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3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.3 A ÉTICA ANIMAL E SUA INFLUÊNCIA SOBRE AS ORGANIZAÇÕES

3.3.3 Bem-estar animal, abate humanitário e a legislação brasileira

Hoje, com a rápida difusão de informações via meios digitais de comunicação e as crescentes preocupações eco ambientais com o destino do planeta, os consumidores amplificaram os seus desejos por um acesso, mesmo que incipiente, às informações da produção e comercialização dos produtos consumidos (INSTITUTO NILSEN 2012; INSTITUTO AKATU, 2012). Nesta perspectiva, as preocupações socioambientais se tornaram uma pauta, uma ordem do dia nas grandes corporações, que buscaram e buscam uma adequação às novas demandas desse mercado consumidor. Singer (2008) denuncia parte das atrocidades que se cometiam contra os animais não-humanos, especialmente em laboratórios e fazendas industriais, e, a partir disso, propõe a inauguração da temática conceitual da Ética Animal.

Com a abertura, crítica e aprofundamento por diversos outros autores (ver REGAN 2001, 2004, 2006, 2013; ADAMS, 2012; JOY, 2014) desse flanco teórico de análises, as temáticas da Ética Animal, Direito Animal e Libertação Animal se difundem em uma rápida velocidade; as questões alimentares e o uso indiscriminado e intensivo dos derivados animais na fabricação de produtos ganham um novo olhar; e os indivíduos e as empresas ligadas cotidianamente à exploração desses seres são postas em cheque e cobradas a dar respostas e promover mudanças (transformadoras ou não) de hábitos nas suas práticas cotidianas.

Os anos 1960 e 1970 produziu um renascimento substancial de interesse no bem-estar animal e direitos dos animais, e esta tendência não mostra sinais de diminuir. Inglaterra agora é justamente considerado como um líder mundial na área da proteção animal, a RSPCA (Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals) se tornou a maior e mais rica organização do seu tipo na Europa (SERPELL; PAUL, 2003).

Os sistemas de criação intensiva confinada moderna desafiam os animais com ambientes adversos às suas naturezas fisiológicas e comportamentais, possibilitando estresses físicos e psicológicos. Por isso, na última década houve um aumento da atenção e preocupação do público consumidor com as práticas de produção adotadas para a criação de animais de consumo. Dentre as práticas mais questionadas e criticadas no âmbito científico, ético e social, incluem os alojamentos em gaiolas para suínos e galinhas poedeiras, procedimentos cirúrgicos sem o uso de anestesia local, realizados de forma desnecessária, e condições de transporte e métodos de insensibilização para o abate animal. “Essas práticas são controversas e inaceitáveis por parte do público consumidor por comprometer em diferentes graus, a capacidade dos animais em superar o estresse decorrente, prejudicando consequentemente o seu estado de bem-estar” (POLETTO, 2014 p. 104).

Neste horizonte, uma dessas transformações, e que hoje se encontra bastante difundida como uma lógica de mercado, é o foco da discussão sobre ética e direitos animais ligada às questões do bem-estar animal, ou bem-estarismo. Este fronte prático teórico tem como objeto a construção de leis, normas e políticas que regulamentem o uso de animais não-humanos, de forma a reduzir seu sofrimento, mas sem considerar a possibilidade de abolição da posse e uso sobre estes seres.

Apesar de desde 1822 ser criada a primeira Lei geral sobre bem-estar animal, na Grã- Bretanha (LUDTKE et al., 2015), historicamente, o bem-estar dos animais de produção foi ofuscado pela busca de melhores índices zootécnicos. Desde a década de 1960, na União Europeia, por meio de iniciativas como o livro Animal Machines (HARRISON, 1964), e depois o livro, em 1975, Libertação Animal (SINGER, 2008) e suas reverberações, a sociedade passou a conhecer os sistemas de produção e confinamento animal e a exigir a criação de animais de maneira “humanitária”. Os primeiros princípios sobre bem-estar em animais de produção começaram a ser estudados um ano após o lançamento do livro de Harrison (1964) por um comitê formado por pesquisadores e profissionais do Reino Unido, denominado Comitê Brambell. A primeira definição elaborada sobre bem-estar por esse grupo foi: (Ludtke et al., 2015 p.12).

