• Nenhum resultado encontrado

O alambamento entre os Bauoio: compra, empréstimo ou dádiva?

No documento TCHIKUMBI: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 128-152)

2.3 Tornar-se Nchiento na cultura Bauoio do Povo Grande

2.3.2. O alambamento entre os Bauoio: compra, empréstimo ou dádiva?

126 estipulado pelos futuros sogros, como forma de compensação material relativa à perda de uma força na família. O alambamento só acontece depois do Tchikumbi.

127 perpetuar a descendência, e pode ser celebrado de forma “tradicional” (alambamento), religiosa ou pelo civil” (MARTINS, 2017, p.104).

O casamento não é um acontecimento individual, como comanda a nossa ideologia de amor romântico, mas algo coletivo, grupal, que sempre mobiliza as forças sociais no sentido de criar uma nova unidade (o casal), além disso procura integral esta nova unidade no seio de algum grupo mais inclusivo (VAN GENNEP, 1978, p. 20).

No Alambamento entre o Tchikumbi e o Mukuela (casamento na língua ibinda), os proponentes têm que realizar primeiramente algumas cerimônias como a apresentação e o noivado. Só depois a prática “tradicional”, o Alambamento, cujo ponto culminante é a constituição de uma nova família ou de um Mukuela (MASSANGA, 2014, p. 123) pode ser realizado.

Sabemos que para a maioria das sociedades ocidentais, o casamento é um acontecimento pensado dentro das ideologias de amor como um ato individual, no qual duas pessoas decidem casar. Mas em várias outras sociedades ganha outras conotações e também outras finalidades.

Então nos perguntamos qual é o verdadeiro significado do alambamento, para os Bauoio da aldeia do Povo Grande? Qual seu significado antropológico?

O alambamento ou casamento consiste no “dote” de casamento, os presentes que o noivo e a sua família dão por contrato a família da noiva, prêmios que estão sendo vistos como símbolo que valida o matrimônio, uma indenização pelos gastos feitos com ela desde o seu nascimento até o dia do casamento, uma vez que foi essa família que a gestou e criou (LELO

& CRISTINA 2013, p. 4).

Muitos autores negam que os presentes entregues pelo noivo sejam denominados de dote, uma vez que o alambamento não tem o mesmo significado que compra. São entregues geralmente certas quantias em dinheiro, objetos, bebidas e animais, que a família do noivo faz chegar à família, deve sempre preceder ao alambamento e a família do noivo em troca recebe a noiva, a mulher (LELO & CRISTINA 2013, p. 4).

Os bens que compõem o alambamento variam de região para região, dependendo sempre de vários fatores locais como os níveis sociais, os tipos de economia e a proximidade dos ambientes culturais. Para além desses citados temos outros fatores que envolvem a estética da chikiento, tais como a beleza e juventude que ela possui, os seus dotes e preparações estéticas têm sem dúvidas influências na hora da formulação da carta do pedido feita pelos tios maternos

128 da noiva. “Não se fala de compra76 ou venda da mulher” (LELO & CRISTINA 2013, p.4).

A mesma instituição do alambamento faz com as pessoas pensem numa compra nos dias atuais, pelo fato de se constatar em certas famílias o excesso de coisas nessa mesma carta, fazendo com que se pense em um aproveitamento da condição ou interesse do noivo para pedir mais do que devido para fins próprios. São analisados requisitos como os dotes, as qualidades e muitas outras exigências em relação à noiva. As Bichiento são educadas para possuir, além da instrução primária, o conhecimento em relação aos afazeres domésticos como cozinhar, lavar, passar roupa, e cultivar (LELO & CRISTINA 2013, p. 4). “Antigamente, os bens entregues não tinham grandes valores, garantia uma promessa que seria honrada pela futura linhagem” (LELO & CRISTINA 2013, p. 6).

