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2.2 A complexidade como macroconceito

2.2.1 Paradigma

Na seção anterior, a crítica de Morin ao paradigma científico de base cartesiana aparece como sustentação para a proposta de seu método da complexidade, que, por sua vez, só faz sentido quando orientado por um princípio de organização de conhecimento que corresponda a um paradigma de complexidade, em oposição ao paradigma de simplificação. Embora seja possível inferir do termo “paradigma” um sentido que corresponde à ideia de visão de mundo dominante em determinada época ou comunidade científica, é importante que se faça uma abordagem mais aprofundada sobre esse tema, a que faz referência reiteradas vezes ao longo de sua obra – tema que é um dos componentes do macroconceito de complexidade e ao qual o autor dedica parte importante do volume 4 de “O método”, centrado no estudo do mundo das ideias. Para o autor, num sentido geral, os paradigmas são os princípios organizadores do conhecimento que governam a visão que as pessoas têm da realidade e podem agir, muitas vezes, de forma invisível, embora seus efeitos sejam nítidos (MORIN, 2008b; 2011a).

Morin (2008b; 2010b; 2011a) desenvolve sua noção de paradigma expandindo-a a partir de uma historicização do conceito. A palavra ganhou notoriedade ao ser apropriada pelo físico norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996) para descrever o processo de desenvolvimento das ciências. Na obra “A estrutura das revoluções científicas”, Kuhn sustenta que as ciências não se desenvolvem continuamente por meio do acúmulo de conhecimentos, mas por meio de saltos qualitativos, e os elementos-chave para essa transição por saltos são os paradigmas. Nos períodos de passagem de um paradigma a outro, ocorrem debates e incertezas e discutem-se os caminhos para a solução da crise. Esses períodos são chamados por Kuhn de “períodos pré-paradigmáticos” e marcam as revoluções científicas (FONSECA et al., 2018). Em sua definição, paradigmas científicos são “[...] realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modulares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, 1975, p. 13). Para Kuhn, portanto, os paradigmas científicos correspondem a um consenso, na comunidade científica, a respeito do conhecimento válido para a ciência.

Morin remonta a Platão e Aristóteles para resgatar sentidos ancestrais da palavra de origem grega parádeigma, que significa modelo ou exemplo. Para Platão, referia-se à exemplificação do modelo ou da regra; para Aristóteles, era o argumento

que deveria ser generalizado a partir de um exemplo. Na linguística estrutural, o termo é definido por oposição e complementaridade com a noção de sintagma: no eixo vertical, o paradigma designa a língua ou código; no horizontal, o sintagma corresponde à dimensão da palavra ou da mensagem. O sentido da linguística, contudo, manteve-se afastado do vocabulário do debate científico. A versão mais difundida para a noção de paradigma é aquela que se aproxima do sentido de modelo ou regra geral, “[...] seja o conjunto das representações, crenças, ideias que se ilustram de maneira exemplar ou que ilustram casos exemplares” (MORIN, 2011a, p. 259). A importância do sentido atribuído a ela por Kuhn, na análise de Morin, é que com a noção de paradigma científico consolida-se a ideia de que o desenvolvimento da ciência não ocorre por meio da acumulação de conhecimentos, mas por transformação dos princípios que organizam o conhecimento; nessa perspectiva, as grandes transformações na história da ciência são impulsionadas por processos de revolução paradigmática. “A ciência não se limita a crescer; transforma-se” (MORIN, 2010b, p. 137).

O sentido sociológico que Kuhn insere no termo também é importante, pontua Morin, pois enfatiza o papel desempenhado pelas crenças, valores reconhecidos e técnicas comuns aos membros de determinado grupo na constituição dos paradigmas. Dessa forma, o paradigma tem “[...] valor radical de orientação metodológica, de esquemas fundamentais de pensamento, de pressupostos ou de crenças desempenhando um papel central, detendo assim um poder dominador sobre as teorias” (MORIN, 2011a, p. 259). Ao mesmo tempo, há um sentido vago na noção de Kuhn, pois o próprio autor norte-americano reconhece, na obra “A estrutura das revoluções científicas”, que ao longo do texto podem-se inferir vários sentidos associados ao termo paradigma, que, em seu extremo, pode ser interpretado como a adesão coletiva dos cientistas a uma visão de mundo. Em que pese a autocrítica a respeito dessa imprecisão, o conceito mais difundido de Kuhn continua influente no pensamento científico, tendo, inclusive, inspirado o trabalho dos autores canadenses Jean Charron e Jean de Bonville (2016), que propõem uma original periodização para o jornalismo identificando quatro grandes paradigmas jornalísticos com base nos paradigmas científicos.

