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Tchikumbi na contemporaneidade

No documento TCHIKUMBI: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 116-120)

2.2 Tchikumbi ou “Casa de Tinta”

2.2.2 Tchikumbi na contemporaneidade

Na contemporaneidade, o ritual foi sofrendo transformações e ressignificado. Em muitas famílias cabindenses, a prática tornou-se uma mera formalidade, algo simbólico que é seguido a fim de se cumprir com a “tradição” por medo de se estar a violar a “cultura”.

Atualmente quase já não se praticam as cerimônias na Nzo Kumbi Kimpilo e Nzo Kualama separadas, porque os ritos passaram a ser realizados de uma única vez. Nos ritos de Nzo Kumbi Kimpilo, na festa da puberdade, a ikumbi era submetida às cerimônias mais práticas como ser pintada com a takula, cortavam-lhe o cabelo, comia a galinha, partia o coconote70 etc e na Nzo Kualama a festa de preparação para o Alambamento (“casamento”). A Nzo Kumbi Kimpilo era simplesmente a festa da ikumbi, o momento em que se festejava o surgimento de mais uma Nchiento na sociedade que iria contribuir com o crescimento da linhagem. Nos dias de hoje a Nzo Kualama abrange também todos os ritos e cerimônias da Nzo Kumbi Kimpilo

70 Caroço do dendê

115 numa única festa de Tchikumbi.

Existia uma casa em cada aldeia para esse processo ritualístico, como nos informa Martins (1972) “limpa-se muito bem a casa para onde irá a rapariga, em tempos, em cada aldeia, havia uma casa para este fim” (MARTINS, 1972, p 262).

Buza (2011), afirma que:

O Tchikumbi hoje, deixou de ser uma prática de iniciação na tradição ou cultura locais, porquanto, a sua prática apenas transformou-se numa mera formalidade, considerando que um dos requisitos de honra e prestígio para as famílias, condição sine qua non, o acto não teria lugar foi extraído. A da moça ser kimkumba, ser virgem (BUZA, 2011).

Entre as várias transformações do Tchikumbi na contemporaneidade, um dos requisitos principais que deixou de ser cumprido é o da a obrigatoriedade da virgindade71 para a ikumbi.

No passado, a menina que já não era mais virgem, só poderia passar pelo ritual, após sofrer alguma sanção. Porque estaria a descomprir com as leis de Lusunzie, desonrando a família.

Hoje existem vários casos de moças que já perderam a virgindade e passam pelo ritual, e outras ainda em estado de gestação, algo que nunca poderia acontecer, pelo menos do conhecimento público.

Os Bauoio e Bakongo condenavam os infratores que praticavam o ato sexual sem antes a menina passar pelo ritual do Tchikumbi, eram obrigados a apresentar-se perante o público com a dança Mbumba Mbítika como sanção pelo crime. Essa dança também deixou de ser obrigatória para os Bauoio nos tempos atuais. Mas entre os anos de 1941 e depois em 1950, no Povo Grande – Cabinda, ainda era muito recorrente (MARTINS, 1972, p. 278).

Os culpados dançavam nus, ou coberto o sexo com lubongolufula, e, ao ritmo do canto e dança, eram castigados e fustigados por toda a assistência. «Uma donzela que se deixa seduzir antes do casamento deve aparecer na corte com o amante e declarar a falta e pedir perdão ao rei. Esta absolvição não tem nada de humilhante; mas é tão necessária que temer-se-ia que o país ficasse condenado a uma eterna seca, se alguma rapariga que tivesse cometido essa falta não se submetesse à lei.» Mas, este «antes do casamento» deve

entender-71“Uma rapariga nunca - ou raríssimas vezes - tinha relações sexuais antes de passar pela « Casa da Tinta », portanto, antes de ser verdadeiramente mulher. Era para não se degradarem, por espírito de pureza, por virtude ou 'dignidade pessoal? Cremos bem que não. Conservavam-se íntegras até essa data porque era uma lei grave do clã e os castigos aplicados aos infratores eram tais que arrefeciam todos os maus instintos e refreavam todos os apetites...Maiema - falecido em 1904 - o terror do Maiombe, chegava a condenar os culpados a serem comidos pelo selengo (AnommaArcens, West), o Kisonde do Sul, formiga carniceira, que anda em cordões de milhões e que em poucas horas deixa uma pessoa só com o esqueleto se se não puder defender, tendo as mãos e pés presos.

