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Os papéis das Bichiento na sociedade dos Bauoio do Povo Grande

No documento TCHIKUMBI: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 121-128)

2.3 Tornar-se Nchiento na cultura Bauoio do Povo Grande

2.3.1 Os papéis das Bichiento na sociedade dos Bauoio do Povo Grande

120 Os nativos\naturais de Cabinda são trabalhadoras e trabalhadores. Entre os Bauoio do Povo Grande existe uma divisão dos papéis sociais na organização da sociedade. Nesta sociedade as responsabilidades e ocupações familiares recaem tanto para para as Bichiento como para o bakala (“homem”), e cada um desempenha a sua função dentro da comunidade que são considerados relevantes para o bem coletivo.

A divisão do trabalho para os Bauoio ultrapassa a questão do sexo, baseado no sagrado.

Tanto a terra como a Nchiento são consideradas sagradas. A terra é fértil e é de onde saem os alimentos, o principal meio de subsistência da família Bauoio vem do cultivo da terra. A Nchiento nasce para ser fecunda, para gerar e para produzir filhos, e por ser símbolo da fecundidade tem a seu cargo a responsabilidade com os aspectos inerentes ao cultivo da terra, da colheita da terra com vista a alimentar a família. A terra deve ser trabalhada diretamente só por ela. A responsabilidade da Nchiento, nessa divisão de trabalho, não é vista simplesmente como um trabalho, mas sim lhe é dado à honra dentro do clã. As sementes e tudo o que é cultivado na terra dos Bauoio deve ser passada pelas mãos dela, porque se entende que através da sua fecundidade o seu trabalho as sementes também sejam fecundas (MARTINS, 1972, p.

352).

O homem por sua vez tem a responsabilidade de preparar a terra para as plantações, caçar, pescar, proteger a Nchiento (a esposa), os filhos e de representá-los muito das vezes em algumas questões sociais, entre outras atividades que estão relacionadas diretamente com o lar.

À luz da cultura Bauoio, a educação do rapaz é confiada ao pai, é ele o responsável pela sua educação, e a da filha fica a cargo da mãe. Dos seis aos dez anos de idade, o rapaz já começa a ser instruído em vários ofícios, como acompanhar o pai na caça, colocar as armadilhas e trabalhar na fábrica rudimentar na produção do óleo de palma (azeite de dendê) na aldeia. Aos 14 anos o rapaz começa a assumir pessoalmente a sua vida profissional, começa a subir nas palmeiras e extrair o óleo de palma, como trabalhos na roça (MAMBUCO, 2014, p, 30). A menina, sob o comando da mãe, aprende desde cedo a cozinhar, a lavar e a ser uma boa esposa, para no futuro não terem problemas no lar.

Quanto aos trabalhos domésticos, além de confeccionar os alimentos para a família as Bichiento também participam ativamente em vários trabalhos da comunidade, mesmo existindo uma divisão de trabalho entre os Bauoio, tanto as Bichiento como as crianças participam nos trabalhos ditos masculinos, desempenhados pelos homens. Mesmo estando explícito que quem

121 constrói a casa são os homens, as Bichento não deixam de fazer também parte das obras, pois como revela Martins (1972): “As casas são feitas pelos homens” com a ajuda mutuamente das esposas. É papel delas se responsabilizar com os materiais que serão necessários para a construção como: folhas, banzas, a nervura dos ramos de palmeira, papiros, lianas entre outros, sendo assim uma força fundamental nesse processo (MARTINS, 1972, p. 348). De acordo com o este autor, muitos estranham os usos e costumes dos Bauoio que colocam as Bichiento como o centro do clã com uma sobrecarga em relação ao seu papel social dentro da comunidade uma chegando mesmo a comentar que “elas nestas paragens passam a ser um animal de carga e trabalho, que o homem, ao contrário, é um madraço e tudo deixa às fracas da mulher”

(MARTINS, 1972, p. 351).

A mulher é quem, digamos, mais trabalha. O pouco arranjo da casa e dos filhos, a cozinha, a água que, por vezes, está muito longe, o amanho da terra para as plantações, as plantações e colheitas, os carregos, mesmo os dos produtos conseguidos pelo marido, etc., tudo fica, praticamente, a cargo da mulher” (MARTINS, 1972, p. 353).

