• Nenhum resultado encontrado

Negociações entre os Bauoio do Povo Grande em Relação à Prática do Tchikumbi Existem vários fatores que contribuem para que o ritual Tchikumbi seja retardado para

No documento TCHIKUMBI: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 159-185)

157 Ao seu redor as coisas se ordenam e as perturbações se aquietam. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 179).

Em relação à pergunta: "porque as meninas entravam na casa de tinta o Tchikumbi? A resposta de Maria Das Dores foi: “porque é tradição, para nós os Cabindas, é tradição. Homem não entra, só as mulheres” (Maria Das Dores, Luanda, 15 de dez de 2020). Uma resposta muito comum. Pode contatar durante o trabalho de campo que as pessoas em Cabinda compartilham da mesma resposta em relação a questão, a maioria justificou que as meninas passam pelo ritual porque assim manda a “tradição”, porque faz parte da cultura dos Bauoio, e se a menina não passar pelo ritual, pode arcar com algumas consequências como a falta de fertilidade ou a morte precoce dos filhos. Tchikumbi representa honra para os pais e para as meninas, respeito aos ancestrais e as leis locais. A prática tem sofrido alterações/ressignificações acompanhando os contextos atuais, o sentido dinâmico da cultura e a capacidade de adaptação dos indivíduos bem como de agenciamento. Como foi possível perceber na minha reflexão anterior no capítulo II onde trago o debate sobre Tchikumbi na contemporaneidade, o ritual Tchikumbi tem sofrido mudanças a partir das negociações de agenciamento das próprias “mulheres” implicadas, deixando claro toda a complexidade inerente ao processo. É sobre essa negociação dentro da cultura Bauoio, em relação ao ritual do Tchikumbi, que discutirei a seguir.

3.4 Negociações entre os Bauoio do Povo Grande em Relação à Prática do Tchikumbi

158 Outro fator não menos importante é o fator religioso, por conta da adesão de alguns Bauoio a religiões católica e protestante. A religião influenciou na prática do ritual fazendo com que ele não seja só retardado, mas também ressignificado de uma forma simbólica.

De acordo com Buza (2011) apesar de haver um espaço para o sincretismo, o Tchikumbi, é considerada uma prática pagã e profana (BUZA, 2011, p.9), o que nos leva a entender que a religião, neste caso, contribui profundamente no apagamento e retardamento do ritual Tchikumbi entre os Bauoio do Povo Grande em Cabinda, este argumento encontra sustentação na narrativa de minha mãe, Maria Das Dores, ao se referir de uma prima, que a mãe é da religião protestante mas ciente das obrigações dos costumes locais. Por outras palavras, o fato de pertencer à religião cristã não anula a possibilidade da realização de rituais da tradição Bauoio do Povo Grande. Maria Das Dores comenta que;

Como exemplo temos a sua tia Vânia, a minha prima, a filha do irmão da minha mãe, o meu tio Paulo, como a mãe dela é da igreja protestante e não é muito a favor do ritual, então ela decidiu só chamar uma senhora que vive nas áreas do tchizo que entende dessa tradição, foi lá em casa, e lhe agarraram mesmo em casa fizeram o ritual, a tradição e acabou (Maria Das Dores, Luanda, 20 dez de 2020).

Como é possível constatar a partir da citação acima, pelo fato de a mãe ser da religião protestante a filha não passou pelo ritual como manda a “tradição” mas teve que a realizar mediante uma cerimônia simbólica o ritual, um jeito que demonstrar respeito e cumprimento da tradição, uma solução negociada pelas ambas famílias, tendo em conta a exigência materna e as preocupações paternas. Nesse caso, o pai da minha tia Vânia o avô Paulo não era da mesma religião que a esposa e não via nenhum problema de a filha passar pelo ritual do Tchikumbi.

sendo que

O meu tio, irmão da minha mãe não via nenhum problema da minha prima Vânia entrar na casa de tinta, o problema estava na parte da mãe dela, onde a mãe da minha prima não podia dar a conhecer do ritual por conta da religião deles – protestante, não podiam saber que a filha estava a entrar na casa de tinta. Isso porque na tradição protestante a casa de tinta não existe, é vista como pecado, algo do mal. O mesmo também aconteceu com você minha filha, no teu caso também, o problema estava com a família do teu pai que também são protestantes. Só os católicos é que entram e não vêm problemas na casa de tinta (Maria Das Dores, Luanda, 20 de dez de 2020).