“Pelo casamento não nasce uma nova família, apenas as duas já existentes se solidificam e engrandecem: pela descendência futura que a família materna enquadra no seu âmbito; pela aliança que fazem entre si” (Vaz 1969 apud Martins 2017, P.99) Partindo desse pressuposto, afirma-se que o Alambamento é um acontecimento, uma união entre duas famílias, dois clãs a partir de dois jovens, um bakala (homem) e uma Nchiento, com finalidade de perpetuar a linhagem, a descendência e criar laços entre os clãs.

Mas para que haja essa união entre os clãs, primeiramente a vontade deve partir de ambos os jovens. A iniciativa vem do homem, que, pessoalmente ou por intermédio de um amigo ou um parente seu, consiga fazer chegar até a menina um presente de uso pessoal. Caso ela aceite e não devolva, significa que o pedido de amizade foi aprovado. Mas as coisas só poderão seguir em frente depois da concordância da família da moça. Nesta mesma reunião se informa ao rapaz e a sua família tudo que deverá ser dado no Alambamento. Como podemos ver mais abaixo:

A concordância é dada em reunião de família. O rapaz oferecerá primeiro à

«amiga» uma garrafa, por exemplo de vinho do Porto ou licoroso, donde ele primeiro bebeu. Se a rapariga também bebe indica que aceita. Por sua vez, ela levará aos pais e tios maternos essa mesma garrafa, donde já ela bebera e o

«amigo», e, se todos beberem, automaticamente está dito que aceitam (MARTINS, 1972, p.251).

76“Nenhum nome banto dá a entender que o alambamento seja uma compra mediante pagamento. Se aparece esta cambiante, ou seja, verifica esta realidade. É devido o abuso ou a corrupção dos costumes. No genuíno direto tradicional banto não aparece a noção de compra- venda da mulher, nem há lugar para instituições que formalizem o tráfico de mulheres apoiados no contrato matrimonial” (LELO & CRISTINA 2013, p. 5).

129 Nos tempos anteriores, segundo Lelo & Cristina (2013), existiu entre os Bauoio do Povo Grande, um processo de arranjar esposa, mas que nos tempos atuais já não é comum principalmente nas áreas urbanas das grandes cidades de Cabinda.

No Povo Grande antigamente os pais arranjavam mulher para o seu filho. Na aldeia quando o pai gostasse de uma rapariga, respeitosa, trabalhadora e asseada, o pai do rapaz ia ter com os pais da rapariga e dizia-lhes que gostaria que a filha fosse esposa do meu filho. Tudo era acertado entre as duas famílias, tanto os familiares do rapaz como os da rapariga. Ficavam de acordo. A filha ficava a saber, através do seu pai, que já era noiva e que não poderia dar confiança a qualquer rapaz da aldeia. Ela apenas cumpria o que seu pai orientava, a rapariga ficava sem saber quem era o rapaz (LELO & CRISTINA 2013, p. 6).

Era um casamento arranjado, tanto o homem quanto a Nchiento só tinham conhecimento do noivado através dos pais, os dois encontravam-se apenas no dia do alambamento. Como forma de revelar para a comunidade que o filho ou filha já estava comprometido, existiam vários gestos simbólicos utilizadas pelas famílias para informar a todos, como podemos ver na citação abaixo:

Na casa onde vivia a rapariga construíam uma casa feita de bordão, com uma pequena porta onde cruzavam um pau que significava que a moça já era comprometida. A jovem antes de casar tinha que entrar na casa de tinta, pois no passado, nenhuma rapariga podia ter marido sem antes passar nesse ritual.

Seria uma falta de respeito aos antepassados e a família. E a rapariga tinha medo deste ritual, porque o não cumprimento dele ou violação pagava-se muito caro, como por exemplo dançar despida em frente ao público, o nome da dança era Mbumba- Mbitica, e também eram chicoteados com vassouras nos pés e nas costas (LELO & CRISTINA 2013, p. 7).

Valente (1985) que analisou o significado atribuído a cada etapa concernente ao Alambamento em Angola, como um longo processo, menciona que o primeiro passo para assegurar o Alambamento, a noiva, começa quando o pai do rapaz, e este, dirige-se à casa da rapariga levando consigo presentes e valores à família da noiva para impedir que essa se case com um outro rapaz e, se a petição for aceita, será assim um sinal de um primeiro acordo. Caso isso não aconteça, o pedido é anulado e os bens devolvidos (VALENTE, 1985 apud MARTINS, 2017, p. 106).

