• Nenhum resultado encontrado

Participação das “Mulheres” na Luta Contra o Colonialismo português:

No documento TCHIKUMBI: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 95-102)

93 2 CAPÍTULO II –AS BICHIENTO DO POVO GRANDE E O RITUAL TCHIKUMBI: SITUANDO O DEBATE HISTÓRICO

94 transformação cultural enquanto sujeitos da própria história e de debate na sociedade. “No entanto, para que tal acontecesse teriam que ser as próprias “mulheres” a dar o primeiro passo”

(GOMES, 2016, P. 87). A gênese dos movimentos femininos esteve estritamente ligada aos movimentos de libertação no continente africano nos países africanos de língua oficial portuguesa, PALOP52 (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe) (GOMES, 2016, P. 73).

No contexto histórico angolano, as “mulheres” foram protagonistas de vários exemplos de lutas. A princesa Mue Puenha, como era conhecida, foi uma princesa e parente do rei do Kongo, obrigada a lutar e vencer a ideia da construção social do modelo ideal de Nchiento no século XIV. Segundo Pinto (1997) e Mambuco (2014) Puenha constitui o maior exemplo de resistência e representação das Ntchiento em Tchiowa (atual Cabinda). Mesmo sendo uma princesa, uma Nchiento nobre e parente do rei do Kongo, não foi poupada pela comunidade e pelo próprio rei. Foi expulsa do reino com os seus três filhos, fruto do seu “pecado” contra as tradições, o desrespeito aos ancestrais e a lei de Lusunzi53. Mais tarde, esses filhos seriam os fundadores dos três reinos existentes em Cabinda, antes da chegada dos portugueses (Loango, Kakongo e Ngoyo). Os reinos foram governados pelos filhos da princesa Mue Puenha, da qual descende todos e todos os naturais de Cabinda.

Segundo relatos, as Nchiento em Cabinda aparecem como sendo as figuras principais e primordiais que originaram a existência dos povos de Cabinda. A Rainha Lilo foi a primeira rainha que teve a responsabilidade de governar o Reino do N´Goyo, e a sua irmã a Rainha Silo que governou o Reino do Kakongo, sendo também a primeira Rainha do Kakongo. Dentre os

52 PALOP-Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa.

53Lusunzi é a “«deusa» dos bons costumes e a restauradora da moral natural nas terras de Ngoio” (MARTINS, 1972, p. 139).

Para os Tchiowa existe a “imoralidade” e a “moralidade”. E para acabar com os atos tidos como imorais da vida social dos povos, Lusunzi aparece com leis contrárias aos atos desonestos e revestidos de tanta «imoralidade», para ensinar e impor, na verdade, as doutrinas e sistemas sociais de «alta moralidade» e pelo que remete o autor parece que o povo tão bem recebeu a ponto de ele fazer leis, usos e costumes” (MARTINS,1972, p. 135).

Lusunzi é retratada como sendo uma Nchiento, ninguém podia se esconder, a pessoa podia ser preta ou branco as leis de Lusunzi sempre a alcançaram, porque diz a lenda que ela possuía duas caras implantadas numa uma única cabeça, “uma cara era branca, e branca era a parte do corpo que estivesse desse lado e outra cara era preta, e preto era também a parte do corpo que estivesse desse lado” «ela veio ao mundo para expor doutrina de valor e proveito para pretos e para brancos.» (MARTINS,1972, p. 137).

95 três reinos já citados, só o Reino do Loango teve como primeiro governante um homem, o Tumba, (o irmão gêmeo das duas rainhas citadas) que governou o território Vili, da margem direita do rio Chiloango, até à região do rio Ogué, no Gabão (Pinto, 1997, P. 37).

Outra figura feminina que se destacou também nessa época pela sua bravura e resistência dentro dos reinos em Cabinda foi a Makunda, uma Nchiento que teve grande importância para os cabindas. Makunda foi uma das mais influentes personalidades do reino de Loango. Segundo Martin (2010), Makunda tinha responsabilidades especiais em relação às

“mulheres” Vili, principalmente quando os maridos as abandonavam ou as maltratavam fisicamente. Protegia as “mulheres” contra a violência doméstica. Tendo uma autoridade mais ampla localmente, Makunda recebia para além das “mulheres”, várias outras pessoas independentes do sexo, que se dirigiam a ela para pedirem a sua proteção, incluído os próprios maridos das esposas que recorriam a ela para exporem os seus problemas a fim de serem ouvidos. Makunda conservava o estatuto livre. Outra função desempenhada por esta “mulher”

era de conselheira do Rei Maloango sobre a nomeação de funcionários. Dando a ela poderes para conspirar contra o governo se este a contrariasse, uma vez que Makunda era uma “mulher”

com muita personalidade e ideologia própria, defendia o que acreditava e achava ser o certo para o bem da comunidade.