Além dos trabalhos domésticos e cultivo da terra, as Bichiento possuem várias outras habilidades, como a pesca com a Nsuku, pois nesse grupo étnico os homens e as Bichiento nunca pescam juntos. Elas participaram em quase todas as atividades da organização social dos Bauoio, mas a chegada da colonização trouxe consigo várias transformações na divisão dos papeis sociais, baseadas exclusivamente no sexo, impondo os hábitos e costumes colonizados, onde várias práticas e hábitos locais foram padronizadas segundo a cultura ocidental com a divisão do trabalho baseado no sexo e na biologia.

Eles sabiam que em algumas partes do mundo, houve e ainda há instituições matriarcal que dão à mulher a liberdade de ação, dotam-na de uma independência de escolha que a cultura europeia histórica concede tão somente aos homens. Com um simples passe de mágica eles inverteram a situação a situação europeia e construíram uma interpretação das sociedades matriarcais onde as mulheres eram consideradas frias, altivas e dominantes e os homens, fracos e submissos. Os atributos das mulheres na Europa foram impingidos aos homens das comunidades matriarcais, e isso é tudo (MEAD, 1935, p, 23).

Da minha experiência de trabalho em comunidades agrícolas no interior do país, constatei que a maioria dos camponeses era feminina, e que a sua redução no espaço doméstico não era uma realidade generalizada. Atualmente, ainda que de modo superficial, tanto nos centros urbanos, como no interior do país, independente do sexo, as pessoas não se eximem de tarefas que demandam força física ou cognitiva. Por isso, mesmo com a persistente omissão do governo em termos de equidade de gênero, as Bichiento estão nos vários espaços sociais a

122 disputarem acesso” (TELO, 2019, p. 98).

Nessa sociedade existem algumas tarefas que são especificamente femininas e outras masculinas, papéis sociais pensados dentro de uma organização social estruturada, onde um dos sexos tem personalidade dominante.

Se no período da escravidão e de trabalhos forçados em Angola a questão do sexo não era tão relevante, na medida em que a exigência recaía sobre todos os nativos, com a implementação da colonização, alguns princípios vão se alterando, ainda que formalmente, e determinados trabalhos vão sendo segregados em razão do sexo, principalmente entre a população assimilada”

(TELO, 2019, p. 97).

Margaret Mead, ao estudar três sociedades “primitivas” (os Arapesh, os Mundugumor e os Tchambuli) traz o relato de como essas sociedades agruparam suas atitudes sociais em relação ao temperamento feminino e masculino baseado em torno dos fatos realmente evidentes das diferenças sexuais. Como toda sociedade humana, essas três sociedades “primitivas”

tiveram também como ponto de partida a diferença do sexo para padronizar os comportamentos da vida social, mas esses pontos de diferenças foram desenvolvidos de formas muito distintas entre esse povo. Através dessa comparação se pode constatar que os elementos são construções sociais, irrelevantes aos fatos biológicos do gênero de sexo (MEAD, 1935, p. 22).

A autora conclui que existe uma padronização do temperamento sexual, porque para os Arapesh encontramos homens e “mulheres” a serem treinados como seres cooperativos, não agressivos, e para os Mundugumor os homens e “mulheres” se desenvolvem como indivíduos implacáveis, agressivos e positivamente sexuados, e já para os Tchambuli é a “mulher” quem dirige, domina, e o homem se comporta como um indivíduo menos responsável, emocionalmente dependente. Diante dessa comparação notam-se divergências culturais, o texto nos mostra que os papeis que o homem e a “mulher” ocupam dentro da sociedade sempre foram institucionalizados e não biologicamente comprovados; eles são forçados a conformar-se com o papel que a cultura lhes atribui ao sexo (MEAD, 1935, p. 22).

Mesmo que o estudo da Mead não tenha como foco a realidade africanas, podemos utilizar o exemplo das três sociedades para pensar a realidade dos Bauoio, cujos papéis das Bichiento e dos Bakala também são frutos dos padrões institucionalizados, baseados na construção social e cultural, na qual os Bakala\ “homem” são responsáveis por possuir uma lavra e uma casa, construída pelo seu próprio esforço antes de contraírem matrimônio, para o sustento da sua família.