Terminando a primeira etapa com êxito e a fase das negociações for ultrapassada, procede-se à segunda, onde começa com o pagamento dos valores em dinheiro, ou em gêneros, logo terminam as obrigações da segunda fase há garantias materiais para se proceder à cerimónia do casamento (MARTINS, 2017, p. 106). “A lista dos bens é entregue aos emissários, que a fazem chegar aos restantes membros da família, sendo esses bens levados na altura da

130 cerimônia, de salientar que o não cumprimento pode acarretar do acordo firmado" (LELO &

CRISTINA 2013, p. 6).

O processo do Alambamento varia muito de família para família, baseado na classe social em que se enquadram e dos ideais de cada clã. Uns mais longos que os outros sucessivamente.

Mas três fases muito praticadas ainda nos dias de hoje entre os Cabindas:

1 – Mbongo zamikina, o dinheiro de «amigar», quando se pede licença à família para namorar.

2 – Mbongoz ikunzi kilakimigo (chimigo) - o dinheiro para' que se dê a conhecer publicamente que a rapariga já tem pretendente e, portanto, para que ninguém mais venha a ter pretensões sobre ela. Para se perder toda a ideia de negócio e venda, note-se que não haverá oferta a quem mais der. Sendo anunciado que tem pretendente, acabou-se.

3- Mbongozi makuela - o dinheiro do casamento, para que possa tomar a rapariga e levá-la para sua casa, Mbongozamikina Para pedir licença à família, o rapaz já falou com a rapariga, vai uma pessoa da confiança daquele que pode ser homem ou mulher. A família já está, mais ou menos, a par do caso.

(MARTINS, 1972, p. 254).

Um processo que varia muito de região para região, de clã para clã. Trouxemos uma lista dos bens77reais (bebidas, peças de roupas, valores monetários entre outros) que foram pedidos num Alambamento, na tarde do dia 23 de dezembro de 1970 para um senhor que gostou e desejava para mulher (MARTINS, 1972):

2 barris de vinho tinto ...1/1.100$00 2.200$00 10 litros de bagaceira branca ...1/60$00 600$00 2 garrafões de 10 litros de v. tinto, capacete ...1/180$00 360$00 Em numerário ...2.500$00 3 peças de «pintado»... 1/150$00 450$00 1 garrafa de Carlos III ...150$00 5 garrafas de cinzano ...1/55$00 275$00 Em várias bebidas e beberetes ...400$00

Valor total ...6.935$00, (p. 256)

Uma questão trazida por Martins (1972) e que paira também na mente de pessoas locais, que tem gerado muitos comentários e questionamentos sobre o “verdadeiro significado do

77 “As coisas, bebidas, etc., etc., são divididas de comum acordo pelos tios e tias maternas. Regra geral não há mau entendimento no caso. A divisão é feita em partes iguais: um maço a este, um maço àquele; tantos litros a um e igual número a outro; tanto dinheiro a este e igual quantia àquele, etc., etc.” (MARTINS, 1972, p. 256).

131 Alambamento”: “Ser-se-á levado a perguntar se isto de alambamento é compra78empréstimo ou dádiva para o noivado. Não é compra nem dádiva, nem empréstimo. O que é, pois, o alambamento?” (MARTINS, 1972, p. 250).

Uma pergunta que gera contradições e uma má leitura em relação ao Alambamento, simplesmente por causa dos artigos materiais e financeiros que o noivo é obrigado a entregar para família da noiva a fim de se consumar o casamento. Muitos chamam esses artigos de dote, mas segundo a literatura e os próprios cabindas não existe uma semelhança entre eles, porque cairemos no erro da comparação. “Outros lhe chamam «dote». Nunca o alambamento teve verdadeiramente o sentido que os europeus dão a dote”. O gesto feito pelo noivo nunca deve ser visto ou comparado com a compra da “mulher”, porque o pedido na lista não enriquece os familiares da mulher e sim é um ato simbólico que representa a união entre os clãs e os noivos.

