por um istmo. [...] A própria tríade constitutiva do conceito de homem, indivíduo-sociedade-espécie, está totalmente dilacerada [...]. O homem se esfarela: fica uma mão-ferramenta aqui, uma língua-que-fala lá, um sexo acolá e um pouco de cérebro em algum outro lugar. Quanto mais miserável a ideia de homem, mais eliminável ela é: o homem das ciências humanas é um espectro suprafísico e suprabiológico. Como o homem, o mundo é desmembrado entre as ciências, esfarelado entre as disciplinas, pulverizado em informações (MORIN, 2008a, p. 26).

Ao reiterar que o paradigma do Ocidente permitiu, sem dúvida, os grandes progressos do conhecimento científico e da reflexão filosófica a partir do século XVII, pois impulsionou o movimento que levou à delimitação de cada campo de conhecimento, Morin dá a pista para uma ideia fundamental em sua teoria. Seu entusiasmo pela religação dos saberes pressupõe que, de fato, os saberes tenham sido, antes, separados; para que saberes, ciências e disciplinas constituam-se e

circunscrevam, cada um, seus respectivos campos de atuação, o pensamento cartesiano foi e é indispensável. Ao contrário do que pode parecer numa abordagem preliminar, o método da complexidade não é propriamente anticartesiano, nem contrário às ciências ou ao método científico, mas sustenta a importância de que se caminhe além dos princípios de disjunção, redução e abstração para a construção do conhecimento pertinente. Expõe, de fato, uma insatisfação com o paradigma do Ocidente, mas em função do que ele tem de mutilante, fragmentário e excludente quando opera as disjunções e jamais as reverte. A ênfase é na religação. Morin afirma que sua proposta se inspira justamente nos resultados que a ciência construiu nesses séculos de desenvolvimento e em formas de superar desafios colocados pela própria ciência: “[...] longe de querer abolir as disciplinas, desejo elaborar um conhecimento que se alimente de suas aquisições. Além disso, seus próprios progressos fizeram ruir os princípios que sustentavam o majestoso edifício de sua visão do mundo” (MORIN, 2010a, p. 223).

A necessidade de um pensamento complexo evidencia-se, para o autor, na medida em que se evidenciam as limitações do modelo de pensamento simplificador e se percebe a complexidade intrínseca que se encontra no cerne da ciência. É preciso reconhecer que, paralelamente ao progresso dos conhecimentos científicos nos últimos três séculos, esses conhecimentos permanecem inacessíveis à maioria das pessoas; a ciência produz, indubitavelmente, benefícios em áreas como a saúde e o desenvolvimento humano, mas, da mesma forma, não necessariamente esses benefícios têm alcance global; por outro lado, o conhecimento científico muitas vezes resulta no aparecimento de produtos e tecnologias que, em tese, deveriam ter finalidades benéficas, mas cujos efeitos são claramente prejudiciais no âmbito social. Se em sua gênese a ciência era praticada por investigadores amadores independentes, hoje, institucionalizada, ela guarda estreita relação com as esferas de poder que a mantêm e subsidiam, e por isso a controlam. Segue seus ritos institucionais e não tem tempo ou espaço para pensar sobre si mesma. Morin pondera que problematizar essas questões deve ir além de considerar um “lado mau” da ciência – visão que seria extremamente simplificadora –, mas ressalta que é preciso encontrar formas de lidar com essas ambivalências. Nesse contexto, promover a reflexão da sociedade sobre a ciência, e também da ciência sobre si mesma, são movimentos urgentes que podem ser fermentados com o olhar da complexidade. O pensamento complexo propõe um princípio de explicação mais rico que o princípio de simplificação; baseia-se também

na necessidade de distinguir e analisar, mas complementa o processo com o restabelecimento da comunicação entre o objeto em análise e seu contexto, incluindo- se aí o observador; todo e partes são compreendidos a partir da problemática da organização. “Um pensamento capaz de enfrentar a complexidade do real, permitindo ao mesmo tempo à ciência refletir sobre ela mesma” (MORIN, 2010b, p. 31).

As ciências precisam de um exercício da razão que as considere nas condições atuais de sua evolução (MORIN, 2010a). Percebendo que em meados do século XX a razão cartesiana mostrava-se insuficiente para alimentar o método científico e para balizar a compreensão das ciências, Morin elabora sua proposta de método a partir de estudos da Física, da Biologia, da Sociologia e da Teoria da Ciência, inspirando-se em trabalhos de autores como Bachelard, Kuhn, Lakatos, Feyerabend, Henri Atlan, von Foerster, Maturana e Varela, entre muitos outros. Os seis volumes da obra “O método” foram publicados entre 1977 e 2004, de forma intermitente, dando espaço à produção e publicação de outras obras entre eles. Os subtítulos – “A natureza da natureza”, “A vida da vida”, “O conhecimento do conhecimento”, “As ideias”, “A humanidade da humanidade: identidade humana” e “Ética” – indicam o escopo de cada um, porém o alicerce da obra é a proposta de um método multidimensional que dê conta da complexidade dos fenômenos.

No percurso – que tem muitos trechos nebulosos, esburacados e de topografia desafiadora, é preciso admitir – Morin parte, no volume 1, de um olhar sobre a desordem da natureza, que sempre gera reorganizações em um circuito tetralógico de ordem-desordem-interações-organização. No segundo volume, o sujeito é inserido no circuito da vida e o autor apresenta o conceito de auto-eco-organização. A ideia de reinserção consciente do sujeito no processo de conhecimento, por meio de sua reconciliação com o objeto observado, permeia toda a construção. O processo do conhecimento é o tema do terceiro volume, que abrange as noções de computação (no sentido cognitivo), inteligência, possibilidades e limites do conhecimento humano, além de refletir sobre as próprias dificuldades de se compreender o que é o conhecimento, dada a polissemia do termo. Em “O método 4”, Morin trabalha com a noologia, que é a área do conhecimento que estuda o mundo das ideias – o volume é um prolongamento da discussão do anterior. “As ideias” aborda as condições de surgimento da ciência no Ocidente, a separação entre cultura científica e cultura humanista, traz reflexões sobre o papel do intelectual na sociedade e apresenta uma

abordagem sobre a noção de paradigma. No volume 5, propõe a concepção de que o ser humano deve ser concebido como a trindade indivíduo-sociedade-espécie, ou seja, simultaneamente em seus aspectos que o distinguem enquanto ser individual, como integrante de uma sociedade e como parte da espécie humana em seus aspectos bioantropológicos. Já o volume 6 problematiza a ética e retorna a ideias centrais da complexidade tratadas nos volumes precedentes, além de apresentar sua proposta de ética da compreensão e de regeneração do humanismo como desafio (MORIN, 2008a, 2011a, 2011b, 2011c, 2012a, 2015; CARVALHO, 2014).