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3.2 BAIRROS DOS GRUPOS PESQUISADOS

3.2.4 Bairro de Icoaraci

Agora vamos nos distanciar um pouco do centro de Belém e percorrer aproximadamente 17 km até chegar ao distrito de Icoaraci, onde se encontra a famosa “Vila Sorriso”. De acordo

com a pesquisa do geógrafo Benjamim Dias (2007), as origens históricas de Icoaraci são marcadas desde o século XVIII a partir da primeira investida do governo provincial, como local estratégico em relação à cidade de Belém. Na sua tese sobre o processo de ocupação e urbanização de Icoaraci, Dias divide o mesmo em quatro fases. A primeira fase inicia no século XVIII com a doação de terras que iriam se constituir em fazendas no século XIX, que posteriormente foram vendidas para a construção de um leprosário que seria o embrião do povoado. A segunda fase ocorre na segunda metade do século XIX quando se eleva ao status de Vila, denominada de Vila do Pinheiro. A partir da década de 1950, a Vila é transformada em Distrito do Município de Belém e se inicia os primeiros investimentos econômicos com a instalação de indústrias locais e comércio para atender a população do distrito e entorno. Neste momento, um número expressivo de moradores migrou para o bairro em busca de oportunidades de trabalho, estimulado por estas atividades econômicas. A terceira fase vai da década de 1950 a 1970 quando a Vila do Pinheiro é integrada à cidade de Belém, como Distrito o qual recebe o nome de Icoaraci e tem seu espaço urbano redefinido. Dias (2007) marca esta fase com um forte desenvolvimento de uma indústria de base tradicional tendo como produto o beneficiamento de matéria prima de produtos regionais. Tal desenvolvimento vai estimular a anexação de espaços de feição mais rural, fortalecendo o centro urbano e expandindo o crescimento demográfico. A quarta fase iniciou na década de 1970 e se estende até os dias atuais, quando houve maior intervenção do Estado por meio de projetos e políticas desenvolvimentistas que trouxeram consequências diversas na modificação do Distrito, principalmente aquelas referentes às alterações ambientais.

As modificações mais recentes correspondem à criação de novos bairros no entorno de Icoaraci e com isso o aumento populacional na área, aumento este que não foi acompanhado pelo desenvolvimento dos equipamentos públicos de uso coletivo para atender estes moradores, muitos dos quais vivem em situações difíceis, como aponta o geógrafo.

A falta de infraestrutura se manifesta pelo não investimento de políticas sociais capazes de garantir melhor atendimento, como da saúde, educação, saneamento, transporte entre outras, sendo que a maioria de sua população, ao necessitar de melhores serviços, tem que se deslocar a Belém. Ademais, apesar das indústrias empregarem grande número de operários, elas não são suficientes para absorver a grande massa de trabalhadores locais que se veem obrigados a procurar Belém, mercados que sejam capazes de absorvê-los e vice-versa, por isso, contribuem para sobrecarregar o sistema de transporte coletivo bastante precário e deficitário (DIAS, 2007, p. 131).

Percebemos pelo texto acima, que o distrito de Icoaraci sofre dos mesmos problemas que afligem alguns bairros em Belém, como já relatei anteriormente. A diferença entre eles é

que este Distrito tem sofrido um maior impacto ambiental em virtude da sua localização geográfica que estimulou um mercado de exploração da natureza, mas sem considerar as consequências drásticas para o meio-ambiente natural e humano. E para muitas famílias que migraram do interior para Icoaraci em busca de uma vida melhor acabam se deparando com condições precárias de sobrevivência. Um exemplo de tal situação é das famílias que vivem de pesca artesanal, pois não conseguem se inserir nas empresas de pesca industrial e têm que lidar com um mercado que não pode competir. Com a falta de recursos estas famílias moram o mais próximo possível dos rios em moradias desconfortáveis, sem saneamento básico, limpeza das ruas, coleta de lixo dada a dificuldade de acesso às residências. De acordo com a pesquisa da antropóloga Kirla Anderson (2007), sobre a participação de homens e mulheres na manutenção das suas famílias em comunidades de pescadores em Icoaraci, ela relata que apesar destas pessoas disporem dos equipamentos urbanos de uso coletivo, o acesso e o serviço oferecido por eles não são suficientes para uma melhor qualidade de vida. Percebemos pelas pesquisas de Dias e Anderson que o desenvolvimento urbano pela qual passou o distrito de Icoaraci nas últimas quatro décadas modificou sua paisagem urbana, que com base num discurso desenvolvimentista trouxe problemas de diversas ordens a sua população. E como nos informam as pesquisas citadas, as pessoas de menor poder aquisitivo sofrem de maneira mais intensa frente a estas dificuldades urbanas. Como podemos observar na figura abaixo