Para além das interferências religiosas, aqui está também presente questões ligadas ao tipo de organização social dos Bauoio e de parentesco (matrilinear) onde quem dá a linha da

159 descendência Mãe. Existe casos em que o pai é do grupo étnico Bauoio e a mãe de um outro grupo étnico local ( Baiombe) ou de uma outra província que as meninas não são obrigadas a passar pelo ritual de iniciação das Bichiento automaticamente elas não passam no ritual porque a linha materna é que tem maior influência neste aspecto.

A minha experência no ritual Tchikumbi assemelha-se com a experiência da minha tia Vânia e de outras ikumbi Bauoio, passei pelo ritual Tchikumbi com uma “idade considerada avançada” onde os motivos foram também por questões voltadas a religião. No meu caso, a resistência derivava da família paterna protestante e a minha família materna católica.

Geralmente os rituais os Bauoio que aderiram ao cristianismo, se escondem e praticam o ritual secretamente ou discretamente da religião.

Outras situações em que o ritual pode ser feito mais tarde tem a ver com os fatores de globalização e migratórios entre os Bauoio. Trago a caso da minha prima Juelma e minha sobrinha Marta, que ainda não passaram pelo ritual do Tchikumbi, por estarem a viver em Luanda\capital com meus tios, pai e mãe. A Juelma nasceu e cresceu em Luanda, filha do meu tio Mário, irmão da minha mãe, natural de Cabinda da aldeia do Cacongo e a mãe tia Joana natural de Luanda. Os pais não demonstram interesse em colocar a filha na casa de tinta o Tchikumbi, por alegarem não ter terminado ainda o ensino médio, e ter apenas 17 anos e também segundo a minha tia Joana a mãe da Juelma não acha pertinente a filha passar pelo ritual por ser uma prática do passado e atrasada.

Já o caso da Marta minha sobrinha, filha da minha irmã Rita natural de Cabinda do Povo Grade e o pai natural da província do Zaire ( soyo), nasceu em Cabinda e foi levada pra Luanda com um ano e seis meses pela minha tia que a criou, e nesse momento está com 20 anos, segundo a minha irmã Rita, não pretende-se colocar a filha no ritual de iniciação das Nchiento por ser uma prática que tem que ficar no passado, como descrito pela mesma durante uma conversa que tivemos: “Por mim não pretendo colocar a minha filha no ritual do Tchikumbi, porque já estamos a rezar, estas coisas de tradição temos que deixar, não vale a pena levar mais isso na nova geração” ( Rita Mankanfi, Luanda 01 de abril de 2022).

Já a minha mãe Maria das Dores, na condição da avó materna da Marta alega ser necessário cumprir pelo menos a tradição de uma forma simbólica, fazendo o NLONGO (tradição), um gesto simbólico praticado, onde virá uma Nchiento de Cabinda pertencente da família ou alguém que será pago, para realizar o Nlongo na ikumbi, alguém que entende da

160 tradição e do ritual do Tchikumbi em Cabinda, para agarrar e cumprir com os ritos do ritual. os ritos já foram citados no segundo capítulo da dissertação.

Mesmo a filha do João, a tua sobrinha Nilza, quando tiver que entrar na casa de tinta, podemos ir só num sítio, como no tchizo e fazer só a tradição por lá, e acabou, chamar só as pessoas essenciais da família, comprar bebidas, ou mesmo sem o conhecimento da família podemos fazer essa tradição (Maria Das Dores, Luanda, 20 dez de 2020).

Em relação às implicações do ritual na nossa vida, o fato marcante na vida da minha mãe Maria Das Dores foi o acontecimento que mudou a vida dela ainda na sua juventude antes de passar pelo ritual. Quando ela e um amigo decidiram procurar e solicitar bolsas de estudos em algumas Embaixadas no Congo Democrático onde residiam naquela época.