Para Morin, os paradigmas são os princípios organizadores do conhecimento e estão no núcleo do pensamento humano. Controlam as teorias e raciocínios, como o paradigma de Kuhn, mas também o campo cognitivo, intelectual e cultural que os

geram. Em sua proposta conceitual, sugere uma associação da ideia de paradigma não somente ao saber científico, mas a todo o sistema noológico, que trata do mundo das ideias. Essa definição inclui elementos semânticos, lógicos e ideológicos:

Um paradigma contém, para todos os discursos que se realizam sob o seu domínio, os conceitos fundamentais ou as categorias-mestras de inteligibilidade, ao mesmo tempo que o tipo de relações lógicas de atração/repulsão (conjunção, disjunção, implicação ou outras) entre esses conceitos e categorias (MORIN, 2011a, p. 261).

Ao promover os conceitos fundamentais ou categorias-mestras de inteligibilidade, o paradigma seleciona as ideias que serão integradas no discurso ou na teoria e as que serão descartadas ou recusadas. As concepções deterministas, por exemplo, elegem a ordem como categoria-mestra, assim como as concepções espiritualistas escolhem o espírito; essas duas concepções excluem, respectivamente, a desordem e a matéria. No que diz respeito às operações lógicas mestras, o paradigma privilegia aquelas que se tornam preponderantes, pertinentes e evidentes sob seu domínio. “É ele que dá validade e universalidade à lógica que elegeu. Por isso mesmo, dá aos discursos e teorias que controla as características da necessidade e da verdade” (MORIN, 2011a, p. 262). Por meio das ideologias e teorias, o paradigma determina as mentalidades e visões de mundo; ele se torna praticamente invisível e invulnerável, sendo necessário, para que um pereça e outro surja, que ocorram “[...] frestas, fissuras, erosões, corrosões no edifício das concepções e teorias subentendidas [...]” (MORIN, 2011a, p. 268). Novas teses ou hipóteses devem surgir, não mais enquadradas no paradigma dominante, com validade confirmada e verificada, enquanto as teses e hipóteses anteriores devem ser consideradas como inválidas.

Fazendo referência ao epistemólogo japonês Mogoroh Maruyama (1929-2018), Morin observa que vários paradigmas podem coexistir numa mesma cultura, de forma harmônica ou não; da mesma forma, é possível que matrizes paradigmáticas diferentes sejam englobadas por um mesmo grande paradigma dominante. A revolução copernicana é um exemplo: a teoria heliocêntrica, formulada inicialmente pelo polonês Nicolau Copérnico no século XVI e depois corroborada por outros estudiosos, derrubou o sistema geocêntrico, que acabou por revelar-se uma doutrina que escondia a visão de centralidade do homem e seu hábitat, colocando-os no centro do universo. A afirmação do heliocentrismo de que é a Terra que se move ao redor do

Sol, e não o contrário, significou um abalo no paradigma antropocêntrico/geocêntrico, atingiu as verdades religiosas e confrontou a autoridade da Igreja. Houve dificuldades e resistências religiosas e intelectuais para que o foco antropocêntrico fosse suplantado pela ideia de que a Terra é apenas um pequeno planeta integrante de um sistema que orbita em torno de uma grande estrela (MORIN, 2011a). Porém, a matriz paradigmática heliocêntrica não venceu totalmente: cinco séculos depois, todas as descobertas científicas nos ramos da astronomia e da astrofísica, além de todos os avanços cada vez mais surpreendentes na área da pesquisa espacial, são postos em questão por grupos obscurantistas antropocêntricos que nem propriamente resgatam o paradigma geocêntrico: preferem negar as evidências científicas da existência da gravidade, do sistema solar e do próprio universo em expansão, formado por corpos celestes de diferentes matérias, e disseminam a ideia de que o planeta Terra tem o formato de um disco.19

Ao paradigma de simplificação que reúne os princípios de inteligibilidade da ciência clássica, e que influenciam não só o pensamento científico, mas todos os setores da vida social, Morin opõe sua proposta de paradigma de complexidade, “[...] conjunto dos princípios de inteligibilidade que, ligados uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do universo (físico, biológico, antropossocial)” (MORIN, 2010b, p. 330).

a) Razão, racionalidade e racionalização

A razão, visão coerente dos fenômenos, das coisas e do universo, tem um aspecto lógico e pode, segundo Morin, desdobrar-se em dois ramos: racionalidade e racionalização. Ela opera segundo a lógica dos princípios organizadores do conhecimento, que são os paradigmas. Aberta, a racionalidade é o diálogo entre o sujeito que pensa e o mundo real. Se o mundo não está de acordo com o sistema lógico do sujeito, este admite sua insuficiência e reconhece que encontra apenas uma parte do real. “A racionalidade, de qualquer modo, não tem nunca a pretensão de esgotar num sistema lógico a totalidade do real, mas tem a vontade de dialogar com o que lhe resiste” (MORIN, 2008b, p. 102). Já a racionalização é fechada, pois quer encerrar a realidade em um sistema coerente; tudo o que contradiz esse sistema é desviado, esquecido, visto como ilusão ou aparência. Num grau extremo, a

