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2.3 A centralidade do conhecimento

2.3.1 Conhecimento pertinente, conhecimento em contexto

Como vimos, saberes separados, fragmentados e compartimentados entre disciplinas são resultado de um modelo de pensamento que se desenvolveu mediante os princípios de disjunção e redução, a partir do século XVII. Sem a consolidação desse modelo, provavelmente não haveria muitos dos desenvolvimentos científicos disponíveis hoje e seus decorrentes avanços socioculturais. No entanto, como observei na primeira parte deste capítulo, com apoio em Morin, esse processo não trouxe somente benefícios: ampliado ao modelo de pensamento da sociedade em geral, o que o autor chama de Paradigma do Ocidente, sedimenta uma visão de mundo em que as disjunções predominam, como sujeito/objeto, corpo/alma, ciência/filosofia, ser humano/natureza. Em contraste, as realidades e problemas são de natureza polidisciplinar, transversal, multidimensional, global. Os

desenvolvimentos disciplinares das ciências trouxeram vantagens, mas também a superespecialização, o confinamento e o despedaçamento do saber. “Não só produziram o conhecimento e a elucidação, mas também a ignorância e a cegueira” (MORIN, 2006, p. 15). É frente a essa observação que, para Morin, o conhecimento complexo deve operar no sentido de contextualizar: alocar em contexto as informações, saberes, agentes integrantes da realidade observada, para que o fenômeno em questão adquira sentido e o conhecimento torne-se relevante. Para o autor,

[...] o conhecimento pertinente é o que é capaz de situar qualquer informação em seu contexto e, se possível, no conjunto em que está inscrita. Podemos dizer até que o conhecimento progride não tanto por sofisticação, formalização e abstração, mas, principalmente, pela capacidade de contextualizar e englobar. [...] Devemos, pois, pensar o problema do ensino, considerando, por um lado, os efeitos cada vez mais graves da compartimentação dos saberes e da incapacidade de articulá-los, uns aos outros; por outro lado, considerando que a aptidão para contextualizar e integrar é uma qualidade fundamental da mente humana, que precisa ser desenvolvida, e não atrofiada (MORIN, 2006, p. 15-16).

Embora na citação o autor faça menção especificamente ao problema da educação formal, a necessidade de organizar o conhecimento por meio da contextualização se estende a outras formas de organização social. Contextualizar, na lógica complexa, implica religar os saberes de maneira pertinente lançando mão de princípios de organização que não são propostos por Morin como “receita”, mas como estratégias de pensamento que mobilizam a inteligência do observador. Situar um acontecimento em seu contexto não significa apenas inscrevê-lo em um cenário ou perspectiva; trata-se de procurar relações e inter-retroações entre o fenômeno e o contexto, assim como reconhecer a unidade dentro do diverso e o diverso dentro da unidade; compreender como uma mudança local gera repercussões no todo e vice- versa; reconhecer a unidade e a singularidade humanas em meio a diversidades culturais. Essa forma de pensar, para o autor, é uma aptidão natural que é desarticulada tanto no sistema de educação tradicional quanto nos sistemas sociais de maneira geral (MORIN, 2003; 2006; 2010a).

Na lógica do pensamento complexo, o conhecimento das informações ou dados isolados não é suficiente nem pertinente; as informações ou dados devem ser situadas em seu contexto para que adquiram significado para o sujeito observador. O conhecimento complexo, dessa forma, é organizador. Em seu processo de produção, contudo, estão implicados os passos de distinção, objetivação e análise, para a

posterior reinserção do objeto no contexto. “Conhecer é ser capaz de distinguir e, depois, relacionar o que foi distinguido” (MORIN, 1986, p. 112). O desafio é realizar as operações cognitivas de distinção-religação com a vigilância que evite o caminho fácil e mais familiar da simplificação. Conhecimento, contexto e complexidade, portanto, são noções indissociáveis.

O conhecimento complexo procura situar seu objeto na rede à qual ele se encontra conectado. De maneira inversa, o conhecimento simplificador visa a conhecer isolando seu objeto, ignorando, portanto, o que o liga a seu contexto e, mais amplamente, a um processo ou a uma organização global. O conhecimento complexo objetiva reconhecer o que liga ou religa o objeto a seu contexto, o processo ou organização em que ele se inscreve. Na verdade, um conhecimento é mais rico, mais pertinente a partir do momento em que o religamos a um fato, um elemento, uma informação, um dado, de seu contexto. [...] Isso significa que o desafio da complexidade exige a comunicação entre conhecimentos separados; exige, ao mesmo tempo, princípios de organização do conhecimento que permitam religar os saberes de maneira pertinente” (MORIN, 2010a, p. 190-191).