Não se sabe a relação exata entre Makunda e o Rei Maloango, se eram parentes ou simplesmente se ela fazia parte da realeza por ser filha de alguém nobre no reino. Uma “mulher”

livre, muito respeitada por todos que possuía liberdade de ação. “Ela não era nem mãe do Maloango nem estava ligada a ele pelo casamento, o que podia também sugerir que ela era sua irmã” (PECHUEL-LOESCHE apud MARTIN, 2010, p. 39).

As Bichiento de Cabinda sempre foram muito importantes em todas as áreas da vida social, e sendo responsáveis pelo sustento da casa e da família estão no centro da organização social. A princesa Mue Puenha e Makunda são exemplos de “mulheres” que ainda no tempo antes da colonização estavam presentes em vários contextos sociais ocupando lugares de destaque, mas sabemos que para se tornar uma Nchiento a jovem menina tem que cumprir primeiro com as leis locais, passando pelo Ritual de Iniciação o Tchikumbi.

A Princesa Mue Puenha aparece na historiografia cabindense também quando o assunto é o descumprimento e a violação do ritual de iniciação o Tchikumbi.

A Princesa Mue Puenha, de S. Salvador (Mbanza Kongo) teve relações ilícitas

96 das quais nasceram três filhos gémeos. Essa ilegalidade teria sido por ter praticado essas relações antes de passar pelas cerimónias da puberdade (o Tchikumbi). Os conselheiros do Rei pediram a expulsão da princesa, a que ele teve de atender, ainda que contrafeito, tanto mais que se deu uma grande escassez de chuvas atribuída à falta cometida pela princesa (MARTINS,1972, p. 90).

A prática do Tchikumbi faz parte de uma tradição muito antiga que os antepassados deixaram com a finalidade de controlar a sexualidade das meninas daquele grupo étnico, também chamada “casa de tinta” (MAMBUCO, 2014, p. 27). Séculos posteriores ainda no regime da luta contra a ocupação colonial surgiram outras “mulheres” que se destacaram nesse processo de resistência à colonização, como o caso da Rainha Njinga no século XVII e da profetisa Ñsîmba Vita54 no século XVIII. Essas duas “mulheres” angolanas ficaram conhecidas na historiografia africana e do mundo como símbolos femininos de resistências contra a opressão nas colônias.

Njinga Mbandi (1581-1663) foi rainha do Ndongo e Mutamba. Uma “mulher” que rompeu com os padrões de gênero da época, pela sua persistência e habilidade em negociações com os europeus no século. O seu percurso foi muito determinante para a história de Angola e África no geral. Um exemplo de governança feminina, uma “mulher” que modificou o desenvolvimento político, social e econômico do seu reino e de toda região à volta. “Durante as quatro décadas do seu reinado a rainha do Ndongo e Matamba se opôs vigorosamente aos anseios colonialistas de Portugal, construindo alianças estratégicas, mantendo a diplomacia e, por vezes, dirigindo ela mesma as operações militares” (SERBIN & JOUBEAUD, 2016, p. 69).

Frustrou vários planos dos governadores portugueses, sendo vista como uma ameaça para os colonizadores e grupos locais rivais. Segundo Minuzzi (2016) a Rainha Njinga Mbandi precisou tornar-se numa “mulher” duplamente forte e corajosa a fim de enfrentar os preconceitos sofridos dentro e fora do reino por parte de alguns líderes locais, portugueses, e de seus subordinados pelo simples fato de ser uma mulher pertencente ao sexo feminino, e não ao masculino que é tido tradicionalmente como detentor do poder (MINUZZI, 2016, p. 200).

Mesmo tornando-se um ícone universal, a guerreira e rebelde rainha Mjinga Mbandi, enquanto

54 Utilizamos o nome Nsimba Vita invés de Kimpa Vita, porque segundo o autor Batsíkama (2021) “depois de uma análise histórica e linguística comparada, concluir que Chimpa Vita que escreveu Bernardo da Gallo não poderia ser Kimpa Vita e nem tão pouco a própria Tradição Oral registrou-a desta forma” (BATSÍKAMA, 2021, p. 55).