19 Os chamados “terraplanistas” formam grupos organizados com representações em vários países, inclusive o Brasil, e se dedicam a argumentar que o formato esférico do planeta Terra é uma conspiração internacional (ALVIM, 2017; LOPES, 2017).

racionalização pode se transformar em paranoia, que é uma racionalização delirante. Racionalidade e racionalização têm a mesma origem, mas tornam-se opositoras ao se desenvolverem. É difícil definir a fronteira entre ambas. “Temos todos uma tendência inconsciente para afastar do nosso espírito o que vai contradizê-lo [...] Vamos minimizar ou rejeitar os argumentos contrários. Vamos ter uma atenção seletiva sobre o que favorece a nossa ideia” (MORIN, 2008b, p. 102-103). Um exemplo de racionalização política é a ideia do complô judeu para dominar o mundo através do capital financeiro, no início do século XX, que “[...] é a explicação universal para que o antissemita compreenda logicamente a repulsa que sente pelo judeu” (MORIN, 1986, p. 135). Também a paranoia anticomunista disseminada por grupos ultraconservadores no Brasil, que acusam vários setores da sociedade, como as universidades, escolas e instituições culturais (por extensão, professores, estudantes e artistas), de serem propagadores do chamado “marxismo cultural” (sic), pode ser interpretada como um exemplo de racionalização ideológica.20 O “delírio racionalista”, como define Morin, distorce o real para que ele obedeça à ideia que se quer impor como dominante (MORIN, 1986).

b) Imprinting e normalização

Os paradigmas estão no princípio do pensamento humano e comandam esquemas e modelos explicativos, que, por sua vez, impõem uma visão de mundo. Dessa forma, eles controlam a lógica dos pensamentos, discursos e teorias. A isso, associa-se o determinismo dos sistemas de convicção e crença que acabam por impor, inadvertidamente, o imprinting cultural, matriz que estrutura o conformismo, e a normalização, silenciamento de quaisquer manifestações de dúvidas ou contestações das ideias dominantes. Morin esclarece que o termo imprinting é oriundo da biologia e designa a marca incontornável imposta pelas primeiras experiências do animal quando filhote. “Ora, há um imprinting cultural que marca os humanos, desde o nascimento, com o selo da cultura, primeiro familiar e depois escolar, prosseguindo na universidade ou na profissão” (MORIN, 2011a, p. 29). Imposto pela cultura, o imprinting marca irreversivelmente o modo de conhecer e de agir das pessoas, reforçado pela aprendizagem, que elimina outros modos possíveis de conhecer.

20 A exemplo das declarações públicas feitas por gestores do Ministério da Educação no governo brasileiro instalado a partir de 2019 (FILHO, 2019).

Mesmo quando se atenua a força do tabu, que proíbe, como nefasta e perversa, toda ideia não conforme, o imprinting cultural determina a desatenção seletiva, que nos faz considerar tudo aquilo que não concorde com nossas crenças, e o recalque eliminatório, que nos faz recusar toda informação inadequada às nossas convicções, ou toda objeção vinda de fonte considerada má (MORIN, 2011b, p. 30).

A normalização opera de forma complementar ao imprinting e se manifesta de forma a reprimir ou intimidar as iniciativas de contestação ou dúvida em relação às crenças coletivas. “[...] com seus subaspectos de conformismo, exerce uma prevenção contra o desvio e elimina-o, se ele se manifesta” (MORIN, 2011b, p. 31). Juntos, o imprinting e a normalização atuam na perpetuação dos modos de conhecimento e de verdades estabelecidas social e culturalmente. “As crenças que se impõem são fortalecidas pela fé que suscitaram. Assim, se reproduzem não somente os conhecimentos, mas as estruturas e os modos que determinam a invariância dos conhecimentos” (MORIN, 2011b, p. 31-32).

No entanto, mesmo com essas determinações internas e externas que perpetuam o conformismo e engessam o conhecimento, Morin observa que, ao mesmo tempo, o conhecimento também encontra brechas para evoluir, transformar- se, progredir ou mesmo regredir. Isso ocorre sempre que a pluralidade e a diversidade de pontos de vista encontram condições de expressão em sociedades que permitem o encontro, a comunicação e o debate de ideias, estimulando processos de dialógica cultural. “Basta, por vezes, uma pequena brecha no determinismo, permitindo a emergência de um desvio inovador ou provocado por um abscesso de crise, para criar as condições iniciais de uma transformação que pode, eventualmente, tornar-se profunda” (MORIN, 2011b, p. 39).