O princípio da religação é um exercício cognitivo permanente para a complexidade: a religação do objeto, informação ou elemento com seu contexto, a religação dos saberes separados pelo paradigma cartesiano, a religação entre sujeito e objeto e o restabelecimento do diálogo entre cultura científica e cultura humanista – o que, para Morin, constituiria uma “policultura”, ou seja, a concretização do diálogo entre os saberes especializados, de modo a situá-los no contexto que esclarece seu sentido. Essa “nova cultura” seria capaz de exercer um pensamento que é “[...] capaz de antecipar, certamente não de predizer, mas de encarar as possibilidades, os riscos e as chances. A cultura é, em suma, o que ajuda o espírito a contextualizar, globalizar e antecipar”. Auto-organizadora, ela capta as informações principais, seleciona os problemas e opera os princípios de inteligibilidade necessários para “desatar os nós estratégicos do saber” (MORIN, 2010c, p. 45).

Religar os saberes, reconhecer os contextos e o complexo, buscar um conhecimento polidisciplinar ou transdisciplinar, comportar um método para tratar o complexo, enfrentar incertezas e contradições, diagnosticar levando os contextos em consideração e perceber a solidariedade entre os elementos de um todo são alguns dos elementos que Morin identifica como integrantes do “bom pensamento”, um pensamento guiado pela ética do conhecimento. O “mau pensamento”, por sua vez, fragmenta e compartimenta os conhecimentos, tende a ignorar os conceitos, obedece ao paradigma de simplificação, mutila a compreensão e limita os diagnósticos,

dificulta a compreensão. “Assim, o pensar mal rói a ética nas suas fontes: solidariedade/responsabilidade. A incapacidade de ver o todo, de religar-se ao todo, gera irresponsabilidade e falta de solidariedade” (MORIN, 2011b, p. 62). Já o “pensar bem” reconhece a complexidade humana e conduz à compreensão.

Operando em relação dialógica, compreensão e explicação são elementos constituintes do processo que leva ao conhecimento. Embora possam, numa primeira análise, parecer justapostas, sua relação é ao mesmo tempo complementar e de oposição. A compreensão evoca a ideia de síntese e está relacionada àquilo de que se pode fazer uma representação concreta, ou que se pode captar de maneira imediata por analogia. Pode ter, também, o sentido de um modo fundamental de conhecimento que implica subjetividade, afetividade e empatia – mais ligada, nessa direção, ao que Morin nomina “ética da compreensão”. Já a explicação “[...] é um processo abstrato de demonstrações logicamente realizadas, a partir de dados objetivos, em virtude de necessidades causais materiais ou formais e/ou em virtude de uma adequação a estruturas ou modelos” (MORIN, 2015, p. 164). É, portanto, o passo lógico e analítico anterior e necessário à compreensão que envolve a mobilização de determinismos, causalidades e finalidades. Para a explicação, utilizam-se recursos lógicos e empíricos com o objetivo de reconhecer um objeto enquanto tal, procedendo por indução ou dedução. Ela é caracterizada por seu objetivismo e é englobada e integrada pela compreensão (MORIN, 2001).

A relação entre compreensão e explicação é dialógica e necessariamente complexa, ou seja, trata-se de uma relação ao mesmo tempo complementar, concorrente e antagônica. Para Morin, essa dialógica nunca encontrou um equilíbrio, pois há uma disjunção entre a cultura técnico-científica, que é subcompreensiva, e a cultura humanista, subexplicativa.

Seria fecundo desenvolver simultaneamente os campos da compreensão e da explicação; a progressão de um dos termos da dialógica não deveria realizar- se na regressão do outro; mesmo no coração das verdades compreensivas, há algo que pode e deve ser explicado; mesmo no conhecimento explicativo das coisas físicas, o espírito de sofisticação, a sutileza psicológica, a intuição, como diria Einstein, dependentes de certa forma, da compreensão, são vanguardas da explicação... (MORIN, 2015, p. 167).

Explicação e compreensão dialogicamente relacionadas são passos fecundos do processo de construção do conhecimento pertinente, que é o conhecimento que contextualiza a informação, situa o objeto no conjunto do qual ele faz parte e que

estabelece relações e conexões entre os assuntos. Explicar, o passo ligado ao abstrato, ao lógico, às apropriações analíticas, à disjunção, às demonstrações, à objetividade e à dessubjetivação, não é suficiente para essa construção. O processo só se completa quando há a compreensão, que produz a dimensão subjetiva no conhecimento e na explicação, ou seja, traz os elementos concretos, analógicos; as apropriações globais, as conjunções, projeções e identificações; a implicação do sujeito e o pleno emprego da subjetividade. Estabelece-se assim um círculo construtivo de conhecimento, de apreensão e apropriação subjetiva da realidade.