E assim fazia, por vezes, o Maiema” (MARTINS, 1972, p. 278).

116 se por antes da cerimónia do Kualama. Tudo isto, pois, para quê? Para que a mulher tenha a sua vida sexual, matrimonial, somente depois de ter passado pelas cerimónias da NZO KUALAMA (MARTINS, 1972, p. 278).

De acordo com Buza (2011, p. 2), a prática do Tchikumbi nos dias atuais é mais recorrente entre os povos dos grupos étnicos denominados de Mangoio72 (sede de Cabinda) e Makongo (Malembo e Tando Zinze), em relação aos Maloangos (Buco Zau e Belize). As meninas do grupo étnico Maloango não passam mais por essa prática, porque como argumenta o autor “foram influenciadas pelas confissões originárias do protestantismo, essa prática foi perdendo lugar acabando por se tornar insignificante nos dias de hoje” (BUZA, 2011 p. 7).

Como afirma Dunge (2019)

Anteriormente o rito se realizava em toda extensão de Cabinda e que começou a ser extinto no interior de Cabinda pela influência dos Missionários evangélicos, pois pregavam que era uma prática pagã e que hoje ficou apenas confinado na parte sul (BUZA, 2011 p.7).

Sendo um ritual secreto para as ikumbi, e que ninguém pode revelar ou confirmar nada para a futura Nchiento, nos dias de hoje existem casos em que a menina já tem conhecimento ou desconfia que está prestes a passar pelo ritual do Tchikumbi, umas comentam com alguns familiares ou amigas lhes confirmam. A maioria das ikumbi prefere fingir que não sabe de nada, apenas para não acabar com a “mágica” do ritual. Também pelo medo de algo de mal vir a acontecer com ela, porque segundo os mais velhos, caso a menina desconfie ou fique sabendo, pode tropeçar numa pedra e vir a falecer na hora.

Não se sabe de concreto quando que se começou com a escolha de conservar o cabelo no ritual do ikumbi, mas segundo Martins (1972) “Hoje, quem quiser conservar os cabelos pode, mediante o pagamento de 10 ou 20$00” (MARTINS, 1972, p. 265). A partir do século XX elas já tinham a escolha de “decidir” se cortavam ou não o cabelo, porque não verdade não é uma decisão direta da própria ikumbi, não é ela que tem esse poder de escolha nos tempos atuais, porque quem decide até agora são os parentes (os tios ou o pai da ikumbi, e até mesmo o noivo, caso ela já esteja comprometida) perante um pagamento prévio. O corte obrigatório do cabelo

72 Os povos dos grupos étnicos denominados de Mangoio (sede de Cabinda) são todos aqueles descendentes do antigo reino Ngoio, que fazem parte de um dos três grandes reinos que se estabeleceu em Cabinda, o reino do Ngoio, Região esta que hoje é composto de gente Uoio dos Bauoio.

117 da ikumbi é algo que, na atualidade, já não se observa com frequência, principalmente nas áreas urbanizadas. Isto porque um dos familiares ou o noivo paga uma quantia em dinheiro para não cortarem o cabelo.

Nos dias de hoje, por causa das condições cristãs, muitas famílias já não usam mais a takula e no seu lugar substituíram com o pó talco (pó branco usado para bebês).

O estudo sobre ritos mostrou que é necessário ter em conta os “pontos de fuga”

do indivíduo a esses mecanismos e os contextos que permitem não apenas serem vistos como produtores/reprodutores de cultura, mas como produzindo rupturas, como é o exemplo acima referido sobre o respeito que pode ser manipulado e é utilizado para inverter uma ordem dominante. Ou ainda, quando as raparigas rejeitam ou então manipulam o alongamento dos pequenos lábios, numa estratégia que traduz a apropriação de um saber, com fim contrário ao que lhe é conferido (OSÓRIO & MACUÁCUA, 2013, 42).

