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3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.4 O ENCONTRO ENTRE O DARK SIDE DAS ORGANIZAÇÕES E A ÉTICA

3.4.2 As contribuições da Ética Animal para desvelar o Dark Side das organizações

3.4.2.4 Relações de dominação e poder

A nossa relação com os animais, é baseada numa grande assimetria de poder. Gautama Buda ensinou que os homens têm deveres de cuidado com os animais em razão da assimetria de poder existente entre os humanos e as demais espécies. É por esse motivo que, segundo o Buda, o encargo de ajudar e o sentimento de responsabilidade dos homens com relação aos animais devem se fazer presente. A percepção de que o tratamento degradante dado a esses seres é absurdamente injusto, “deve ser suficiente para que o homem deseje uma justiça melhor, mesmo ciente de que a libertação dos animais não será suficiente para tornar o mundo plenamente justo; mas menos injusto” (CRUZ, 2013 p. 191).

A carne não pode ser obtida sem violência. As ideologias violentas são essencialmente antidemocráticas, pois dependem de fraude, sigilo, poder concentrado e da coerção. Existe uma concentração da indústria. Numa sociedade democrática, uma função central do governo é criar e implementar políticas e leis que atendam aos interesses dos cidadãos. Presumimos que a comida que chega à nossa mesa não vai nos deixar doente ou nos matar (JOY, 2014). Que se existe uma legislação para o bem-estar animal, que eles são bem tratados. A indústria agropecuária se tornou tão poderosa a ponto de ficar não apenas acima da lei, mas do direito, moldando a legislação, ao invés de respeitá-la, podemos dizer que nossa democracia se tornou uma carnocracia. (JOY, 2014).

Ainda existem os efeitos colaterais para os humanos nessa indústria. O trabalho mais perigoso e mais violento nos EUA é nos frigoríficos, os trabalhadores passam horas num ambiente saturado de morte e com alto nível de estresse (JOY, 2014). No Brasil a realidade não é diferente: Nos frigoríficos o ritmo de trabalho frenético é 5 vezes maior do que o limite considerado seguro à saúde (15 segundos, 18 movimentos). Pessoas contraem depressão, tendências suicidas, insanidade mental, por causa das péssimas condições psicológicas de trabalho (CARNEOSSO, 2011). 58% das fazendas onde houve libertação de trabalhadores escravizados entre 1995 e 2008 eram de pecuária (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, 2008), 80% do trabalho forçado está na pecuária (OIT, 2005).

Dada a brutalidade do processo do abate, é fácil presumir que as pessoas que têm como trabalho matar animais sejam sádicas ou psicologicamente perturbadas. Esses distúrbios podem resultar sim da exposição prolongada à violência, as pessoas podem acabar se acostumando com a violência que um dia os perturbou, esse mecanismo se chama rotinização. Comportamentos que podem parecer irracionais e extremos são resultados inevitáveis do trabalho nas linhas de frente de um sistema extremo e irracional (JOY, 2014). Essa não é

novidade nenhum para filósofos gregos como Plutarco e Porfírio (FELIPE, 2009, p.10-11), que há quase 2.000 anos afirmavam:

[...] a crueldade, com a qual os animais mortos para alimento são tratados, brutaliza o caráter humano, tornando-o igualmente indiferente ao sofrimento das pessoas e ao dos animais. Plutarco

(A)o agir desse modo, na verdade, uma disposição assassina e uma natureza brutal se enraíza e fortalece em nós, tornando-nos insensíveis à piedade; além disso, podemos acrescentar: aqueles que pela primeira vez ousaram fazer isso, cegaram a maior parte da bondade e a tornaram ineficaz. Porfírio

Não apenas filósofos se debruçaram sobre esse tema, em publicação recente do período Organization, na edição especial sobre Animais e Organizações, Baran, Rogelberg e Clausen (2016) estudaram 10.605 trabalhadores dinamarqueses de matadouros, e fizeram uma revisão sobre artigos que associam essas atividades indesejáveis – de matar animais – ao estigmatizado “trabalho sujo”. Os autores concluem a pesquisa confirmando que esses trabalhadores tem um menor bem-estar psicológico e comportamento de enfrentamento negativo (consumo de álcool em especial) em relação a outros tipos de trabalhadores com outras atividades. Além de um desprestígio pela tarefa considerada suja, os trabalhadores carregam uma marca física por ter um contato próximo com a morte de animais. Existe evidências na literatura sobre a área que matar animais pode afetar o comportamento e pensamento das pessoas, como por exemplo serem mais violentos, antissociais ou terem outros problemas sociais (BARAN, ROGELBERG; CLAUSEN, 2016)

O menor bem-estar desses trabalhadores se deve ao fato de existir um conflito interno devido à identificação de ambivalência com a situação de violência e morte intencional dos animais. Existe uma demanda psicológica adicional sobre pessoas nessa situação, uma tensão para defender o que elas fazem para indivíduos de outro grupo pela falta de prestígio de sua ocupação. O estudo de Baran, Rogelberg e Clausen (2016) identificou o uso de estratégias de sobrevivência (enfrentamento) negativa, como por exemplo aumento do consumo do álcool, causado por maiores tensões e estresse físico e psicológico devido a rotina de violência à outros seres vivos. Existe uma sinalização de que testemunhar a dor e sofrimento dos animais pode gerar empatia e também remeter aos seus próprios sofrimentos, buscando se distanciar da dor, e o consumo de álcool pode ser uma válvula de escape. Em decorrência disso, esses trabalhadores vivem menos significado do trabalho. É possível que a morte intencional de animais induza a um sofrimento empático crônico, influenciando os trabalhadores a se distanciarem psicologicamente de seu trabalho mais do que outras ocupações consideradas como trabalho sujo. Eles podem ter conflitos psicológicos entre se ver como um assassino de

animais, em vez de pessoas que matam animais como um trabalho ou como fornecedores de carne (BARAN, ROGELBERG; CLAUSEN, 2016).

Considero as práticas de uso de animais extremamente ideológicas, de maneira pejorativa ou criticável, pois para permanecer aceitável, tem que recorrer a ocultar ou obscurecer suas motivações, distorcer ou dissimular um discurso para naturalizar uma realidade social e legitimar e sustentar essas relações.

Além dessa invisibilidade simbólica, que possibilita o ato de evitar, negar, existe uma invisibilidade prática do carnismo, a invisibilidade dos animais produzidos e mortos.

O carnismo, tido como ideologia dominante, representa um papel proeminente na configuração e manutenção deste sistema de exploração indiscriminada de algumas espécies de animais, principalmente pelas grandes corporações, ao ponto de possibilitar esta violência diária com milhões de seres. A caracterização como não ideológica ou “natural” desta ideologia, ajuda a manter uma realidade por si só excludente, hierarquizada, paradoxal, sedimentada na impossibilidade da consideração de interesses de outras espécies e num processo predatório de contínua acumulação de capitais; em que a violência dos processos – em seus muros, grades, jaulas, abatedouros, corpos ausentes, instrumentalização humana e animal etc.- aparece fora do campo de visão do consumidor. O carnismo é, então, categorizado como fundante necessário para manutenção da sintomática invisibilidade e contínua exploração dos animais não humanos no Dark Side das organizações.

Como forma de apresentar um pequeno resumo, em tópicos, do conteúdo principal da fundamentação teórica que serviu de lente para análise dos resultados, apresento a seguir as definições constitutivas (DC) e operacionais (DO).