A discussão sobre a noção de conhecimento, contudo, não se esgota aqui. O próximo capítulo é dedicado a uma continuação desse estudo, ampliado a outros autores cujas ideias são colocadas em diálogo com as de Morin e na direção de abordagens sociológicas que focam no jornalismo como forma de conhecimento social. A perspectiva é orientar minha proposta de ressignificação dessa noção, na qual proponho pensar o conhecimento do jornalismo como aquele que contextualiza e organiza as informações.

3 CONHECIMENTO, JORNALISMO E CONTEXTO

Atribui-se ao sociólogo e jornalista norte-americano Robert Park (1864-1944) o pioneirismo na asserção de que o jornalismo é uma forma de conhecimento, perspectiva de estudo difundida no Brasil a partir da teoria proposta por Adelmo Genro Filho (1951-1988) na década de 1980. Tanto Park (1940) quanto Genro Filho (2012) ressaltam em suas argumentações as peculiaridades do conhecimento produzido pelo jornalismo, que se situa, para o primeiro, em algum ponto entre os tipos de conhecimento definidos como “acquaintance with” e “knowledge about”;28 e, para o segundo, é distinto do conhecimento particular, produzido pela arte, e do universal, almejado pela ciência, pois tem a singularidade como matéria-prima. Instigada pelas interrogações iniciais de Morin (2015) no volume de “O método” dedicado ao conhecimento, porém, proponho neste capítulo dar um passo anterior na reflexão sobre o conhecimento produzido pelo jornalismo, investigando de forma mais aprofundada, inicialmente, a compreensão sobre o conhecimento na perspectiva de alguns teóricos relevantes. Como bem observam Lisboa e Benetti (2015), a associação jornalismo/conhecimento já se tornou praticamente consensuada por um conjunto de pesquisadores, porém é raro encontrar reflexões a respeito de como esse conhecimento se constitui, ou sobre os modos pelos quais o jornalismo se torna um conhecimento, ou ainda sobre o funcionamento desse processo. Para além disso, é importante ter claro que essa palavra pode evocar uma verdadeira miríade de significados, a depender dos alicerces epistêmicos do pesquisador, da sua base teórica e do objeto abordado. No intuito de buscar uma sintonia mais clara entre a ideia de conhecimento e o jornalismo contemporâneo é que proponho então refletir sobre a compreensão que se tem do primeiro, para em seguida abordar as conexões entre ambos no escopo desta tese.

Faço esse percurso a partir de uma perspectiva da filosofia da ciência, com o francês Gaston Bachelard e o austríaco Karl Popper, importantes pensadores do início do século 20, cujas obras têm em comum o reconhecimento da incompletude do conhecimento, a valorização do método e a percepção de que o conhecimento é sempre resultado da superação de um conhecimento anterior. Na sequência,

28 Em geral essas expressões são traduzidas para a língua portuguesa como “conhecimento de” e “conhecimento acerca de”, como no caso das traduções do texto de Park incluídas nas coletâneas de Steinberg (1970) e Berger e Marocco (2008). Porém, como observo na segunda parte deste capítulo, tais traduções não permitem uma compreensão precisa de algumas das ideias do autor, razão pela qual mantenho as expressões, aqui, no idioma original e busco interpretá-las mais adiante.

apresento uma entrada pela via da sociologia do conhecimento, buscando trabalhos de autores que investigaram as maneiras como o conhecimento pode ser construído socialmente, especificamente Berger e Luckmann, Robert Merton, Serge Moscovici e Walter Lippmann, retomando na sequência aspectos relevantes da teoria do conhecimento complexo que dialogam com esses autores. Com essas leituras, abro caminho para a retomada de teóricos fundamentais no estudo das relações entre jornalismo e conhecimento: Tobias Peucer, Otto Groth, Robert Park, Adelmo Genro Filho e Eduardo Meditsch, este último o único contemporâneo entre todos. Por fim, introduzo a discussão das relações entre conhecimento e contexto no jornalismo, a partir de uma revisão dos trabalhos de alguns autores que abordam essa perspectiva, porém com enfoque ainda apartado do cenário da Era da Informação.