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Bauoio do Povo Grande

No documento TCHIKUMBI: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 90-95)

1.3 Caracterização da comunidade Povo Grande

1.3.1 Bauoio do Povo Grande

Povo Grande é a aldeia onde nasceu a minha interlocutora, minha mãe Maria das Dores, especificamente na localidade de Chimbolo, fazendo parte do grupo étnico Bauoio. Segundo Martins (1961) não se sabe exatamente quando surgiram os Bauoio, mas que a sua chegada não parece ser anterior a 1500.

Santa (2014, p. 1) defende que, quando o assunto é escrever a história de Cabinda, deve-se começar a partir da gênedeve-se dos povos Bantu, como os Bacongo que deve-se fixaram primeiro a Norte e ao Sul da parte do Rio Congo ou Zaire, e também no Noroeste do território da atual República de Angola, entre os séculos XII e XIII.

Mas a tribo Bakongo tem vários clãs. E, em Cabinda, encontramos as seguintes:

Bauoio, Bakongo, Balinge, Baluango, Basundi, Baiombe, Bavili e um mui pequeno clã, praticamente desaparecido e do qual hoje pouco ou nada se fala, o Bakoki, que vivia ao longo da costa marítima, dado à pesca, começando junto à foz do Lulondo, no Buku-Mazi, até quase à lagoa da Massábi (MARTINS,1972, p. 81).

Santa (2014) e Martins (1972) também nos trazem o discurso que na medida em que o tempo foi passando as populações Bantu constituíram o povo Bakongo falantes do Kikongo, e mais tarde vieram a dar origem aos grupos étnicos existentes em Cabinda: os clãs Bauoio, Basundi, Balinge, Baluango, Bavili, Bakongo (dos nove clãs descendentes de Vua li Maben).

Todos os clãs mencionados possuem os mesmos sistemas religiosos. O grupo étnico Bauoio do Povo Grande é um grupo social que tem uma cultura e história em comum; se identificam umas com as outras. Como o meu caso e o da minha mãe, podemos ser identificadas tendo como base semelhanças culturais e biológicas, duas Bichiento Bauoio do Povo Grande.

De acordo com Massanga (2014), geralmente, entende-se que os grupos étnicos compartilham uma origem comum, exibem uma continuidade no tempo, possuem a mesma noção de história, projetando um futuro como povo. “Isto se alcança através da transmissão de

89 geração em geração de uma linguagem comum, de valores, tradições e, em vários casos, instituições” (MASSANGA, 2014, p. 49).

Neste trabalho não pretendo retratar os Bauoio como um todo, o meu foco é apenas sobre os Bauoio do Povo Grande em Cabinda, com a intenção de entender melhor a realidade específica deste grupo étnico, uma vez que entendo que a etnia está espalhada em várias regiões de Cabinda e na parte norte do Congo Democrático. Com muitas práticas em comum, mas com particularidades também.

Estudar a perplexidade das práticas culturais do grupo étnico Woio é redescobrir e valorar uma série de indagações e preocupações, mas acima de tudo é compreender suas práticas e seu status quo, enquanto homens possuidores de uma cultura e de uma tradição que deve ser preservada, moldada e transmitida às gerações vindouras (MASSANGA, 2014, p. 19).

Não existem teorias sobre as origens dos Uoio do Povo Grande “de início, os Uoio e os Vili continuaram juntos na região do baixo Congo. Mais tarde, a escassez de terra obrigou os Vili a deslocarem-se ao longo da costa em direção norte, enquanto os Woyo permaneceram na região de Cabinda” (MARTIN, 2010, p. 21).

Bantu em Angola, a partir do século XIII, chegaram aquela região as principais vagas de habitantes, dentre os quais os (BA) Sundi, os (Ba) Yombe, os (Ba) Linji, os (Ba) Vili, os (Ba) Koko, os (Ba) Konko e os (Ba) Woyo.

Versões da tradição dos povos de Cabinda recordam migrações dessas populações a partir de Mbanza Kongo ou Kongo dia Ngunga, “cidade dos sinos", antes da chegada de Diogo Cão ao Zaire, das quais uma, chefiada pela princesa MuePuenha, que daria origem aos Bawoyo, de quem, se diz serem os

“verdadeiros cabindas”. No passado, a região da baía de Cabinda denominava-se Koina, muitas vezes gravada chioua, que significa” mercado do peixe (SANTA 2014, p. 4).

Podemos ver ainda em Martins (1972) que “nada de concreto parece existir a este respeito. Muito pouco ou nada se encontra sobre povos que viviam nas terras, agora dos Bakongo e Bauoio, e se houve grandes e repetidas lutas com os que nelas habitavam” (

Martins

, 1972, p. 85).