123 A cultura Bauoio, inicialmente, exige que todo jovem74 em idade de arranjar uma esposa, disponha de uma lavra de mandioca e a partir dos 16 anos, construa uma residência, onde no futuro irá morar com a sua família, erguida com o seu próprio esforço, evitando desse modo que o casal venha a depender dos seus progenitores e que não haja problemas futuros de habitação e alimentação (MARTINS, 1972, p. 348). Além dessas exigências, o esposo deve

“saber armar laços, armadilhas, pescar, caçar, habilitar-se em apicultura, praticar artesanato etc.

A lavra é vista como um emprego para a sua futura esposa (LELO & CRISTINA 2013, p. 20).

“Há trabalhos que nem todos podem fazer: se os trabalhos da cozinha são próprios da “mulher”, já é ao homem que pertence subir às palmeiras para nelas colher o dendém que dá a óleo para as refeições” (MARTINS, 1972, p. 378).

Até os dias de hoje, a Nchiento Bauoio do Povo Grande continua sendo símbolo de procriação e da fecundidade. Sendo valorizada através da sua centralidade e da maternidade dentro da sociedade, fruto de uma cultura que institucionalizou um tipo de temperamento e padrões que refletem nos papéis masculinos e femininos, que estão enraizadas firmemente na cultura. Passando pelo ritual do Tchikumbi, a Nchiento ganha simbologia de fecunda, uma vez que o ritual está relacionado com o aparecimento da primeira menstruação. Para se adquirir esse símbolo de procriação e de fecundidade dentro da comunidade, o primeiro passo a ser cumprido é de passar pelo ritual do Tchikumbi, antes disso a menina é vista como uma criança que não pode procriar e que precisa passar pelo ritual a fim de se tornar completa.

A fertilidade da Nchiento em Cabinda é determinante na procriação. Diferente de muitas outras sociedades, para os Bauoio, dar à luz uma criança de sexo feminino é um motivo de alegria, de rejubilação, pois há a compreensão de que se está gerando uma força produtiva e uma companheira que estará perto da mãe no dia a dia, para ajudar nas atividades domésticas, esses ensinamentos são passados para a filha até que ela alcance a idade requerida para o seu lar. Uma filha é a segunda pessoa mais importante depois da mãe, principalmente se for à primeira entre os irmãos. Ela é quem cuidará da casa e da família. Entretanto, no caso de enfermidade ou morte da mãe e o pai não ter se casado de novo, a filha assume imediatamente a responsabilidade do lar (o cuidado da casa e dos irmãos menores). Como “A educação desta depende diretamente da mãe e em caso da falha na educação a mãe é a primeira protagonista

74“Caso o rapaz não tenha nada que o habilite estar em condições de ter uma mulher, não é contra matrimônio.

Depois destes requisitos o jovem esta é altura de arranjar cônjuges” (LELO & CRISTINA 2013, p. 20).

124 da vergonha da própria filha e será sempre objeto de contendas entre os esposos, a “mulher”

pode ser repudiada como consequência da má educação dada a menos, isto é, a filha”

(MAMBUCO, 2014, p. 28).

Para os Bauoio, os filhos, como membros vivos da família, contribuem na satisfação dos pais reconhecendo e valorizando o seu amor e sacrifício, que estes dedicam a eles. Este contributo abrange a velhice dos pais. Enquanto a rapariga é considerada adulta e pronta para assumir os encargos mediantes o rito tradicional de iniciação “casa de tinta”, para o rapaz, este rito de iniciação tradicional traduz-se pela prática habitual da circuncisão. Esta prática demonstra não só a capacidade do rapaz de assumir pessoalmente a sua vida profissional, mas também e, sobretudo, a sua visibilidade na sociedade (MAMBUCO, 2014, p, 30).

Duas práticas “tradicionais” ou cerimônias são instituídas pela sociedade Bauoio e vistas como herança deixadas pelos antepassados, nas quais se procede a agregação solene e pública dos novos membros já adultos, ao grupo étnico (MAMBUCO, 2014, p, 30).