Bem-estar é um termo amplo, que abrange tanto o estado físico quanto o mental do animal. Por isso, qualquer tentativa para avaliar o nível de bem- estar em que os animais se encontram deve levar em consideração a evidência científica existente relativa aos sentimentos dos animais. Essa evidência deverá descrever e compreender a estrutura, função e formas comportamentais que expressem o que o animal sente. Essa definição, pela primeira vez na história, fez uma referência aos sentimentos dos animais.

O Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA) utiliza como referência para suas atividades o conceito de Bem-Estar Animal da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE), onde um bom grau de bem-estar animal significa “um animal que está seguro, saudável, confortável, bem nutrido, livre para expressar comportamentos naturais e sem sofrer de estados mentais negativos, como dor, frustração e estresse.” (MAPA, 2016 p. 1). É comum a utilização dos termos bem-estar animal e abate humanitário como forma de “evitar sofrimento desnecessário, ... reduzindo estresse” (LUDTKE et al., 2015 p. 7).

Segundo Ludtke et al. (2015) as diretrizes brasileiras de bem-estar animal são elaboradas a partir das recomendações da OIE. Essas recomendações abordam a necessidade de que os animais de produção não sofram durante o período de pré-abate e abate, envolvendo os seguintes aspectos:

• Os animais devem ser transportados apenas se estiverem em boas condições físicas;

• Os manejadores devem compreender o comportamento dos animais;

• Animais machucados ou sem condições de moverem-se devem ser abatidos de forma humanitária imediatamente;

• Os animais não devem ser forçados a andar além da sua capacidade natural, procurando-se evitar quedas e escorregões;

• Não é permitido o uso de objetos que possam causar dor ou injúrias aos animais; • O uso de bastões elétricos só deve ser permitido em casos extremos e quando o

animal tiver clareza do caminho a seguir;

• Animais conscientes não podem ser arrastados ou forçados a moverem-se caso não estejam em boas condições físicas;

• No transporte, os veículos deverão estar em bom estado de conservação e com adequação da densidade;

• A contenção dos animais não deve provocar pressão e barulhos excessivos;

• O ambiente da área de descanso deve ser iluminado e apresentar piso bem drenado, respeitando o comportamento natural dos animais;

• No momento da espera no frigorífico, deve-se supri-los com suas necessidades básicas como fornecimento de água, espaço, condições favoráveis de conforto térmico;

• O abate deverá ser realizado de forma humanitária, com equipamentos adequados para cada espécie;

• Equipamento de emergência deve estar disponível, em caso de falha do primeiro método de insensibilização.

O Comitê Brambell desenvolveu o conceito das “Cinco Liberdades”, que depois foi aprimorado pelo Farm Animal Welfare Council – FAWC (Conselho de Bem-estar em Animais de Produção) do Reino Unido e tem sido adotado mundialmente. As cinco liberdades são: livre de sede, fome e má-nutrição, livre de desconforto, livre de dor, injúria e doença, livre para expressar seu comportamento normal, livre de medo e diestresse (Estresse negativo, intenso). Esses indicadores foram criados para avaliar o bem-estar dos animais (LUDTKE et al., 2015 p. 7).

As definições da OIE lidam apenas com aspectos do transporte (pré-abate) e abate. Alguns países têm legislação mais rigorosa e envolvem outras partes do processo produtivo. Poletto (2014 p. 105) aponta algumas certificações de maior relevância e que conseguem atender os padrões dos países com maiores exigências. Geralmente esses padrões envolvem as seis grandes áreas a seguir: 1) Nutrição: os animais devem ter acesso à água fresca e a uma dieta formulada para manter a saúde plena e promover um estado positivo de bem-estar; distribuídos para minimizar competição entre os animais; 2) Ambiente: este deve ser considerado de acordo com as necessidades da espécie e deve ser projetado para proteger os animais de desconforto físico e térmico, medo e diestresse, e deve permitir que eles realizem os seus comportamentos naturais; 3) Gerenciamento: um manejo altamente cuidadoso e responsável feito por funcionários treinados, habilidosos e competentes; 4) Saúde: um adequado planejamento sanitário dos alojamentos dos animais, que esteja de acordo com boas práticas de criação; 5) Transporte: os sistemas de transporte devem ser planejados e manejados ao mínimo absoluto para assegurar que os animais não sejam submetidos a diestresse ou desconforto desnecessários, os tratadores envolvidos devem ser treinados para executar as tarefas que deles são exigidas; e, 6) Abate, todos os abatedouros-frigoríficos devem atender as especificações do Guia do American Meat Institute – AMI elaborado em parceria com Grandin (2013).