O tempo da realização do Tchikumbi também sofreu transformações, deixando de ser realizado durante meses, se resumindo apenas em dias durante o final de semana. Entre os Bauoio, grande parte defende o abandono desta prática justificando não haver a necessidade de submeter a menina ao Tchikumbi. Muitos alegam que não é importante continuar com esse ritual, por ser algo “atrasado” e sem grande relevância para a própria menina e pra família, e que só gera gastos financeiros e problemas espirituais (sobrenaturais) para a própria menina.

Eu como uma Nchiento Uoio da etnia Bauoio também passei pelo ritual do Tchikumbi.

Durante o período do ritual, estive sob os cuidados das minhas tias durante dias, na cerimônia me foram transmitidos ensinamentos voltados mais para a área doméstica. Durante a minha participação como convidada em diferentes rituais de Tchikumbi de familiares, amigas e vizinhas pude constatar empiricamente a mesma realidade. Antes as ikumbi permaneciam durante meses, dentro da casa, sendo ensinada e iniciada nos aspectos da vida adulta, e conjugal de uma forma mais ampla, os conhecimentos que eram passados contemplavam várias áreas da sociedade e não se resumia simplesmente à área doméstica, incluiam os conhecimentos sobre os aspectos culturais locais, sobre a linhagem, a organização social entre outros. Para os Bauoio a passagem por esta prática, significava a transição da adolescência para a emancipação, em outros termos.

No passado as meninas ficavam por um tempo dentro da casa, sob os cuidados das tias maternas, onde lhes eram ensinados e transmitidos aspectos da vida adulta e conjugal, por um período que variava entre semanas a meses. Porém, no meu caso foi diferente, porque fui agarrada numa quinta-feira em vez de sábado como o habitual, por influência da família do meu

118 pai que são majoritariamente de confissões originárias do protestantismo, só fiquei três noites dentro da casa. Foi uma exceção, pois nunca tinha visto ou ouvido falar de outra menina que tivesse sido agarrada numa quinta-feira. A partir das pesquisas bibliográficas e da minha experiência pessoal, pude constatar que o dia estabelecido de se agarrar uma menina é num sábado.

Os ritos genderizam claramente as identidades de gênero não apenas porque reproduzem o modelo social e cultural de dominação patriarcal, mas também porque o reforçam e legitimam, através das cerimónias, dos espaços e dos dispositivos que os asseguram, como sejam o segredo, o medo e os castigos.

Mas não se pode deixar de reconhecer que os mecanismos criados para configurar o seu papel social precisam de ser desconstruídos e reanalisados, em função de novas realidades e contextos em que os mesmos vêm ocorrendo (OSÓRIO & MACUÁCUA, 2013, 15).

Para além de construírem identidades os ritos são muito mais que isso, porque eles também determinam os princípios morais, o certo e o errado, a punição e não punição. As iniciações nunca foram pacíficas, elas não são objetos de uma simples aceitação por aqueles que irão passar por ele.

O ritual de iniciação das Bichiento Tchikumbi está sendo repensado pelas jovens na contemporaneidade, uma vez que tornar-se Nchiento, nos dias de hoje, ganhou um significado mais amplo que ultrapassa a esfera privada e adentra a pública, mesmo que essa transição seja compreendida como uma violação às leis estabelecidas pela Deusa Lusunzi. Já não se cumpre, ao pé da letra, o que era considerado como proibição. A nova geração acredita que não existe um único padrão ideal de Nchiento, mas sim que são socialmente estabelecidos e construídos os papéis sociais segundo as culturas. “Padrões esses oriundos de representações sociais e culturais construídos a partir das diferenças biológicas dos sexos e transmitidos através dos ritos” (OSÓRIO & MACUÁCUA, 2013, p. 17).

No documento TCHIKUMBI: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 116-120)