97 figura feminina de destaque, ainda continua ocupando dentro da historiografia africana um espaço pouco comum, uma vez que o cânone continua sendo de domínio masculino.

De acordo com Batsíkama (2021), Dona Beatriz, Ñsîmba Vita, conhecida também como “Santo António” (1684-1706), nascida no reino do Kongo em Mbwêla, que hoje pertence à parte noroeste do território angolano, era descendente de uma família nobre. Uma “mulher”

profetisa que liderou um movimento religioso-político entre 1704-1706, e restaurou o reino do Kongo, que já estava em declínio desde 1665, isto é, no século XVIII. Revolucionou o cristianismo europeu constituindo uma ruptura dos padres católicos, com o surgimento das reformas para o nascimento de um catolicismo local no Kongo. Através do movimento Antonianismo (era um movimento religioso de natureza sincrética) conseguiu unificar o Kongo reconstruindo e repovoando a capital do reino (Mbanza Congo) criando assim vários inimigos dentro da igreja católica. Uma “mulher” que através da sua luta e resistência contra a colonização tornou-se numa percussora do messianismo africano. Segundo Batsíkama (2021)

“ela serviu-se da religião para resistir contra as forças externas colonizadoras, tendo feito da sua doutrina uma afirmação cultural – na sua essência religiosa – que perpassou o tempo e espaço. Desenvolveu um modelo de resistência através da unificação da cultura com ancestralidade e da hagionímia católica”.

Como destacou o autor, as “mulheres” africanas estiveram presentes na luta de libertação do continente africano, as “mulheres” do século XIX foram herdeiras sociais de um heroísmo feminino, todas pegaram nas armas elaborando estratégias de lutas, tanto na vida militar como na vida civil para alcançar a libertação da África entre 1954-1960 (BATSÎKAMA, 2016, p. 74).

A Rainha Njinga e a profetisa Ñsîmba Vita são duas “mulheres” que serviram de exemplo para muitas angolanas no período da luta armada contra colonização portuguesa no século XIX, são exemplos vivos de que sempre houve em África “mulheres” em posições de destaque em diversos campos como na política, na diplomacia, na religião e, principalmente, na resistência anticolonial. Mesmo representadas como descumpridoras, violadoras de leis ancestrais dentro dos seus próprios reinos, como aconteceu com a Princesa Lilotxa M´Puenha no reino do Kongo muito antes no século XIV.

Os movimentos de libertação de Angola incluíram organizações femininas dentro das suas estruturas. “Mulheres” guerrilheiras que lutavam ao lado dos homens, sem limitações

98 como o caso da OMA55 (Organização das Mulheres Angolanas), braço feminino do MPLA, criada em 10 de janeiro de 1962 em Léopoldville, uma organização de mulheres que esteve presente na luta de libertação e lutou pelo fim do colonialismo e também pela emancipação das

“mulheres” angolanas. Como o caso da AMA (Associação da Mulher Angolana), fundada pela FNLA. Como a LIMA (Liga Independente de Mulheres Angolanas), uma ala feminina fundada pela UNITA, em 1973, com o objetivo de uma maior inclusão das “mulheres” e afim das mesmas contribuírem na luta pela libertação nacional contra o colonialismo português (DIAS, 2013, p. 35).

As “mulheres” angolanas, letradas ou “analfabetas” lutaram pela conquista da liberdade nacional, pela emancipação e empoderamento de todas as “mulheres” do país, pensando na construção de uma nação com igualdade. Porém, tinham consciência de que seria um trabalho árduo, pois nunca foi fácil para as guerrilheiras lutarem pelos seus direitos em um contexto em que a emancipação era subordinada à libertação nacional e onde a dominação masculina estava naturalizada. A luta era dupla, contra o colonialismo português e contra a opressão dentro de movimentos de libertação fortemente sexistas. Portanto, tiveram que lutar contemporaneamente para subverter a ordem masculina dominante dentro destes movimentos, como forma de se alcançar a igualdade de gênero (PAREDES, 2015, p. 126).

As informações históricas sobre a participação das “mulheres” angolanas na luta pela independência, bem como, a sua presença em outras organizações de embates pela libertação me fizeram interrogar o lugar do “poder na produção da história”. Michel Rolph Trouillot, é enfático, ao salientar que:

a produção de narrativas históricas envolve a desigual contribuição de grupos e pessoas concorrentes, que têm desigual aos meios dessa produção do poder, mas próprio poder nunca é transparente a ponto de sua análise ser supérflua'' (TROUILLOT, 2016, p. 17 [1995].