“Mas não há que confundir, diz Kunz Dittmer, a compra da noiva com a compra de qualquer mercadoria, por isso que essa mentalidade criada de que o alambamento é uma «compra» tem levado muitos a lutar contra ele” (MARTINS, 1972, p.251).

Na cerimônia do Alambamento, as famílias não deixam de chamar a atenção dos jovens, de como o homem deve tratar a sua mulher todos os dias e não apenas nos primeiros dias do casamento, a fim de se evitar os casos de violência doméstica. Pois o fato da entrega do alambamento não traduz em compra e nem justifica uma conduta de contínua escravidão e maus tratos, para os Bauoio quando uma filha ou um filho se casa não significa que ficou livre da tutela da família, do seu clã (MASSANGA, 2014, p. 124).

Ao casar-se uma rapariga, a família perde por assim dizer, um poder e valor económico, para reparar esta perda o noivo tem que oferecer uma espécie de indemnização, sendo, também, a garantia de que o casamento durará e que a jovem será bem tratada e, se houver divórcio por maus-tratos do marido, não deveria então restituir-se nada ou pouco do alambamento” (DITTMER, 1960 apud MARTINS 2017, p. 105).

Podemos notar também que pelo Alambamento, o noivo quer mostrar o interesse (o amor?) que sente pela sua futura esposa, pelos seus dotes de trabalho e pela esperança que nela deposita para vir a ser mãe fecunda. A Nchiento do outro lado chegará a envaidecer-se ao notar o «valor» que lhe atribuem no futuro marido, que reconhece nela uma Nchiento de trabalho,

78 Segundo Martins (1972) “não se dê ao alambamento sentido de compra ou venda. De modo algum. Para eles é um insulto pensar dessa forma quanto mais o exprimi-lo” Martins (1972, p. 252)

132 com várias qualidades como a de boa esposa e boa mãe (MARTINS, 1972, P. 252).

No que tange aos bens recebidos no Alambamento, em ordem ao casamento, a noiva entrega o chamado Mbongozi Makuela79 e o Mbongozi Nchiento80–uma parte é o dinheiro do casamento e a outra o dinheiro da Nchiento (MARTINS, 1972, P. 252). Mas para consumar81 o casamento, o que mais importa é o Mbongozi makuela (MARTINS, 1972, P. 253).

Uma das exigências no Alambamento é de que a noiva seja virgem82, mas nos dias de hoje esse fator já não é levado a pé da letra, porque na atualidade os casais na sua maioria já se envolvem sexualmente muito antes do casamento. Em alguns casos, quando a família vai fazer a carta do pedido para o Alambamento, a menina já está no estado de gestação.

Em Cabinda, entre os Bauoio, cada kanda (grupo familiar), representados pelo Mfumu Kanda83 (o chefe da família) de mesma origem e consanguinidade possuem o seu próprio bingu84. Logo por esse motivo nenhum homem pode casar com uma mulher da mesma kanda, do mesmo sangue materno, do mesmo bingu, isto porque para os cabindas, pelo casamento não nasce uma nova família, mas sim uma aliança entre as duas já existentes, se solidificam através da descendência futura que a família materna enquadra no seu âmbito. Laman (1957), citado

79 “O Mbongozi Makuela é que forma, na verdade, o dinheiro, os bens do casamento que, no caso de divórcio ou de morte, é devolvido, no todo ou em parte, conforme os anos de casados, o número de filhos, etc., etc”

(MARTINS, 1972, P. 253).

80 “O Mbongo Nkiento é o que o noivo dá, a título pessoal, à noiva e que esta usa e gasta. Só será devolvido não se tendo realizado o casamento, conforme já vimos num exemplo atrás” (MARTINS, 1972, P. 253).

81 “Podemos até afirmar que o casamento só se torna válido de verdade no momento em que todas as coisas do Mbongo, zimakuela foram entregues” (MARTINS, 1972, P. 253).