3.5 “Por eu ser do sexo feminino e não ter passado ainda pelo ritual do Tchikumbi não fui estudar no Brasil”

Quando chegamos à República Democrática do Congo em 1975 eu decidi estudar por conta própria, não esperei apoio vindo da minha mãe ou do meu pai. Logo que chegamos à RDC comecei a estudar numa escola dos angolanos, (escola portuguesa). Eu estudava de noite e trabalhada de dia numa loja de roupas de bebês de um francês. Com os meus 16 anos, consegui uma bolsa de estudo para o Brasil, mas não consegui ir estudar porque o meu pai não permitiu. Na altura muitos Angolanos que estudavam comigo conseguiram bolsa de estudo e foram para fora estudar, a partir mesmo da RDC. Eu conheci duas colegas minhas que também conseguiram bolsa a partir da mesma escola e foram estudar fora, uma delas é a Bela que casou com um moço do Cacongo (Maria Das Dores, Luanda, 20 de dez de 2020).

A minha mãe foi a primeira a conseguir a bolsa na Embaixada do Brasil e o seu amigo, em seguida conseguiu também uma bolsa na Embaixada de Portugal. Mas por causa da decisão do pai e também por motivos culturais relacionados ao ritual e de gênero, isso é, por ela não ter passado ainda pelo ritual do Tchikunbi, a resposta que ouviu do seu pai quando lhe foi consultado foi um não. Já o seu amigo talvez por ser homem e não precisar passar pelo ritual, quando ele perguntou a seu pai, teve uma resposta positiva. Assim, em seguida, ele viajou para Portugal, e lá deu seguimento aos seus estudos, isso no ano de 1977, com os seus 18 anos salienta Maria Das Dores.

O meu pai disse que eu não podia viajar para o Brasil porque eu ainda não tinha passado pelo ritual das Nchiento, porque em Cabinda tinham o conhecimento que eu e as minhas irmãs ainda não tínhamos passado na casa de tinta e o meu pai tinha medo que quando a família dele em Cabinda tivesse o conhecimento da minha ida para o Brasil com uma idade avançada (18 anos) sem passar pelo ritual, não iriam acreditar que eu fui simplesmente para estudar e que não tinha me casado ainda, e iriam dizer que o meu pai me

161 colocou na casa de tinta e me fez casar e gastou o dinheiro ou recebeu as coisas do alambamento sozinho e está mentindo. E poderia sofrer graves consequências com o ocorrido que lhe levariam até à morte. Este era o medo do meu pai em relação à minha viagem para estudar no Brasil (Maria Das Dores, Luanda, dia 20 de dezembro de 2020).

O pai da Maria Das Dores ficou com medo de assumir com as consequências de uma ato na qual não teria cometido, mas pelo fato do alambamento ( casamento local) ser a

“compensação material relativa à perda de uma filha que representa riqueza e uma fonte de receita pelo trabalho que desenvolve (a “mulher” como fonte de trabalho e de procriação)”

(MARTINS, 2017, p. 105), uma vez que a família tinha conhecimento que a filha já estava numa idade avançada pra passar pelo ritual e na altura para casar, casar a filha para os Bauoio do Povo Grande é uma grande perda de força de trabalho.

Para reparar essa perda o noivo tem que oferecer uma espécie de indemnização”, sendo, também, a garantia de que o casamento durará e que a jovem será bem tratada e, se houver divórcio por maus-tratos do marido, não deveria então restituir-se nada ou pouco do alambamento (MARTINS, 2017, p. 105).

Esse acontecimento impactou bastante a minha mãe na época e comigo também enquanto filha quando tive conhecimento do mesmo. A minha mãe viu os seus sonhos serem adiados pelo próprio pai, alegando questões culturais como justificativa. Enquanto Nchiento e acima de tudo, uma pesquisadora, sinto-me muito comovida com a história da minha mãe.