Figura 10 - Entrada principal de uma comunidade de pescadores

Figura 11 – Casas em madeira numa comunidade em Icoaraci

Fonte: http://www.diarioonline.com.br:81/noticias/para/noticia-379055-zenaldo-quer-expulsar- moradores-de-icoaraci.html Acessado em 29 out. 2016-10-29

O Distrito de Icoaraci é composto por nove bairros tais como: Águas Negras; Agulha, Campina de Icoaraci; Cruzeiro; Maracacuera; Paracuri; Parque Guajará; Ponta Grossa e Tenoné (para melhor visualização ver ANEXO E). Sua população totaliza em 167.035 habitantes, sendo a maioria de mulheres 85.626 de acordo com o Anuário de Belém de 2011. Com um pouco mais de 10% do total populacional da cidade de Belém, percebemos pelos dados acima que o distrito de Icoaraci é densamente povoado, além de se estender por uma área extensa que tem como limites a Baía do Guajará e o Rio Maguari. Apesar da implantação de indústrias de beneficiamento de matérias-primas regionais, ampliação do comércio, atrativo turístico e implantação de projetos governamentais tais iniciativas não foram suficientes para garantir melhorias de vida para a maioria da população, principalmente as pessoas com baixo poder aquisitivo que foram sendo empurradas para as áreas menos valorizadas invadindo mananciais e margens de rios e igarapés.

Com estas informações em mente sobre a história de Icoaraci e seus problemas sócios ambientais que ainda marcam as reivindicações de sua população convido vocês a me seguirem para o bairro do Cruzeiro, onde está localizada a sede do Cordão de Bicho Oncinha na Rua Santa Izabel, 615 que é também a residência da Mestra Bernadete Lourdes Bonifácio. Qualquer dúvida para não errar o caminho verifique o mapa abaixo, mas também pode perguntar onde mora Dona Lourdes da Oncinha.

Figura 12 – Localização do grupo Cordão de Bicho Oncinha

Fonte: Google maps 2016

O bairro do Cruzeiro é um dos mais antigos de Icoaraci tendo como principal atrativo a orla e a praia de mesmo nome. Estes locais tem um forte apelo turístico e recebem visitantes de Belém e outras cidades que buscam conhecer as paisagens fluviais amazônicas, o artesanato local vendido na feirinha na orla, tomar água de coco geladinha além de experimentar pratos deliciosos da culinária paraense nos diversos restaurantes espalhados pelo local. Este espaço apresenta intensa movimentação de pessoas em busca de diversão e lazer, como se pode observar na figura abaixo:

Figura 13 – Imagem da orla de Icoaraci

Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=343411 Acessado em 31 de out. 2016

Além das atrações proporcionadas pela orla e sua paisagem natural, Icoaraci conta com vários grupos de cultura popular como bois-bumbás, cordões de pássaros e bichos, carimbó, quadrilhas juninas e artesanato ceramista que fazem do distrito um local de grande profusão cultural93. Nascida e criada no bairro, a Mestra Bernadete teve contato e envolvimento com a cultura popular desde a infância, quando os grupos se apresentavam na comunidade e no quintal da casa de sua família. Bernadete também tem experiência observando o grupo de Boi-bumbá Rosa Branca que pertencia a seu pai. Desta maneira, tanto ela quanto a sua família e comunidade tinham nos grupos de cultura popular sua diversão e lazer nas noites juninas.

E desta experiência a Mestra Bernadete foi estabelecendo sua relação com a comunidade por meio da participação de crianças, adolescentes e alguns adultos que integram os grupos Cordão da Oncinha e Boi-bumbá Vaquinha Mimosa94. Para manter suas atividades ela conta com a ajuda principalmente das mães das crianças participantes e também de pessoas da vizinhança que contratam apresentações dos grupos oferecendo lanches ou até

93 Mais informações sobre a diversidade cultural de Icoaraci ver: FIGUEIREDO, Sílvio Lima & TAVARES, Auda

Pianni. Mestres da Cultura. Edufpa, Belém, 2006.

94 Mestra Bernadete sendo subversiva trocou o boi pela Vaca, sendo o único grupo com esta representação na

mesmo um pequeno cachê, embora grande parte das despesas sejam arcadas por Bernadete. Como podemos observar nas seguintes falas:

A dificuldade financeira até dá pra passar mana, dá! Isso a gente dá ajeita de um lado

ajeita do outro, mas é um problema. Às vezes as mães a gente faz um bingo, faz um festival de cachorro quente, elas ajudam nessa parte. Porque às vezes a gente apronta um brincante e às vezes a mãe não tem condições de pregar nem um botão! A gente ás vezes manda eles ficam agoniado pra querer levar. “Ai tia quero levar minha roupa”. Quando vem, porque tu não pregou? “Mamãe não tinha dinheiro pra comprar botão”. Ai em cima da hora a minha cunhada arranja a gente prega às vezes prega com a agulha noutro dia prega o botão e a gente vai levando95.