O abate humanitário é uma etapa do processo de bem-estar animal e tem o objetivo de reduzir o sofrimento dos animais. Os procedimentos de abate humanitário: são o conjunto de

diretrizes técnicas e científicas que garantam o bem-estar dos animais desde a recepção até a operação de sangria (MAPA, 2000). O manejo humanitário constitui: insensibilização do animal antes do abate, evitando sofrimento desnecessário; utilização de equipamentos de imobilização e insensibilização; uso de piso antiderrapante e de rampas pouco inclinadas para evitar lesões e quedas (suínos e bovinos); manejo dos suínos em grupo para reduzir o estresse e instalação de lâmpadas azuis para acalmar as aves (WAP, 2016).

O Guia de Recomendações do American Meat Institute, (GRANDIN, 2013) relaciona os cinco principais pontos críticos de controle, avaliados para o abate de bovinos, são:

1. Porcentagem de animais insensibilizados corretamente no primeiro disparo. 2. Porcentagem de animais que permanecem insensibilizados.

3. Porcentagem que não vocalizam (muge, geme ou berra) durante a condução e manejo nos corredores e durante a insensibilização.

4. Porcentagem de animais que não caem ou escorregam durante o manejo. 5. Porcentagem de animais que se movem sem o uso do bastão elétrico.

Um importante material direcionado para treinamento de empresas sobre o abate humanitário é o manual Steps de Abate Humanitário de bovinos (idem para o de suínos e aves) criado pela Word Animal Protection - WAP (antiga World Society Protection Animal - WSPA), com apoio do MAPA. Nesse material Ludtke et al. (2015) apresentam informações sobre o bem-estar animal e abate humanitário, orientações sobre treinamento, comportamento dos animais, e etapas do processo regulamento por legislação do manejo pré-abate, insensibilização dos animais, sangria e transmite informações sobre como o estresse do animal pode implicar na qualidade da carne. A WAP já treinou mais 7.000 pessoas em mais de 300 frigoríficos no Brasil (WAP, 2016).

Atualmente, produtos oriundos de sistemas de mais alto grau de bem-estar apresentam valores agregados, de ordem econômica e ética, atendendo à demanda de um nicho específico de mercado. Adicionalmente, a demanda social levou à elaboração de legislação específica a respeito do bem-estar animal, a qual originou o estabelecimento de barreiras comerciais entre países (BOND et al, 2012, MAPA, 2016). A União Europeia é um mercado que atualmente exige maiores condições de bem-estar animal, as empresas brasileiras que exportam para esses países devem ter um padrão mais alto de obrigações (LUDTKE et al., 2015). A WAP (2016) afirma em seu site, que dentre os principais benefícios para implementação de programas de bem-estar animal estão redução de custos com alimentação dos animais, redução do impacto ambiental e aumento dos lucros.

Desde 1934 o Brasil teve sua primeira legislação para tratar da atenção ao bem-estar animal, o Decreto nº 24.645. Com o decorrer dos anos foram surgindo novas legislações para assegurar normas de abate e bem-estar animal no manejo pré-abate dos animais de produção, estipulando multas até suspensão de atividades do estabelecimento. As mais recentes legislações brasileiras sobre o bem-estar dos animais de produção são: Instrução Normativa No 3, de 17 de janeiro de 2000 (MAPA, 2000), que é um Regulamento Técnico de Métodos de Insensibilização para o Abate Humanitário de Animais de Açougue; Ofício Circular N° 550 (24 de agosto de 2011) e 562 (29 de agosto de 2011), que estabelecem adaptações da Circular N° 176/2005, na qual se atribui responsabilidade aos fiscais federais para a verificação no local e documental do bem-estar animal através de planilhas oficiais padronizadas; Normativa N° 56, de 06 de novembro de 2008, que estabelece os procedimentos gerais de Recomendações de Boas Práticas de Bem-estar para Animais de Produção e de Interesse Econômico – REBEM, que abrange os sistemas de produção e o transporte e a Instrução Normativa No 46, de 6 de outubro de 2011, que contempla requisitos de bem-estar animal dentro das normas técnicas para instalações, manejo, nutrição, aspectos sanitários e ambiente de criação nos sistemas orgânicos de produção animal (LUDTKE et al., 2015).