Muito embora os meus sonhos não foram adiados com o ritual, a minha trajetória, o que eu narro neste trabalho está conectado com a da minha mãe, Maria Das Dores Maria Das Dores, relata que esse acontecimento a impediu de realizar o seu sonho na área acadêmica, que era o de dar continuidade a sua formação a nível superior, não podendo realizar este também a limitou em certos espaços como de comerciante onde ela foi obrigada a estar e a pertencer.

Se eu tivesse passado pela casa de tinta teria a permissão de viajar para o Brasil e dar continuidade aos meus estudos, mas como não tinha passado na altura, logo não fui. Eu fiquei bem chateada, fiquei tão chateada mesmo com o meu pai por não me deixar ir, que fiquei muito triste. O meu amigo Marcos foi para Portugal e eu fiquei. Eu poderia ter conhecido o Brasil em 1977. O meu sonho era fazer medicina, isso que calhou agora na minha filha caçula, mas eu sempre quis fazer medicina. Eu ando bem chateada na minha vida, porque eu queria terminar a minha formação e não consegui (Maria Das Dores, Luanda, 20 de dez de 2020).

O que me leva a refletir nessa narrativa da Maria Das Dores é sobre o paradoxo do ritual de iniciação das Bichiento o Tchikumbi, que ao mesmo tempo que coloca a Nchiento em posição de relativa submissão e define seus papéis/papéis de gênero, também opera como um marcador

162 que permite às Bichiento construir a própria emancipação. No caso concreto da minha mãe, a passagem pelo ritual teria lhe permitido sair para estudar no Brasil e formar-se, o não o ter feito quando deveria foi um obstáculo à essa realização (a formação), à própria emancipação que ela desejava. Portanto, realizar o ritual de iniciação/passagem pode significar na contemporaneidade, limitações e possibilidades para as “mulheres”, “um bem e um mal”.

Essa realidade que a Maria Das Dores vivenciou, o ritual de iniciação das Bichiento o Tchikumbi, foi usada como um dos fatores justificativos para que ela não fosse estudar no Brasil, depois de ter conseguido uma bolsa. Maria Das Dores alegou que sempre gostou de estudar e queria dar continuidade a sua formação que era um dos seus maiores sonhos naquela época, mas se viu privada de realizar esse sonho por causa da decisão do seu pai e dos efeitos do ritual.

Ainda numa época em que a “mulher” era mais educada desde meninas para se casar e cuidar do lar, sem grandes referências na família para lhe incentivar, Maria Das Dores sempre se viu como grandes metas a serem alcançadas e não se mostrava muito interessada em casar e formar família sem antes terminar a sua formação acadêmica.

Eu mesma não ligava essas marcas de homens, até me arrependi, porque se me deixassem ir hoje eu poderia ser alguém. Eu poderia fazer a minha licenciatura e tudo, na altura eu 1977 eu tinha meus 18 anos. O Nascimento por ser homem e não precisar passar pela casa de tinta teve a permissão dos pais e foi para Portugal dar continuidade seus estudos como desejados, eu por ser uma “mulher” e não ter passado na época na casa de tinta não consegui a permissão para viajar e dar continuidade aos meus estudos no Brasil e acabei ficando. Naquele tempo em 1977 depois da independência a mulher poderia estudar, isso dependia muito das famílias não eram todas as famílias que eram atrasadas, naquela altura tinha vários pais que colocavam as filhas para estudar, eu queria estudar fazer minha faculdade e tudo, lamentou Maria Das Dores, Luanda, 20 de dez de 2020.

Segundo Maria das Dores, o fator que mais contribui para impedir a sua viagem para o Brasil foi o ritual de iniciação das Bichiento o Tchikumbi, porque mesmo sem um grau de escolaridade elevado, o pai de Maria Das Dores tinha noção dos efeitos e das vantagens que essa bolsa de estudo teria na vida da filha, mas isso não foi tão relevante na decisão do pai em proibir a filha de viajar para o Brasil. O fator cultural a (“a tradição”) teve uma influência muito grande na decisão final. Uma decisão da qual a mãe não participou, cabendo toda a responsabilidade apenas ao pai. Cabe salientar que Maria Das Dores correu atrás de uma bolsa de estudo para o exterior mesmo já prevendo a resposta negativa da parte de seu pai, e assim

163 teve o sonho interrompido por vários motivos já citados que contribuíram para que ela não fosse mais adiante.