Não nos ficam dúvidas, baseados em dados certos da história, de que as gentes do Congo, parentes e descendentes do Rei do Congo, vieram ocupar, em tempos remotos, as atuais terras do País de Cabinda. Esta história é fortemente confirmada pela tradição contínua desta gente. Está na mente de toda a gente destas terras a origem, em sangue e costumes, que a liga aos de Mbanza kongo (hoje S. Salvador do Congo) (MARTINS,1972, p.84).

90 Todos esses clãs irmãos, Bauoio, Bakongo, Basundi, Balinji, Bavili, Baiombe e Bakoki, confinavam-se ao Reino de Ngoyo que hoje é a atual cidade de Cabinda e suas áreas adjacentes, sendo povos que fazem parte da grande família Bantu, com semelhanças nos seus usos e costumes (SANTA, 2014, p. 4).

Santa (2014) afirma que “o grupo Bantu tem uma estrutura familiar e governativa bem organizada, embora não descentralizada como acontece com os habitantes de Cabinda, aliás, algumas instituições sociais do presente basearam suas estruturas políticas e sociais nos grupos Bantu; por exemplo o Ma- Mpaba, são hoje os assistentes da entidade máxima do reino para as áreas políticas e económica ou então o ministro dos negócios estrangeiros numa língua mais moderna” (SANTA,2014, p.4).

Mesmo depois dessa divisão do clã, a fronteira geográfica não os impediu de manter uma relação unificada, de irmandade. Isto é, entre os Bauoio da Cidade de Cabinda e os Bauoio da República Democrática do Congo. Como nos salienta Martins (1972) “note-se, porém, que, para assuntos do clã, a fronteira geográfica demarcada pelos europeus pouco ou nada lhes interessa” (MARTINS, 1972, p. 84).

A língua dos nativos do Ngoyo, os Bauoio é a língua Ibinda, conhecida também como fiote para muitos. Mas os nativos preferem usar o termo Ibinda ou Uoio, porque fiote é literalmente um termo pejorativo, criado pelos europeus para denominar as gentes de Cabinda.

Pode-se notar que as palavras, frases, provérbios entre outras aparecem muitas das vezes com grafias diferentes nos escritos, isto porque os autores preferem escrevê-las sempre como aparenta ser mais aceito universalmente (SANTA 2014, p. 1).

Neste trabalho pretendo levar ao leitor uma melhor compreensão sobre a história e a origem dos povos que hoje habitam a região denominada de Cidade de Cabinda, não esquecendo de mencionar também um pouco das belezas e riquezas desta terra, particularmente de gentes do Bauoio do Povo Grande.

Os Bauoio do Povo Grande acreditam nos espíritos dos antepassados, os seus ancestrais como sendo divindades protetoras das famílias, os Bakisi Bakulo, e o Lemba, espírito especial do casamento, responsável para que haja paz e fecundidade no casamento. E não menos importante, a existência de vários espíritos que protegem as mulheres grávidas e as crianças como: Malazi, Mamazi, Mbenza, Kobo, Kívunda, entre outros, que têm a função de guardar e proteger as crianças ainda antes do nascimento, protegendo do mal como os maus olhados dos

91 Bandoki48,que são os matadores e comedores da alma. Mas os Bauoio mais temem os espíritos chamados Nkonde49 ou Nkose, demônios maus, espíritos do ódio e da vingança (MARTINS, 1972, p. 145).

No que refere a religião dos Bauoio, é baseada numa organização hierárquica com a presença de um Deus, o Nzambi Mpungu, o responsável por criar todas as coisas visíveis e invisíveis como os entes, as forças da natureza e os Bakisi Basi de toda a espécie. Nzambi–

habita muito além deste mundo, não se ocupa dos seres humanos a não ser para lhes conceder alguns raros benefícios. Nzambi Mpungu é por excelência o Ser Supremo, Absoluto, Bom. É o Supremo. Criador de tudo o que existe fora dele. Delegou os seus poderes para os Bakisi Basi, divindades que vêm Deus, sempre dependentes de sua Soberania (MARTINS, 1972, p. 150).

A existência de divindades fêmeas entre os Bauoio é uma realidade, com a presença da deusa da moralidade,50 a Lusunzi uma divindade, que ninguém pode se esconder, a pessoa pode ser preta ou branco, mas as leis de Lusunzi sempre a alcançaram, porque diz a história que ela possuía duas caras implantadas numa uma única cabeça,

“uma cara era branca, e branca era a parte do corpo que estivesse desse lado e outra cara era preta, e preto era também a parte do corpo que estivesse desse lado”[...] ela veio ao mundo para expor doutrina de valor e proveito para pretos e para brancos [...] deusa dos bons costumes e restauradora da moral natural nas terras de Ngoio” (MARTINS,1972, p. 137-399).