Em 2008 foi publicada a Portaria N° 185 que instituí a Comissão Técnica Permanente de Bem-estar Animal (CTBEA) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento para ações específicas sobre bem-estar animal nas diferentes cadeias pecuárias. O objetivo da Comissão é coordenar as diversas ações de bem-estar animal do Ministério e fomentar a adoção das boas práticas para o bem-estar animal pela cadeia produtiva, embasada na legislação vigente e no conhecimento técnico-científico disponível (MAPA, 2016).

É importante ressaltar que toda legislação e práticas de bem-estar animal não eliminam totalmente o sofrimento dos animais e nem a realidade que terão sua vida encurtada, sendo criados e mortos para os interesses dos humanos. Sejam os métodos tradicionais ou “humanitários” não mudam nosso erro fundamental na criação dos animais: eles continuam sendo tratados como recursos que existem para ser utilizados pelo humano (REGAN, 2013).

Pelo fato desses animais serem tratados cotidianamente, sistematicamente, como se os seus valores fossem reduzidos à sua utilidade para os outros, eles são cotidianamente, sistematicamente, tratados com falta de respeito, tendo assim seus direitos cotidianamente, sistematicamente, violados... O erro moral fundamental aqui não é que os animais sejam mantidos presos em confinamento/fechado, estressante ou isolado, a sua dor e sofrimento, nem se suas necessidades e preferências são ignoradas ou reduzidas. Tudo isso está errado, é claro, mas esses não são os erros fundamentais. Esses são sintomas e efeitos do um erro mais profundo e sistemático que permite que os animais

sejam vistos e tratados como destituídos de valor inerente, como nossos recursos - mais ainda, como recursos renováveis. Dar mais espaço aos animais na fazenda industrial, mais ambiente natural, mais companhia, não conserta o erro fundamental (REGAN, 2013 p. 36-37).

Um dos autores que mais crítica as propostas de bem-estar animal é o americano Gary L. Francione, filósofo do Direito. Para Francione (1996) o movimento de defesa animal está dividido em três grupos: a) Bem-Estarismo: que aceita o uso humano dos animais desde que eles sejam tratados humanitariamente, ou seja, que se evite seu sofrimento desnecessário, que defende regulamentação de uso dos animais; b) Direitos dos Animais, ou Abolicionismo Animal: que argumenta que o uso de animais não é moralmente justificado e, portanto, deve ser abolido. c) Novo Bem-Estarismo: que defende a regulamentação a curto-prazo enquanto não se atinge a libertação animal. Francione (1996) afirma que única posição legítima é a dos Direitos dos Animais.

O bem-estarismo, apresenta-se conceitualmente como uma solução mais conservadora, e esse conservadorismo é tantas vezes reacionário do ponto vista conceitual da questão da ética e libertação animal, já que a problemática da redução de danos, ao invés da abolição das condições de opressão desenvolvem caminhos para a manutenção e, até mesmo, expansão dos contextos exploratórios dos animais não-humanos (FRANCIONE, 1996; 2011). Ou seja,

Esta visão a de que não é o uso, em si, mas somente o tratamento é o fundamento da ideologia bem-estarista e difere da posição dos direitos animais por mim articulada. Eu afirmo que se os animais tiverem interesse na existência continuada e eu argumento que todos os seres sencientes o têm, então, o nosso uso deles como recursos (independentemente de quão “humanitariamente” os tratemos) não pode ser moralmente defensável, e nós devemos procurar abolir, e não regulamentar, a exploração animal (FRANCIONE, 2011).

Mas Gary Francione recebe críticas de alguns autores por muitas de suas ideias. Em especial, pela visão de que a) leis bem-estaristas já que não causam a abolição, devem ser rejeitadas, pois vão atrasar a abolição animal, e b) de que aqueles que são a favor de leis bem- estaristas não são abolicionistas. A crítica feita não é ao ideal moral de Francione, mas sim a estratégia para se chegar nele (NACONECY, 2009) ou dele acreditar que sua estratégia é a única possível (e ideal) de se chegar na abolição do uso dos animais (JOY, 2012).

O Novo Bem-estarista, segundo Francione (1996) é aquele que é a favor de leis bem- estaristas a curto-prazo, mesmo sendo abolicionista. Ou seja, mesmo que o objetivo do indivíduo seja a abolição da exploração animal, ele é rotulado de bem-estarista, o que sugere que ele quer apenas aliviar em vez de eliminar a dor (JOY, 2012) e “Qualquer pessoa que almeja a abolição da escravidão animal é, por definição, um abolicionista, não importa que a

estratégia adotada por ele seja eventualmente errada” (NACONECY, 2009 p. 244). É uma diferença de estratégia (JOY, 2012), de política, mas não de princípios (SALT, 2010).