Quanto a esta questão, eu, filha da Maria Das Dores quando viajei para o Brasil já tinha passado pelo ritual de iniciação o Tchikumbi, mas a situação não seria tão problemática se fosse ao contrário, porque segundo minha mãe a “formação em primeiro lugar”, ela já estava mais comprometida com a formação das filhas e não permitiria que o ritual fosse um impedimento no sentido de dar continuidade aos meus estudos. Algo muito comum na minha geração, onde as meninas já não veem o ritual como uma ameaça que pode cancelar ou interferir nos seus destinos, muitas delas passam por um ritual simbólico simplesmente para cumprir com a

“tradição”. E na minha família também quando necessário acontece esse ato simbólico porque com a migração para outras cidades de Angola e fora do país, muitos dos pais decidem chamar uma Nchiento mais velho a fim de realizar o simbolismo nas filhas no lugar onde se encontram residente.

Maria Das Dores afirma que existe uma desigualdade de gênero onde a cultura impõe regras para “mulheres” e não para os homens, a “tradição” do ritual de iniciação o Tchikumbi só serve para as meninas. Ela comenta o seguinte: “sinto bastante, para o homem é normal, homens não têm tradição nenhuma, mas nós as meninas é que temos a nossa tradição (Convém explorar melhor isso, enquanto pesquisadora). Principalmente nós os cabindenses temos essa tradição. A “mulher” quando atinge uma certa idade, antes de casar, fazer filhos tem que passar na casa de tinta, mesmo que ela esteja na Europa tem que vir para fazer essa tradição”. Na atualidade, há casos em que a menina se encontra na Europa ou América (nascida por lá ou viajou por motivos de estudos) e que passam pelo ritual simbólico nesses lugares.

Quanto a questão da continuidade ou não da prática entre os Baouio do Povo Grande é um assunto que tem gerado muitos debates dentro da sociedade civil e alguns pesquisadores cabindenses tais como: Alfredo Gabriel Buza (2011) e Joaquim Paka Massanga (2014). Por um lado, existe o entendimento de que a prática não precisa ser perpetuada, sendo o ritual algo que precisa ser extinto. Por outro lado, existe a opinião de, portanto, ser preservada, a fim de manter a cultura viva entre gerações. Estes últimos defendem que o abandono do ritual significa o abandono das origens. Existe, ainda, uma outra visão, a de ressignificação do Tchikumbi, algo que pode sim acompanhar o tempo, para eles este é o melhor caminho para manter viva a

‘tradição”.

164 Maria Das Dores trouxe, durante a entrevista, o exemplo das meninas do grupo étnico Iombe dos Baiombe localizado na floresta do Mayombe, mencionando que elas entraram na casa de tinta no passado e que agora a prática foi abandonada. E que o mesmo poderia acontecer entre os Bauoio de Povo Grande, uma vez que o ritual do Tchikumbi exige também muitos gastos financeiros e atenção (um controle da integridade da mesma) por parte da família durante o tempo em que as meninas lá permanecerem no ritual.

Passaram-se mais de 30 anos, eu, a filha da Maria Das Dores, Margarida Duete, embora em época diferente, experienciei o processo pelo qual a minha mãe havia passado. Consegui uma bolsa de estudo para estudar no Brasil e o ritual Tchikumbi já não foi um impedimento para minha ida, pois, eu já era “dona do meu próprio destino”. Muito embora já tivesse passado pelo ritual na altura, caso contrário provavelmente o mesmo não seria mais um grande empecilho para decidir as minhas escolhas. Quando perguntei, durante as entrevistas, a minha mãe o seguinte: “E se acontecesse o mesmo comigo, uma vez que eu também entrei “tarde” na casa de tinta, se aparecesse uma bolsa para estudar fora antes do ritual irias fazer o que? A resposta foi que: Tinha que ser realizada uma cerimônia simbólica (fazer um gesto qualquer) a partir da tradição e em seguida e irias viajar.