“Morrendo o marido, a família deste pode receber, conforme, todo ou parte do Mbongo, zimakuela ou até um irmão do falecido receberá a viúva; morrendo a mulher, segundo os anos de casada, o número de filhos, etc., etc., se devolverá, mais ou menos, os bens do Mbongozimakuela ou se entregará uma irmã desta para casar com o viúvo” (MARTINS, 1972, P. 253).

82 “Pode acontecer que a rapariga não vá virgem para o casamento. Nunca vi pedir-se, por isso, a anulação do casamento. Pede, sim, ao noivo, a devolução de metade do alambamento, a família não perderá nada” (MARTINS, 1972, P. 256).

83(mfumu kanda é a autoridade suprema e o representante dos antepassados, cabendo-lhe o poder de organizar a sua família (kanda) (MARTINS, 2017, p. 99).

84 O bingu implicava diversas cerimónias rituais e não devia ser entendido como um “feitiço”, mas como um princípio destinado a manter pessoas consanguíneas no mesmo grupo familiar (MARTINS, 2017, p. 99).

133 por Martins (2017, p. 99), “refere que no casamento entre os Kongo não se formam novas famílias porque o marido pertence a uma kanda e a esposa faz parte de outra kanda”.

Atribui-se uma grande importância a cada nkobe-bingu, objeto privativo de cada família do mesmo sangue com a responsabilidade, entre outras, de fazer respeitar as imposições relacionadas ao casamento. Martins (2017), argumenta que na verdade, a razão fundamental do casamento é o progresso que dele advém, para o clã, e não para o indivíduo, ao assegurar a continuidade e a multiplicação do mesmo, originando por vezes conflitos familiares. Segundo o autor, a filha (noiva) é “cedida” ao noivo como “doação” definitiva, ainda dentro do alambamento se verifica o tabu entre sogra e genro, que pouco se comunicam, virando muitas vezes as costas um ao outro, existindo assim entre os dois uma relação muito restrita, costume que desconhecemos se ainda se mantém (MARTINS, 2017, p. 99).

No caso do casamento não se consumar, isto é, em caso de divórcio provocado pelo não cumprimento do papel da Nchiento, como a de não de gerar filhos, que darão continuidade a linhagem a família da noiva fica obrigada a devolver as coisas entregues no Alambamento, é obrigação dos pais da noiva a devolver total ou parcialmente os bens que lhes tinham sido entregues pelos sogros. Um dos principais fundamentos do casamento para os cabindas é a descendência, a continuidade da linhagem onde a Nchiento fica com a responsabilidade total, por serem sociedades matrilineares. Se a Nchiento não tivesse gerado filho, ao fim de dois anos, e as irmãs casadas já os tivessem no mesmo período, ocorre o divórcio e a jovem divorciada voltava para casa dos pais ou outros familiares, e ficava esperando pelo novo alambamento.

Mas quando a situação é invertida, se o “problema” de fertilidade estiver com o marido neste caso, segundo Martins (2017). “em caso de esterilidade atribuída ao marido, à “mulher”

não podia casar novamente sem que o segundo marido restituísse ao primeiro o alambamento que este havia dado”. Isto é, a família da noiva terá que devolver os dotes recebidos no casamento (Martins, 2017, p. 105). Não sabemos se esta prática ainda ocorre nos tempos atuais.

De acordo com o mesmo autor:

“a prática do alambamento continua a ser realizada entre muitos povos africanos, considerada ainda em Angola como uma cerimónia fundamental no casamento tradicional, dependendo da etnia, da posição social das famílias, da fertilidade dos terrenos e das circunstâncias e épocas do enlace” (Martins, 2017, p. 105).