Aquele senhor dali todos anos ele manda buscar! Todos anos a gente vai dançá lá. Ele dá o mingau e .... Aí dali da terceira rua já é o contrário a colega ela... ela convida os amigo e contrata a Oncinha, quando termina ela pega o chapéu e roda.[...] E a outra irmã dela também que mora lá no Fidélis todo anos ela manda ela contrata ônibus e manda buscar pra gente se apresentar na programação que ela faz lá. É muito bom!

Destes relatos depreendem-se as formas de ajuda que a Mestra Bernadete recebe das pessoas da comunidade. As mães das crianças que participam do grupo a auxiliam na promoção de eventos pra angariar fundos, já que recursos materiais ou dinheiro não são possíveis de dispor. Esta situação socioeconômica em que se encontram as mães dessas crianças eu pude constatar quando visitei pela primeira vez a casa de Bernadete. Quando ao caminhar pela rua pude perceber que estava adentrando numa comunidade de baixo poder aquisitivo, onde as casas de madeira revelavam o status social de quem morava ali. Além das casas, a rua apesar de asfaltada demonstrava o problema de limpeza e drenagem, pois vi focos de esgoto ao céu aberto em frente a algumas casas, sacos de lixo amontoados e fiquei imaginando como devia ficar a rua em dias de chuva, já que aquela parte era baixa topograficamente. Quando comentei com um amigo, morador de Icoaraci, que eu tinha visitado a sede da Oncinha, ele me questionou com espanto o que eu estava fazendo naquela área que é considerada perigosa por moradores locais. Esta observação do meu amigo reitera os dados apresentados pelas pesquisas de Benjamim Dias (2007) e Kirla Anderson (2007), já citados anteriormente, de que a população pobre foi sendo afastada das áreas mais valorizadas de Icoaraci e ocupando as áreas de baixada com infraestrutura deficitária gerando situações de vulnerabilidade e violência.

Observando a comunidade ao redor e escutando o relato da Mestra Bernadete eu pude perceber quanto as suas atividades são relevantes pra sua comunidade, posto que muitas mães vejam no grupo da Oncinha e da Vaquinha Mimosa a única opção de lazer e diversão para suas crianças. È claro que outras opções há, mas por medo da violência urbana, crianças e adolescentes tem como companhia a televisão o que limita sua convivência com outras formas de lazer. Mas, o reconhecimento de suas atividades também alcança pessoas das outras ruas que contratam os dois grupos durante o mês de junho oferecendo mingaus, lanches e até mesmo cachês, garantindo uma agenda ocupada de apresentações.

Bernadete tem uma rede de relações ampla e consolidada com sua comunidade, tendo seu trabalho reconhecido e apoiado pela mesma. Nos últimos anos ela tem lidado com o problema da falta de brincantes, pois os jovens e adolescentes estão mais interessados em quadrilhas juninas, festas noturnas. Outro problema com a qual a Mestra tem que lidar é a ausência de brincantes decorrente da conversão da/os mesma/os para as igrejas evangélicas, que a/os impedem de sair no grupo. Como ela reforça neste relato:

Eu fico triste porque eu já teve muitos brincantes bons sabes? Mas, os...as adolescentes nessa época agora já não querem mais este negócio de teatro. Eles querem esse negócio de quadrilha! Quadrilha! Aí eu perdi muitos brincantes. Ano passado foi três brincantes é... mudaram de religião, viraram evangélico e não conseguiram sair. E esse ano a gente fica perdido quando chega nessa época porque tem que ter aquela parte né? das comédia e tem que ter os textos e cada personagem tem um texto né?Aí ficava ruim porque tava faltando personagem e a gente ficava desesperado que até a minha filha entrou numa... tava faltando a minha filha entrou numa personagem.

A ajuda da família também é fundamental e ela tem na sua filha, netos, netas, a cunhada e o marido uma parceria consolidada para que Bernadete continue com a atividade dos seus grupos, embora ela não tenha garantia que quando falecer terá continuidade, pois seu filho já disse que quando ela morrer vão encerrar tudo, porque não terão paciência e força de vontade, pois reconhece que é um trabalho árduo. Mas, enquanto ela viver e tiver saúde para manter suas atividades, a comunidade pode contar com as apresentações do Cordão de Bicho da Oncinha e o Boi-bumbá Vaquinha Mimosa, pois Bernadete afirmou que gosta, adora e sua paixão é a cultura popular, que a motiva a colocar o grupo na rua, apesar das dificuldades. Seu compromisso com a cultura e com a ajuda e apoio de familiares e da vizinhança são elementos propulsores na atuação e contribuição da mestra Bernadete para a riqueza cultural da Vila Sorriso.