O fator cultural (o Tchikumbi) não foi o único que impediu Maria Das Dores, minha mãe na realização do sonho de dar continuidade aos seus estudos no Brasil como desejado, porque esta era uma decisão que cabia ao seu pai (influenciado sempre pelos aspectos culturais), porquê da mesma forma que o seu pai não tinha interesse e não achava importante em fazer o ritual na idade recomendada (certamente enfrentou a opinião pública por isso, mas não deu ouvidos), também poderia autorizá-la a sair sem passar pelo ritual. Esta é uma possibilidade, não que seja o que realmente aconteceu, isso somente chamou a minha atenção no sentido de olhar sempre as coisas a partir de diversos ângulos.

Não me revejo na história de minha mãe porque eu vivi e vivo num contexto diferente dela, tenho uma trajetória de vida diferente que está inserida em dinâmicas familiares diferentes.

Mas ao mesmo tempo acho também que é importante pontuar que enquanto filha me sinto afetada com o destino e sonhos que a Maria Das Dores viu serem cancelados. Porque corroborando com a Telo (2019) consequentemente, grande parte dos valores demonstrados pelas mães, e que inspiram a construção das personalidades das filhas, está relacionada às culturas endógenas em que as mesmas foram educadas” (TELO, 2019, p. 90).

165 Ao encruzilhar tempo, gerações, histórias de vida, experiências de duas Bichiento, é perceptível que o ritual Tchikumbi, historicamente desempenha um papel na tradição dos Bauoio do Povo Grande. Ao mesmo tempo, fica nítido que o peso simbólico e real do ritual recai mais sobre as Bichiento “mulheres” que os Bakala (homens). Estes últimos, ao tornarem-se pais de meninas, tornarem-sentiram/tornarem-sentem a responsabilidade de fazer as suas filhas passarem pelo ritual por uma questão de respeito à tradição ou de medo de retaliação familiar, mas não sempre porque acreditam no ritual necessariamente.

É verdade que Maria das Dores até hoje, se lamenta o fato de que o ritual foi tomado como um empecilho à realização de seus sonhos. No entanto, ela não se posicionou a favor da sua extinção por completo e sim defende uma ressignificação simbólica a fim de se cumprir com o ritual, por medo das futuras consequências e não deixar morrer a tradição. Talvez seja também porque ela encontra nessa tradição algo que serve de elemento unificador do povo Bauoio. Acredito que o ritual contribui consideravelmente na manutenção das delimitações das relações de poder e de gênero entre os Bauoio do Povo Grande em Cabinda, mas, tal como a minha mãe, não defendo a sua extinção e sim a ressignificação do ritual acompanhando o tempo, onde as ikumbi não serão só preparadas para lidarem com as questões voltadas à esfera doméstica (privada) e sim com as relacionadas também com a esfera pública. Porque o ritual inicia a menina para se tornar numa Nchiento que “pode decidir”.

Pude observar que foi extraído do ritual de passagem e de iniciação das Bichiento um dos componentes principais, a vertente educacional. Na atualidade existe um esvaziamento do Tchikumbi tornando-se num simples rito simbólico de passagem das Bichiento na cultura dos Bauoio do Povo Grande. Ainda em relação as suas implicações nas relações de poder entre os Bauoio do Povo Grande, o ritual do Tchukumbi contribui para que sejam reforçadas essas delimitações, colocando a Nchiento num lugar delimitado a área doméstica, preparando-as para serem boas donas de casa e esposas e deixando aos Bakala todo o espaço na esfera pública e das decisões.

Um outro aspecto que também pude notar dentro da sociedade dos Bauoio é que mesmo sendo um grupo matrilinear onde as Nchiento têm um lugar central na sociedade por perpetuar a descendência da linhagem, As Bichiento são as principais provedoras do lar, o poder não necessariamente está centrado nelas, porque esta centralidade não dá para elas uma posição de poder de decisão final sobre os assuntos do clã e nem do próprio lar. Uma sociedade onde o Bakala, (o homem, o irmão da mãe), é quem possuem o maior poder de negociar e de decisão.

No documento TCHIKUMBI: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 159-185)