Segundo Mbambi (2012), “dois terços dos países da África praticam o alambamento, acrescentando que também se verifica na Ásia”. Como o caso da África do Sul com a presença

134 do lobola85 onde “as onze vacas, definidas inicialmente como o que o noivo deve dar à família da noiva para que ela se mude para a sua casa e produza crianças com o sobrenome paterno, são alvos de permanente especulação e negociação entre os falantes isi Zulu na África do Sul”

(AZEVEDO, 2015, p. 24). E em Moçambique com o “lobolo que a grosso modo a cerimônia de casamento entendida como “tradicional” no sul de Moçambique, na qual a família do noivo oferece bens para a família da noiva em troca do casamento” (FURQUIM, 2016, p. 6)

O alambamento se constitui numa cerimônia precedida de muitos encontros em que os emissários de ambas as famílias se reúnem para os ajustes necessários para a realização do evento, isso é os tios da noiva e do noivo (LELO & CRISTINA 2013, p. 5). Assim como acontece durante o ritual do Tchikumbi, a ikumbi e suas companheiras choram ao despedirem-se dos tempos alegres de infância que viveram juntas despedirem-sem grandes responsabilidades, onde a nova Nchiento terá uma nova vida que será muito trabalhosa e com muitas preocupações, no casamento o mesmo se repete com a Nchiento, ela chora e expressa muita dor em relação às responsabilidades adquiridas e as futuras cobranças do lar. Mesmo que esteja feliz, a noiva deve sempre demonstrar uma expressão de tristeza no rosto por estar a deixar a sua família.

Segundo Martins (2017), quando uma “mulher” se casa em Cabinda é esperado que ela demonstre uma aparência melancólica, mesmo que no seu íntimo esteja feliz por estar a se casar.

Esta postura é esperada, porque entende-se que acabam os tempos sem preocupações, começam as responsabilidades do lar e ainda por temer ser estéril. Sobre este assunto, são esclarecedoras as palavras de Vaz (1969) citado por Martins (2017), ao afirmar que: segundo os usos locais, a noiva deve assumir essa postura quando casa: “se eu mostrar alegria, mais tarde, se a vida me trouxer tristezas e me lamentar, dir-me-ão em tom sarcástico. Pois é, agora estás triste e a chorar, mas no dia do casamento bem te vimos toda foliona”.

A dor expressa pela noiva é múltipla porque vai casar e deixar os seus, acabam os tempos sem preocupações, começam as responsabilidades do lar e ainda por temer ser estéril, motivos pelos quais deve aparentar melancolia, embora no seu íntimo esteja feliz por ter pretendente (MARTINS, 2017, p. 97).

Quanto à fertilidade da “mulher” cabinda podemos ver em Martins (2017) que:

A importância da mulher cabinda e em Angola em geral, associada à ideia de que deve ser fértil, é intuída pelas jovens desde muito cedo, fruto de uma sensibilização protagonizada pelas mais velhas através da confecção e uso de

85 “o lobola faz parte dos casamentos africanos denominados de “casamento por compra”, sem que essa prestação matrimonial possa ser considerada um pagamento” (AZEVEDO, 2015, p. 29)

135 amuletos, tais como bonecas de fertilidade “para proteger futuras mães e propiciar futuras descendências” e de inúmeros provérbios africanos que aludem a comparações entre o sol (homem) e a lua (mulher): “aparentemente o sol é mais importante, mas de facto a lua vale mais por ter filhos: as estrelas”

(MARTINS, 2017, p.105).

Segundo Bakare-Yusuf (2003), “mulheres” assim desempenharam papéis centrais, mas, enfaticamente, socialmente subordinados na sociedade Africana, algumas afirmam que este papel central, mas inferior está atualmente reforçado através da valorização da maternidade”.

De uma Nchiento casada é esperado que assuma as responsabilidades do lar (no âmbito doméstico), que cuide do marido e dos filhos que serão aguardados pelos parentes ansiosos logo após o alambamento. As relações de poder na maioria das vezes são limitadas onde o homem fica responsável de garantir a proteção e assistência financeira (mas voltado à esfera pública) a família e a “mulher” com as responsabilidades do âmbito privado (doméstico). Historicamente ainda como nos mostra Bakare-Yusuf (2003, p. 2) “a divisão sexual do trabalho era organizada de tal maneira que as “mulheres” eram (e ainda são) as cuidadoras primordiais, e foram responsáveis pela maior parte do cultivo e/ou processamento de alimentos”.