Vale salientar que essa valorização, na maioria dos casos, só perpassa dentro de uma estrutura de matrimônios75 (alambamento), então uma Nchiento que é fecunda, mas não tem marido muita das vezes, não é bem vista na sociedade dos Cabindas, porque a ideia de “lar”

também implica estar casada. Uma casa sem um homem nem sempre é considerada um “lar”, porque para muitos Nchiento e os filhos precisam da presença e da proteção de um homem, logo quando isso não acontece diz-se que está faltando a presença de um homem em casa para colocar ordem. Compreendo este processo como fruto da colonização, que impôs nessa sociedade o conceito e o modelo de família nuclear, na qual prevalece a organização composta pelo pai, pela mãe e pelos filhos.

Entre os Bauoio do Povo Grande existem trabalhos masculinos específicos, que noutras sociedades são tidos como trabalhos femininos, a partir do século XX a profissão de corte e costura era desenhado exclusivamente pelos homens, os costureiros, “os homens quem costuravam, mesmo para as Bichiento, eles lhes cosem os panos, fazem as saias e os quimonos e até os soutiens (que já começam a usar) tirando as medidas e fazendo as provas que se

75Já nos não admiramos de que o homem procure “mulher” de trabalho em lugar de mulher de aparência atraente.

As coquetes, as amigas de passeios, até as muito faladeiras podem servir bem para outras coisas, mas não para esposas” (MARTINS, 1972, p. 353).

125 julgarem necessárias” (MARTINS, 1972, p. 361).

Esta é ainda a regra geral nos tempos atuais, existem mais homens nessa área em relação às Bichiento. Hoje, já aparecem “mulheres” a trabalharem com costuras, fazem a própria roupa ou vão até as outras, para que essas lhes façam. A colonização trouxe para os Bauoio outras formas de divisões de trabalho, baseadas nos paradigmas europeus. Isso aconteceu com certos deveres, que as Bichiento Bauoio não tinham como obrigação, em relação ao marido dentro do lar, mas são advindas do período colonial, através das missionárias católicas.

Por sua vez, no que diz respeito à lavagem da roupa, cada um lavava e ponteia a própria. Nem a mulher lavava a roupa do próprio marido ou lhe ponteava.

Com dificuldade se tem conseguido que as alunas saídas das Missões Católicas de Irmãs religiosas comecem a fazer alguma coisa de costura e a pontear e lavar a roupa dos pais ou do marido, quando casadas. Mas tem custado bem! Porém, está a haver certa evolução neste sentido. O natural de Cabinda é também óptimo lavadeiro. O Cabinda lavadeiro lava bem melhor do que a lavadeira. (MARTINS, 1972, p. 361).

Assim como os ritos de passagem são realizados para dividir papéis sociais em universos altamente totalizados, onde as relações sociais tendem a uma multiplicação nas suas palavras, relações múltiplas, a colonização e a religião católica também contribuíram nas orientações padronizadas e diferenciadas em provável correlação com a lógica do sistema social que os elabora, mas seria um erro tornar essa perspectiva como a única (VAN GENNEP, 1978, p. 21).

Quando falamos de povos primitivos, sempre nos vem em mente sociedades atrasadas, porque foi o que o mundo ocidental nos ensinou isso, sempre baseado no eurocentrismo, mas quando o assunto é padronização de comportamento Margareth Mead afirma que deste assunto os povos “primitivos” parecem estar mais avançados, sofisticados em relação ao povo ocidental.

A questão é: será que o ocidente não precisa rever os seus conceitos do que é cultura na verdade?

Porque na verdade não existe a palavra cultura unificada e universal, mas sim a cultura como diversidade, algo em constante movimento e mudança, porque a cultura é simplesmente fruto da construção social (MEAD, 1935, p. 26).

Para os Bauoio, as Bichiento representam um poder e um valor econômico que faz com que no alambamento a família da noiva fique com sentimento de perda de uma filha. Ela representa produtividade, seja pela procriação, seja pelo trabalho que desenvolve com o cultivo da terra, enquanto o outro clã festeja por ganhar mais uma filha, uma força de trabalho e de procriação. Por isso, como honra o noivo aprecia a noiva e deve conquistá-la com trabalho árduo, que é avaliado pela família da noiva, e deve demonstrar capacidade em conseguir o valor

126 estipulado pelos futuros sogros, como forma de compensação material relativa à perda de uma força na família. O alambamento só acontece depois do Tchikumbi.

No documento TCHIKUMBI: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 121-128)