48 “Estão eles ao serviço dos Bandoki - assassinos e comedores de almas. São estes espíritos NKONDE que, esconjurados e incitados pelos homens Ndoki, causam as doenças e males de toda a espécie até que, «obedecendo a quem pertencem ou cedendo a uma força superior, afastando-se, diz Bittremieux, deixam que o remédio natural e supersticioso venha a agir naturalmente.»” (MARTINS, 1972, p. 145).

49 “Faziam parte do grupo Nkonde: Mabiala Mandembo (espírito vingador do Loango), Mangaka, Mungundo, Nsasi-Nkonde, Nkonde, Nkonde (o) Ikuta Mvumbi. Originariamente as suas estátuas e estatuetas estão providas de um espelho e crivadas de pregos. Quem deseja mal a alguém e dele se quer vingar, prega um prego na estátua de um Nkonde jurando que não terá descanso até que o outro seja punido” (MARTINS, 1972, p. 145).

50Para os Tchiowa existe a ''imoralidade" e a 'moralidade'. E para acabar com os atos tidos como imorais da vida social dos povos, Lusunzi aparece com leis contrárias aos atos desonestos e revestidos de tanta «imoralidade», para ensinar e impor, na verdade, as doutrinas e sistemas sociais de «alta moralidade» e pelo que remete o autor parece que o povo tão bem recebeu a ponto de ele fazer leis, usos e costumes” (MARTINS,1972, p. 135).

Os Bauoio de Povo Grande são povos que vivem uma vida seguindo as leis morais impostas por Lusunzi, porque acreditam que só assim poderão ter um controlo maior sobre a sociedade e suas ações, mas nem sempre é possível cumprir com todas as leis, por isso existem punições para os habitantes que ao estiverem a levar uma vida de acordo com o que lhes é ensinado, fazendo com que o medo a essas punições tenha poucas pessoas desviando das leis. Era e é o medo aos grandes castigos que faz com que essas leis se mantêm até os dias atuais, porque notamos que ainda hoje, dificilmente faltam às leis de Lusunzi que acima mencionamos, os Tchiowa respeitam os seus ancestrais cumprindo-as (MARTINS,1972, p. 135).

92 Lusunzi tem o seu assento na aldeia de Kizu, junto com outros espíritos que tem a missão de zelar e fazer-se cumprir as leis de Lusunzi nas terras de Ngoyo, o Nganga-Lusunzi, os Zindunga, o Ntoma-Nsi e o Nfumu Nsi.

Qualquer falta a uma dessas leis chamadas de Lusunzi, denunciava pessoalmente, ou denunciavam os próprios familiares, ou ainda, depois de uma crise geral, falta de chuvas, de caça, de pesca, etc., etc. - atribuíam-na a algum desses atos imorais e, por si mesmos ou por outrem, confessavam ao Nganga-Lusunzi ou ao Ntoma-Nsi para que a Lusunzi fosse devidamente apaziguada (MARTINS,1972, p. 136).

Considerada como o maior de todos os Bakisi-Basi, o espírito protetor da terra Lusunzi, é representado nas terras de Tchiowa, pelo o Nganga-Lusunzi (o sacerdote de Lusunzi), ficando com a responsabilidade de vigiar e fazer cumprir todas as leis criadas por Lusunzi contando sempre com a ajuda dos Zindunga51 (os representantes e zeladores das leis de Lusunzi). Quando analisamos a historiografia angolana e cabindense, não podemos deixar de reconhecer que ela é lacunosa quanto às questões relacionadas às Bichiento, as “mulheres”, e as relações de poder dentro da sociedade angolana e cabindense. Portanto, no capítulo a seguir me debruçarei particularmente sobre as Bichiento do Povo Grande.

51Zindunga que ajudam a concretizar alguma das leis de Lusunzi, são grupos de mascarados que ainda hoje se encontram em terras de Cabinda: no Kizu, Ngoio, Kinzazi e Susu (MARTINS,1972, p. 196). É uma instituição de caráter secreto, porque ninguém entre os habitantes conhece ou ouviu falar do rosto de um dos mascarados integrantes do Zindunga, quem é e onde vivem é uma incógnita desde o surgimento do grupo, e por medo da maldição, nenhum homem ou mulher daquelas terras se deixa levar pela curiosidade em saber.

93 2 CAPÍTULO II –AS BICHIENTO DO POVO GRANDE E O RITUAL TCHIKUMBI: SITUANDO O DEBATE HISTÓRICO

No documento TCHIKUMBI: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 90-95)