Quem detém o poder influencia a produção histórica. A história das “mulheres”

angolanas foi, essencialmente, contada por homens angolanos, até muito recentemente através

55 Fundada por mulheres com vivências majoritariamente urbanas e muitas vezes com experiência de estudo e trabalho em outros países, a OMA logo percebeu a necessidade de alcançar um público diverso, que continuamente atravessava as fronteiras para fugir à repressão portuguesa e se distribuía entre os dois Congos. Se o tropo da emancipação feminina estabelecia à partida uma comunicação com as mulheres das cidades, para dialogar com o público feminino rural era necessário um esforço consciente de convencimento. Mas, uma vez que essas mulheres aderissem à OMA, encontrariam “os meios mais eficazes para se emanciparem e serem úteis ao nosso País”

(FIGUEIREDO, 2021, p. 48).

99 da história das mulheres do MPLA, por isso era a única existente. A pergunta que emerge é até que ponto a história produzida sobre “mulheres” angolanas narra a real atuação delas na luta?

Uma vez que muito resta ainda por conhecer e esclarecer.

Tal como em outros casos africanos, como da Guiné Bissau, várias “mulheres”

angolanas possuem um sentimento de “desilusão” em relação às expectativas e promessas da luta de libertação. Assim como aconteceu no caso da Guiné-Bissau, como refere Godinho Gomes “apesar do seu protagonismo no processo de independência, a posição das “mulheres”

no período posterior à independência ficou muito aquém do pensado e projetado. Raramente as

“mulheres” assumiram posições de destaque em termos de liderança” (GOMES, 2016, P. 88).

As discussões sobre a participação das “mulheres” angolanas na luta de libertação nacional e a atual realidade das mesmas numa Angola independente ainda carecem de olhares dos pesquisadores e pesquisadoras nas ciências sociais e não só, uma vez que os danos causados pelos conflitos foram múltiplos, face às consequências da guerra. Para Batsîkama (2016), existem várias questões pertinentes para se pensar a situação e reintegração das “mulheres”

angolanas no período pós-independente, tais como: violência de guerra e reinserção das mulheres na sociedade; autonomia financeira; formação de base, profissional e acadêmica, saúde da “Mulher”; mulher na agricultura rural com HIV56; lideranças, entre outras.

(BATSÎKAMA, 2016, p. 74). Mesmo as “mulheres” constituindo a maioria da população angolana, ainda assim representam os níveis mais baixos em termos de representação e participação ativa nos espaços públicos, principalmente nos espaços de tomada de decisões (DOMINGOS, 2018). As desigualdades persistem, mesmo no cenário atual, a vários níveis.

No período atual, muitas são as vozes que se levantam para questionar o lugar da

“mulher” angolana, em diferentes esferas sociais do país. Com o surgimento de vários movimentos sociais feministas, a condição da "mulher'' angolana na vem sendo discutida com mais frequência, pensando na primeira pessoa e não como está explícita na história construída pelo nacionalismo angolano, numa perspectiva masculina (do MPLA).

No período da Angola independente, as mulheres ficaram invisibilizadas e excluídas da história nacional e quando referidas ganham notoriedade através de algumas “mulheres” como Deolinda Rodrigues, considerada heroína nacional pela sua participação na Luta Armada e no

56 Vírus da imunodeficiência humana, adquirida.

100 movimento do MPLA, representando “todas as mulheres” angolanas; é neste sentido que Spivak (2010) explica que o sujeito subalterno precisa ter a palavra e não deve ser silenciado, uma vez que, quando se toma a palavra do subalterno, estamos a negar-lhe uma posição, um espaço onde possa se exprimir e, principalmente, no qual possa ser ouvido (SPIVAK, 2010, p.

12).

Na atualidade, as “mulheres” Angolanas vivem um contexto muito diferente, mas as suas lutas ainda continuam com persistência contra os males do “patriarcado” porquê e de várias formas de opressão. A questão que emerge é até que ponto elas conseguem se libertar do sistema colonial e do “patriarcado”? Paradoxalmente, ainda se vêem presas num sistema onde os homens são predominantes e dominando o sistema57.

No documento TCHIKUMBI: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 95-102)