O alambamento86 é uma cerimônia de grande importância em Angola, pela própria manutenção dos hábitos e costumes que identificam determinado povo, bem pela valorização da mulher e da família que a criou. Uma vez que o alambamento se traduz nos estímulos às virtudes nos seios das famílias Angolanas, estando em jogo não apenas a formação de uma nova família, mas acima de tudo o estabelecimento de uma aliança pública entre as duas famílias (LELO & CRISTINA 2013, p. 5).

Em certa medida, o Tchikumbi aparece também como um ritual de manutenção dessas relações de poder, ao garantir que um dos ensinamentos passados as ikumbi, durante o ritual seja voltada para a vida doméstica (de como cuidar do lar e ser boa esposa), quando elas aprendem como cuidar do lar, como se comportar perante o futuro marido e os parentes do mesmo, tendo sempre a sogra como segunda mãe.

Uma vez que no ritual O Tchikumbi os conhecimentos voltados à área doméstica são ensinados às ikumbi, e, no ritual da circuncisão no qual passam os homens, eles não recebem esses mesmos conhecimentos, mas como cuidar e proteger a esposa e os filhos. O Tchikumbi

86“O alambamento passou a considerar-se como garantia do contrato do casamento, ou como caução impeditiva da sua realização, rescisão. É dita como caução impeditiva porque em caso de divórcio a família da noiva é obrigada a devolver os bens recebidos” (LELO & CRISTINA 2013, p. 5).

136 aparece também como um mecanismo de divisão social do trabalho baseado nos sexos.

Outro aspecto que é retratado dentro dos ensinamentos do Tchikumbi é sobre a educação sexual (isso se a menina já estiver comprometida), elas aprendem a se comportar durante as relações sexuais, de como agradar a marido e manter uma vida sexual ativa para o bem do lar.

Mesmo no processo da descaracterização do ritual na contemporaneidade, com as transformações sofridas tornando-a muitos casos numa mera formalidade simbólica, as Nchiento continuam sendo ainda muito ritualizadas com esta questão dos cuidados do lar, e não acontece o mesmo com os meninos, uma vez que na sua maioria são circuncisados em hospitais ocidentais, sem precisarem passar pelo ritual da circuncisão, como manda as leis dos Bakisi-Basi.

Lelo & Cristina (2013) nos apresentam algumas finalidades e características do alambamento dos Bauoio do Povo Grande, a saber:

1. O alambamento marca a emancipação do homem e da” mulher”.

2. O alambamento envolve sempre as duas famílias e abrange os dois nubentes.

3. Os rituais e cerimônias dos casamentos “tradicionais” retratam a vitalidade cultural da comunidade.

4. O alambamento é fonte da continuidade das linhagens.(p.1)

O Alambamento e o Mukuela (casamento), são temáticas muito instigantes e que não pretendemos esmiuçá-las por completo nesse trabalho. Para concluirmos o assunto, trazemos as definições e as finalidades do Alambamento citadas pelas pelo P. João Vissers, que acertadamente escreve que:

O Alambamento é:

Em primeiro lugar, o alambamento é a prova de que o noivo aprecia a noiva!

Deve “ganhar” a noiva pelo trabalho árduo de alguns anos. 2- É o reconhecimento dos cuidados que o clã teve com a educação da rapariga. 3- É uma indemnização ao clã porque “perde os braços” da rapariga, e é assim também um reconhecimento da laboriosidade dela.4 - É a garantia de que o casamento durará e de que ela será bem tratada. Pois, se houver divórcio por o marido a tratar mal, não se deveria restituir nada ou somente pouco do alambamento (MARTINS, 1972, P. 257).

Depois de abordarmos o Alambamento entre os Cabindas, nos debruçaremos sobre um outro tema não menos importante, a estrutura de parentesco que se tornou num grande desafio central para as pesquisas africanas e não só, quando o assunto é entender ou analisar as realidades africanas.

No documento TCHIKUMBI: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 128-152)