Sztybel (2007) propõe outra nomenclatura para essa situação, ambos (novo bem- estarista e abolicionista) seriam abolicionistas, pragmáticos e fundamentalistas (respectivamente). A longo-prazo, os dois, teriam o mesmo propósito – a libertação animal, mas a curto-prazo, existe uma discordância sobre a forma mais eficaz de agir (SZTYBEL, 2007). Um abolicionista pragmático deve fazer o melhor para todos os animais e para cada um deles tanto a curto-prazo quanto a longo prazo (NACONECY, 2009).

Existe uma pergunta muito importante nesse embate de ideia, apresentada por Joy (2012): as reformas bem-estaristas que aumentam a conscientização sobre a exploração de animais de criação trazem mais benefícios ou consequências? Apesar de vários autores concordarem que não existe problemas em se apoiar leis bem-estaristas antes da abolição do uso de animais, eles discordam entre si em alguns aspectos. Existem aqueles defendem que a reformas bem-estaristas tendem a conduzir a leis abolicionistas (ver NACONECY, 2009; SALT, 2010), ou que não temos dados empíricos confiáveis que sustentem se essas políticas de bem-estar podem ou não atrapalhar a abolição do uso de animais (ver WISE, 1997; JOY, 2012).

Salt (2010) afirma que essa aparente dicotomia entre bem-estar e abolição animal, não deveria existir, o autor entende que deveriam ser buscadas políticas de restrição ao uso de animais e também de abolição do uso, pois as restrições não são alternativas, mas porta de entrada para a abolição. A adoção de política mais completa e sábia seria adotar tanto ações bem-estaristas como abolicionistas ao mesmo tempo, obtendo todo o bem possível agora (bem-estar) e em paralelo aspirar por alguma coisa a mais (abolição) (SALT, 2010). Em outras palavras:

“ [...] as regulamentações bem-estaristas influenciam favoravelmente a causa abolicionista. Leis bem-estaristas tendem a conduzir a leis abolicionistas, com maior probabilidade, mas não com garantias de que isso ocorra. Leis bem-estaristas, por si só, não assegurarão a implantação dos direitos dos animais, mas criam condições geralmente favoráveis para isso. [...] o Bem- Estarismo cria um ambiente favorável na mentalidade das pessoas para que o Abolicionismo possa florescer como ideia moral. [...] regulamentações bem- estaristas promovem - e não bloqueiam ou atrasam - resultados abolicionistas. Por quê? Porque leis bem-estaristas influenciam favoravelmente a formação de mentalidades e de culturas compassivas, possibilitando trazer a noção de Diretos dos Animais para o interior delas. Com efeito, é difícil de acreditar que a promoção da bondade e da compaixão numa sociedade se torne um obstáculo ao Direitos dos Animais. Muito pelo contrário: em sociedades com altos teores de violência e crueldade, falar da imoralidade de possuir e usar criaturas sencientes irá

obter uma adesão praticamente zero entre os ouvintes” (NACONECY, 2009 p. 246-247).

Aqueles que querem reformas bem-estaristas para melhorar o tratamento dos animais não implica legitimar o uso deles (NACONECY, 2009). Da mesma forma, “se é eticamente correto aumentar o bem-estar de seres humanos, por que seria diferente em se tratando de animais? Se as melhorias no bem-estar dos humanos, no mundo real da política e economia, envolve negociação e progride em graus, por que deveria ser diferente no caso dos animais?” (NACONECY, 2009 p. 241).

O risco da proposta abolicionista no contexto atual de nossa sociedade fortemente especista, é o de, “exigindo a erradicação total do uso dos animais, não obtermos nem mesmo o que é o melhor possível para eles, neste momento, em termos legais. Reclamando a abolição completa, podemos nem mesmo obter a proibição legal no que tange a dor e ao sofrimento mais brutais” (NACONECY, 2009 p. 264).

A minha visão nesse trabalho é alinhada com a ideia de que as práticas bem-estaristas em si, não são um problema. Elas talvez colaborem com a mudança cultural em nossa sociedade, para incluir a consideração moral ao animais não-humanos, de forma que seja abolido seu uso.

Na próxima seção discuto os conceitos do dito desconexo e bem-estar animal, que são importantes para o entendimento das práticas da indústria de exploração animal.

3.3.4 O dito desconexo e a separação elementar entre discurso e